Eleição nos EUA: como a confusão nos resultados de Iowa pode impactar as prévias do Partido Democrata

Número de delegados do Estado é considerado pequeno e a maior relevância para os pré-candidatos era a exposição de sua imagem como vitoriosos, ofuscada pela confusão do Partido Democrata em contar os votos.

6 fev 2020 - 17h23
Buttigieg e Sanders: Como total de delegados do Estado é pequeno, maior relevância para os pré-candidatos era exposição de sua imagem como vitoriosos
Buttigieg e Sanders: Como total de delegados do Estado é pequeno, maior relevância para os pré-candidatos era exposição de sua imagem como vitoriosos
Foto: JOSEPH PREZIOSO/AFP / BBC News Brasil

Com mais de 48 horas de atraso e 97% das urnas apuradas, o partido democrata parecia ter chegado a uma definição sobre o vencedor — ou os vencedores — da votação em Iowa, a primeira etapa das prévias para definir o candidato que enfrentará o presidente Donald Trump nas eleições de novembro.

O centrista Pete Buttigieg (26,2% da preferência eleitoral) e o socialista Bernie Sanders (26,1%) estavam virtualmente empatados e, enquanto Buttigieg pode levar ligeira vantagem no número de delegados a seu favor, Sanders deve cravar maioria do voto popular.

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O resultado é simbólico da profunda divisão entre os democratas: o partido tenta construir um consenso sobre qual esquerda tem mais chances de bater Trump, os moderados ou os progressistas.

Como nas primárias democratas o número de delegados obtido pelos pré-candidatos é proporcional ao apoio recebido em cada estado, os 3% de informação ainda não apuradas em Iowa terão impacto mínimo no resultado final.

Em disputa, estavam os 41 delegados democratas com direito a voto na convenção nacional do partido, em julho. É um número baixo, considerando-se que, para chegar a ser indicado como candidato, o postulante precisa amealhar o apoio de 1991 delegados em todo o país.

Como mais um complicador, o presidente do Comitê Nacional Democrata, Tom Perez, anunciou no Twitter que uma recontagem poderia ser feita para garantir que os resultados fossem "confiáveis".

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'É como se Iowa nunca tivesse existido'

O processo de escolha do candidato ainda se estenderá pelos próximos quatro meses. Mas o resultado em Iowa é historicamente considerado relevante porque, ao inaugurar a corrida, o Estado tem a capacidade de catapultar ou enterrar candidaturas e determinar o tom da disputa.

Em 2020, no entanto, o pontapé inicial foi, nas palavras de democratas e republicanos, um desastre. Um conjunto de erros humanos e falhas técnicas dos representantes do partido ao usar um aplicativo para preencher os resultados levou à indefinição por dias. Diversas seções eleitorais passaram a computar votos de maneira rudimentar, com papel e caneta, além de fotos.

Iowa é um dos Estados em que democratas e republicanos realizam caucus em vez de primárias para escolher seus candidatos
Foto: Brenna Norman/Reuters / BBC News Brasil

Batizado de caucus, o sistema eleitoral das prévias em Iowa já é considerado obscuro pela média dos americanos, porque não se trata de uma votação normal.

Cada eleitor é chamado a expressar sua opinião diversas vezes conforme o candidato preferido de cada grupo mostra ou não viabilidade eleitoral. Logo, o número absoluto de votos não importa tanto, mas sim a distribuição das preferências nas sucessivas rodadas de votação — o que explica porque Sanders ganhou na preferência popular mas pode acabar com menos delegados que Buttigieg.

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Somando a isso os erros do partido ao computar os votos, o resultado foi uma desconfiança generalizada sobre a capacidade dos democratas em manter a lisura do processo — já há evidências de dados incorretos liberados pelo partido até o momento.

"A divulgação dos resultados e das circunstâncias em torno dos caucuses do Partido Democrata de Iowa em 2020 foram inaceitáveis. Como presidente do partido, peço profundas desculpas por isso", disse Troy Price, ao liberar a primeira leva de números, com 18 horas de atraso.

O pedido de desculpas, no entanto, pode não ser suficiente para reverter o dano de imagem causado pelo partido perante os eleitores indecisos, que poderiam trocar Trump por um democrata.

"Os acontecimentos em Iowa confirmam para muitos que duvidam dos democratas que eles simplesmente não estão prontos para assumir protagonismo e que não têm qualquer coisa que se assemelhe à liderança política responsável. Que desastre!", disse à BBC News Brasil o cientista político da Universidade de Boston Thomas Whalen.

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O pedido de desculpas também é insuficiente para devolver a Buttigieg e Sanders um momento vitorioso que seria importante para suas campanhas.

"Há uma boa chance de que os candidatos que se saíram bem em Iowa se deem mal, e os candidatos que se saíram mal lá tenham uma colher de chá. Há muito pouca importância, em sentido matemático, em ganhar os 41 delegados em jogo. Iowa é importante pela narrativa que a mídia produz, sobre vitórias, e o impulso que isso traz. E esse momento, para o vencedor, provavelmente será nulo", escreveu o jornalista de dados especialista em eleições americanas Nate Silver, em seu site FiveThirtyEight.

Embora Buttigieg tenha se autoproclamado vitorioso na mesma noite do Caucus e Sanders tenha dito que "estava indo muito bem", nenhum dos dois conseguiu colher os frutos em termos de atenção da imprensa que teriam com uma vitória clara.

Ex-prefeito de South Bend, Pete Buttigieg fez mais de 90 eventos públicos em Iowa na última semana
Foto: GARY HE/EPA / BBC News Brasil

Amy Klobuchar, que está apenas em quinto lugar, disse que estava "competindo em categoria acima de seu peso", e o ex-vice-presidente Joe Biden, com um desempenho que o coloca em um distante quarto lugar, questionou o processo, agradeceu aos eleitores, disse que "a etapa está cumprida" e que estava partindo para a próxima escala das prévias, a votação em New Hampshire.

Além da confusão interna ter prejudicado os democratas, Iowa ainda teve de disputar a atenção com o discurso de Trump ao Congresso, no State of the Union, com a absolvição do presidente no processo de impeachment e até com a pandemia de coronavírus.

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"Independentemente dos resultados, todos os candidatos já estão em New Hampshire declarando vitória. É como uma liga de futebol juvenil, onde todos em campo recebem troféus por participar. Quem quer que seja o verdadeiro vencedor já foi excluído da lista de principais notícias da semana. É quase como se Iowa nunca tivesse acontecido. Talvez seja uma coisa boa, já que para os democratas o que aconteceu ali foi um naufrágio", diz Whalen.

O que o resultado significa para cada democrata

Considerado um azarão, o ex-prefeito de South Bend (Indiana), veterano da guerra do Afeganistão, prodígio de Harvard e gay assumido Pete Buttigieg, de 38 anos, colheu os louros de ter feito mais de 90 eventos públicos em Iowa na última semana.

A estratégia do ex-prefeito era justamente tentar explorar a promoção de imagem que a vitória nesse caucus traria. Buttigieg não conta, por enquanto, com recursos financeiros para repetir a maratona em outros estados, embora sua campanha esteja se esforçando para passar o chapéu e capitalizar os números de Iowa.

Ainda é incerta a trajetória que ele pode construir ao longo das primárias.

Para o senador por Vermont Bernie Sanders, no entanto, o resultado tem um significado mais concreto. Confirma a onda de apoio na qual Sanders surfa nas últimas semanas, colocando-o hoje como um dos grandes favoritos à nomeação.

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Apenas quatro meses depois de ter sofrido um ataque cardíaco, Sanders, de 78 anos, mostrou mais fôlego e energia para a disputa que oponentes até então considerados líderes, como Biden.

Campanha de Sanders foi a que arrecadou maior volume de doações entre os democratas até o momento, US$ 110 milhões
Foto: JOSEPH PREZIOSO/AFP / BBC News Brasil

"Com uma vitória em Iowa, o mais provável é que Sanders ganhe também em New Hampshire", afirma o cientista político Michael Cornfield, da Universidade George Washington.

O Estado de New Hampshire é o local da segunda parada das prévias, uma semana depois de Iowa. Ali, em 2016, Sanders já havia vencido a então rival Hillary Clinton, que acabou obtendo a nomeação do partido.

"Sanders ganhou um tremendo impulso para vencer em New Hampshire. A partir daí, com duas vitórias consecutivas, começaria a ficar difícil de vencê-lo. Ele conseguiria arrecadar ainda mais dinheiro para seus já impressionantes cofres de campanha. E não nos enganemos: o dinheiro ainda será um fator decisivo", Whalen.

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A campanha de Sanders já obteve cerca de US$ 110 milhões em doações, o que coloca o senador de Vermont na dianteira da arrecadação entre os democratas, descontados os candidatos bilionários que se autofinanciam.

A fonte do dinheiro de Sanders são mais de cinco milhões de americanos. Crítico de bilionários e investidores de Wall Street — a quem promete taxar se chegar à Presidência — o pré-candidato afirma que, em média, cada doação não supera os US$ 30.

A arrecadação tem sido usada como uma prova de força pelo socialista, que já chegou a prever que conseguirá US$ 1 bilhão em doações caso se sagre candidato.

Em favor de Sanders há ainda o fato de que ele conta com uma base aguerrida de militantes jovens, cuja lealdade é primordialmente dirigida a ele, e não ao partido.

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"A vitória de Sanders significa que os progressistas, especialmente os mais jovens, conseguiram algum domínio do partido e que têm a capacidade de atrair eleitores em áreas rurais remotas — um reduto eleitoral importante de Trump em 2016", opina Whalen.

Por outro lado, Sanders deve enfrentar uma crítica mais dura e intensa de suas ideias agora que despontou como favorito.

"Sanders está prestes a receber o escrutínio que Warren recebeu há alguns meses. Vamos ver o quão bem ele lida com o tratamento dado ao favorito", diz Cornfield, mencionando a senadora por Massachussets Elizabeth Warren, que ficou em terceiro lugar em Iowa.

Quando Warren surgiu em primeiro lugar em pesquisas de preferência eleitoral em Iowa, ela se tornou alvo de críticas e questionamentos. E se enrolou. Ao propor um ambicioso plano de saúde pública universal, Warren disse que os impostos sobre grandes fortunas bancariam o custo do programa. O projeto, no entanto, não se mostrou sustentável e parte de seus eleitores, de classe média, passou a temer que a conta recaísse sobre suas costas.

Como resultado, desde novembro do ano passado, a democrata, que chegou a aparecer em segundo lugar na disputa nacionalmente, tem sido desidratada. Atualmente ela surge em terceiro lugar, com 14% dos votos, na disputa nacional.

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O maior perdedor

Ex-vice do Obama, Biden é um dos candidatos mais conhecidos dos eleitores americanos
Foto: Spencer Platt/Getty Images / BBC News Brasil

Para o moderado ex-vice presidente Joe Biden, o resultado em Iowa foi o que ele próprio definiu como "um soco no estômago". Antes da votação em Iowa, Biden despontava como o favorito em grande parte das pesquisas de opinião.

"No mínimo, Biden precisava estar entre os três primeiros colocados em Iowa. Ele está em grandes apuros", afirmou à BBC News Brasil Robert Erikson, cientista político da Universidade Columbia em Nova York.

Além de ser dos candidatos mais conhecidos pelos eleitores, Biden deve sua força à suposta imagem de grande viabilidade eleitoral.

O ex-vice-presidente era visto por dois terços dos democratas como o mais capaz de vencer Trump antes da disputa em Iowa. Essa premissa pode cair por terra rapidamente se Biden não se mostrar eleitoralmente mais viável nem mesmo entre os democratas durante o processo de primárias. Além disso, Biden patina na arrecadação de dinheiro de campanha.

Ele terá até o início de março, quando 15 Estados terão primárias em um mesmo dia, para se provar. Será também na Super Terça, como é conhecido esse dia de votação em Estados muito importantes, que o bilionário e ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg vai mostrar suas armas pela primeira vez.

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Bloomberg entrou tarde na disputa pela candidatura e optou por uma estratégia ousada: não participar das primárias de Iowa e New Hampshire.

Desde o caucus de Iowa, no entanto, as chances de Bloomberg têm aumentado, de acordo com os analistas de política americana. Moderado como Biden, ele pode desidratar ainda mais o ex-vice-presidente. Atualmente, Bloomberg surge na terceira posição na corrida, empatado com Warren, com cerca de 14% das preferências.

"Uma participação iniciada assim tão tarde não tem precedente histórico, então é muito difícil avaliar o que pode acontecer", diz Cornfield.

Até lá, garantem os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, será prematuro concluir sobre qual estratégia os democratas adotarão para tentar vencer Trump.

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