Especialistas em educação expressam preocupação com a proposta de regulamentar o ensino domiciliar no Brasil, destacando que a medida pode aumentar desigualdades, evasão escolar e trabalho infantil, sem resolver problemas educacionais estruturais do país.
"Eu acho que o Brasil tem problemas grandes em educação e a falta da educação domiciliar não é um dos problemas que nós temos", disse a especialista em educação Cláudia Costin. A comissão especial da Câmara dos Deputados marcou para a próxima terça-feira, 9, a votação do parecer sobre o novo Plano Nacional de Educação (PNE) , documento que definirá as diretrizes da educação brasileira para a próxima década. Entre as metas e medidas previstas no texto do relator, um dos pontos que mais tem provocado polêmica é o destaque 3: a abertura para oferta de ensino domiciliar na educação básica.
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A proposta, defendida por parlamentares aliados à pauta, reacende um debatesobre uma série de rupturas e retrocessos, segundo aponta uma extensa lista de instituições e pesquisadores de educação. Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que o homeschooling não só não resolve nenhum dos problemas reais do Brasil, como tende a agravá-los -- da evasão escolar ao aumento do trabalho infantil, da violência doméstica ao atraso cognitivo.
O que diz a lei
O ensino domiciliar não é reconhecido como forma legal de educação no Brasil. A Constituição determina que a educação básica seja obrigatória e ofertada pelo Estado, em escolas públicas ou privadas autorizadas. A prática em si, portanto, não é proibida, mas a matrícula escolar é obrigatória.
Em 2018, ao julgar o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o homeschooling não pode ser instituído sem lei específica e deixou claro o risco envolvido:
"Sem uma legislação específica que estabeleça a fiscalização da frequência, receio que vamos ter grandes problemas de evasão escolar. [...] Sem regulamentação congressual detalhada, com avaliações pedagógicas e de socialização, teremos evasão escolar travestida de ensino domiciliar", alertou o ministro Alexandre de Moraes, à época.
O PL 3.179/12, de autoria do deputado Lincoln Portela (PL-MG) e relatado por Luisa Canziani (PTB-PR), tenta suprir essa lacuna. Mas, como explicam especialistas, regulamentar não significa garantir segurança, aprendizagem ou equidade.
O cenário atual
Nos EUA, o homeschooling é escolhido por motivos como segurança, insatisfação com escolas e valores morais/religiosos. Segundo o Centro Nacional de Estatísticas Educacionais dos Estados Unidos, um dos países tidos como exemplos do modelo domiciliar:
- 83% dos pais citam preocupação com segurança e ambiente escolar.
- 72% mencionam insatisfação com o ensino.
- 75% desejam oferecer instrução moral; 53%, religiosa.
- Apenas 15% citam questões de saúde prolongada dos filhos.
Mas transportar essas razões para o Brasil ignora a realidade social, econômica e institucional do país, afirmam as especialistas. Para Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal -- uma das instituições que se manifestaram contra o destaque, esses motivos não podem orientar políticas públicas brasileiras.
"Muita gente fala que tem que ter liberdade na escolha [...]. Eu acho que essa percepção é incorreta. Ela é uma liberdade que não necessariamente está tomando em conta todos os riscos. Ela abre sim a liberdade e oportunidade para que a criança tenha os seus direitos violados", explicou ao Terra.
Segundo Mariana Luz, "a escola tem três papéis cruciais. O primeiro é da aprendizagem [...]. É esse espaço de aprendizagem, de conhecimento, de socialização, de trocas".
O homeschooling transfere a formação para famílias que, majoritariamente, não têm preparo pedagógico ou didático para acompanhar a evolução cognitiva e a base da educação infantil -- linguagem, matemática, psicomotricidade.
Cláudia Costin, ex-diretora global de educação do Banco Mundial, reforça: "na formação de professor, eles aprendem, além do conteúdo em si, a didática de matemática, psicologia da educação, todo o processo de evolução da criança. O pai vai estudar essas mesmas coisas? Muito provavelmente não".
Além do próprio ensino, a escola ainda é um espaço de segurança alimentar na realidade brasileira. "Uma criança na primeira infância pode fazer até cinco refeições na escola por dia", explica Luz. Em uma escala regional, a pesquisa "Conta Pra Gente Estudante", na Grande Rio, em 2023, revelou que 56% das crianças da rede pública de ensino têm a merenda escolar como única ou principal refeição do dia. Para crianças vulneráveis, o homeschooling pode implicar na perda de alimentação.
Entre os argumentos principais das famílias que buscam a educação domiciliar, a segurança se destaca. Porém, pesquisas apontam que o local mais perigoso para a criança, atualmente, é o próprio lar. No boletim de 2023 do Ministério da Saúde: para crianças de 0 a 9 anos, 70,9% dos casos de violência sexual ocorreram na residência da vítima; para adolescentes de 10 a 19 anos, esse percentual foi de 63,4%.
"Na sala de aula, a maior parte das notificações de violação seja psicológica ou física da criança, sobretudo a pequena, é a identificação do profissional que está ali na creche ou na pré-escola com ela todos os dias, que percebe manchas no corpo, que percebe mudança de comportamento, que percebe ou que captura num desenho, que são as formas de comunicação da criança, sobretudo pequenininha", aponta Luz.
Embora muito se fala sobre a fiscalização no lar, a denúncia direta sequer é o principal meio. "Justamente porque a violência infantil é tão complexa. Justamente porque ela acontece por uma pessoa que a criança ama e respeita. Até ver que aquilo é uma violência, a gente já está no extremo da situação, então normalmente o que acontece é o professor identificar as marcas ou essa mudança de comportamento", explica.
"Imagina se as crianças estão retiradas da escola, como é que vai acontecer? Não vai acontecer".
A desigualdade é outra faceta que tende a se aprofundar com a retirada das crianças de escolas. "Infelizmente quem está fora da escola hoje são as crianças menos favorecidas [...] justamente nas regiões onde há mais presença de trabalho informal", destaca Mariana. "Os riscos são enormes mesmo: aumento da evasão, do trabalho infantil, de pobreza".
Costin concorda: "Será que essa família tem condições de educar seus filhos? Eu soube de casos de professores universitários que estavam fora do país. Então, eles alfabetizaram seus filhos. Mas 82% dos estudantes brasileiros da educação básica estão em escolas públicas. Provavelmente, são famílias que não têm tantos recursos. Eles vão ter condições de praticar homeschooling? Não, não creio".
A desigualdade vai além, afetando, inclusive, os membros da família de formas diferentes. "Isso significa também que alguém do casal, ou o pai ou a mãe, não pode trabalhar". A carga recai, sobretudo, na mãe - aprofundando a desigualdade de gênero.
Entre as crianças, o mais velho tende a ter sua educação afetada, principalmente. "Se os irmãos não estão na escola, estão em homeschooling, aumentam as chances dos pais quererem que a irmã mais velha cuide das crianças mais jovens. Ela não vai para a escola, fica com as crianças pequenas e ninguém avança".
Pandemia: o grande teste
"É só olhar o que aconteceu com o desenvolvimento infantil durante o período da pandemia. Um grande teste do que seria uma sociedade, em que o homeschooling era a regra, é ver o que aconteceu com muitas crianças: retardo no desenvolvimento pleno", destaca Costin.
Estudo do Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais, em parceria com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, apontaram que, durante a pandemia, crianças tiveram grandes impactos negativos na educação. "As crianças perderam tiveram perdas imensas do seu desenvolvimento em linguagem e matemática [...] Mas também nas capacidades motoras, porque não podiam sair e se mexer. Tiveram perdas significativas no socioemocional também", disse Luz.
Neste cenário, para ambas as pesquisadoras, sequer a regulamentação da educação domiciliar é o caminho. Segundo Costin, "o ideal era proibir. Eu acho até que pode ser que no futuro a gente possa revisitar essa abordagem, mas no momento, não".
A lista de outros focos mais relevantes e que contribuem efetivamente para a qualidade da educação é longa. Entre tornar a profissão de professor mais atrativa, alocar professor em uma única escola, formação continuada do corpo docente e avanço em direção ao tempo integral, para as pesquisadoras, autoridades têm um plano claro de ação que não inclui homeschooling.