Atlas da Violência: os fatores que levaram Norte e Nordeste a serem as regiões com mais homicídios do Brasil

Facções criminosas, milícias, falta de estrutura das polícias e superlotação das prisões são apontados como determinantes para o crescimento da violência nas regiões.

5 jun 2019 - 12h08
(atualizado às 14h06)
O Brasil registrou 65.602 homicídios em 2017, segundo o Atlas da Violência
O Brasil registrou 65.602 homicídios em 2017, segundo o Atlas da Violência
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Norte e Nordeste vêm se revezando, nessa década, na ingrata posição de região mais violenta do Brasil.

Em 2017, os nove estados nordestinos chegaram novamente ao topo do ranking, segundo o Atlas da Violência - levantamento de homicídios relatados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

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A nova pesquisa, com dados relativos a 2017, foi divulgada na quarta-feira (05/06) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

No Nordeste, a taxa de homicídios chegou a 48 mortes por 100 mil habitantes em 2017. Já os sete estados do Norte bateram a marca de 47 assassinatos por 100 mil. Em 2007, esses índices eram menores que 30.

Como comparação, no Sudeste o índice médio de homicídios foi de 26,7 em 2017.

O Atlas da Violência resume o cenário. "Nos últimos anos, enquanto houve uma residual diminuição (da taxa de homicídios) nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, observou-se certa estabilidade do índice na região Sul e crescimento acentuado no Norte e no Nordeste."

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Por Estado, os números são ainda mais dramáticos. Enquanto São Paulo registra 10,3 homicídios por 100 mil pessoas - a menor taxa do país -, os nordestinos Rio Grande do Norte e Ceará bateram 62,8 e 60,2, respectivamente.

Já o Acre (62,2) e o Pará (54,7) despontam como campeões de homicídios no Norte.

Mas por que isso vem ocorrendo? Por que regiões antes consideradas mais tranquilas hoje vivem uma espécie de epidemia de assassinatos? A BBC News Brasil ouviu especialistas em segurança pública para tentar entender o fenômeno.

Superlotação de presídios

No presídio de Alcaçuz, na região metropolitana de Natal, ao menos 26 presos da facção Sindicato do Crime foram mortos por integrantes do PCC
Foto: AFP / BBC News Brasil

Em apenas dez anos, os homicídios no Rio Grande do Norte, por exemplo, deram um salto de 229% e colocaram o Estado na posição de mais violento do país nesse quesito. Em números absolutos, ele saiu de 589 assassinatos em 2007 para 2.203 em 2017.

Para Tadeu Brandão, pesquisador do Observatório da Violência do Rio Grande do Norte e professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, o crescimento econômico desordenado do Nordeste e a falta de boas estrututas no sistema carcerário e nas polícias ajudam a explicar a escalada da violência na região.

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"O boom econômico vivido pelo Nordeste não foi acompanhado por investimentos no treinamento e fortalecimento das polícias e melhorias no sistema prisional. Cidades até então pequenas e pacatas cresceram muito, mas a infraestrutura policial e social não acompanhou", explica.

"Por outro lado, a Justiça não se preocupou em combater as grandes redes criminosas, as facções. Ficou concentrada em prender pequenos traficantes, que vão para presídios em péssimas condições. Esses 'aviõezinhos', pequenos delinquentes, acabam sendo cooptados pelas facções e se tornam grande delinquentes", diz.

Já o sistema prisional do RN, como também ocorre em todo o país, é superlotado. Levantamento do governo federal relativo a junho de 2016, últimos dados disponíveis, apontam que o Estado tinha 4.265 vagas nas prisões, mas abrigava 8.696 detentos - mais que o dobro da capacidade.

Em janeiro de 2017, 26 presos foram assassinados no presídio de Alcaçuz, região metropolitana de Natal, durante uma disputa entre duas facções criminosas.

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Paraíba e Pernambuco vivem o mesmo drama da superlotação. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a Paraíba apresenta um déficit de 5.430 vagas - no total, o Estado tem 13.189 presos. Pernambuco tem 32.884 detentos para 11.689 vagas - déficit de mais de 21 mil.

O problema se estende à região Norte.

Em junho de 2016, o Amazonas tinha uma população carcerária de 11.390 pessoas para apenas 2.554 vagas - uma taxa de ocupação de 484%, a pior do país. Na semana passada, ao menos 55 presos foram assassinados em presídios do Estado, repetindo um massacre ocorrido em 2017.

As facções criminosas

O aumento da presença de facções criminosas é um dos fatores que explicam a alta de homicídios no Norte e no Nordeste
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Em meados da década passada, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), hegemônica no controle do tráfico em São Paulo, expandiu seus negócios para Estados nordestinos e do Norte. O mesmo ocorreu com o Comando Vermelho (CV), oriundo do Rio de Janeiro.

Elas passaram a atuar no atacado da droga, repassando os produtos para grupos menores venderem nas ruas. Esse processo foi relatado no livro A Guerra: a Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil (Ed. Todavia), escrito pelos pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias.

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A chegada dessas redes, levando a uma maior oferta de drogas e armas, aumentaram rivalidades entre traficantes locais.

"Essa dinâmica gerou muitos conflitos pelo controle de territórios urbanos. Houve uma grande entrada de armas, muitas delas de grosso calibre, para alimentar essas disputas e a violência", explica Luiz Fábio Paiva, professor de sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará.

"Os Estados não se preparam para esse fenômeno, não investiram na renovação das estruturas de segurança pública."

Grupos locais surgiram para se contrapor à presença do PCC. São os casos do potiguar Sindicato do Crime e da paraibana Okaida, que cresceram principal com aliciamento de jovens e adolescentes.

Essas quadrilhas se aliaram ao CV e à Família do Norte, do Amazonas, para funcionar como alternativa à atuação dos paulistas no mercado da droga.

No Ceará, ao menos quatro facções se dividem no controle do tráfico de drogas - PCC, CV, Guardiões do Estado e Família do Norte.

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Na semana passada, ao menos 55 presos morreram em um massacre em presídios de Manaus
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Já a região Norte é estratégica por dois motivos: serve como escoamento de drogas para a Europa e é uma rota de transporte de drogas produzidas em países vizinhos, como Colômbia e Peru.

A Família do Norte hoje tem forte influência na área, controlando a tríplice fronteira, onde agencia produtores e as chamadas "mulas" para transportar a droga para o Brasil.

O mais recente massacre nos presídios de Manaus, quando 55 presos foram mortos, foi motivado por uma disputa pelo controle dentro da facção.

Outras facções também atuam na área, embora com poder de fogo menor que a Família do Norte. É o caso do Bonde dos 13, que disputa o controle do tráfico no Acre com CV e PCC.

"O crescimento econômico das regiões Norte e Nordeste também formou novos mercados consumidores de drogas que antes não eram encontradas. Não é que o Nordeste e o Norte apenas são rotas de passagem para o tráfico, eles também passaram a consumir", diz Paiva.

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"Além disso, tem a dinâmica do crime organizado", diz Renato Sergio de Lima, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

"Enquanto 15 Estados do país reduziram a violência, 12 puxaram o crescimento para cima, e eles estão justamente nessas regiões (Norte e Nordeste). 2017 foi o ápice da briga por rotas nacionais e internacionais de drogas e armas."

A presença das milícias

Além do Acre e do Amazonas, o Estado do Pará também registrou aumento expressivo dos homicídios. Segundo o Atlas da Violência, a taxa de assassinatos subiu 81% entre 2007 e 2017.

Um fator diferente ajuda a explicar a alta: a presença de milícias armadas, tanto nas regiões rurais quanto na capital, Belém.

Em entrevista recente à BBC News Brasil, o promotor militar Armando Brasil, responsável do Ministério Público paraense por investigar má conduta de policiais militares, o Pará enfrenta um conflito armado entre grupos de traficantes e milícias.

Segundo promotor Armando Brasil, bairros da periferia de Belém têm presença de milícias armadas e grupos de traficantes
Foto: Agência Pará / BBC News Brasil

No ano passado, mais de 40 policiais militares morreram no Estado. Em alguns casos, as mortes foram seguidas por chacinas em bairros pobres.

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No dia 24 de outubro de 2017, por exemplo, três dias depois de um final de semana violento, oito pessoas morreram e três ficaram feridas quando dois motoqueiros abriram fogo em uma rua do bairro Tapanã, na periferia da capital. Cinco dias antes, um policial tinha morrido no mesmo bairro.

No campo, a disputa fundiária também produz violência. Em 24 de maio de 2017, dez militantes sem-teto foram assassinados em uma ocupação - 16 policiais militares foram acusados pelo crime, mas ainda não foram julgados.

"As milícias ganharam poder em razão dessa ausência do Estado nos bairros mais pobres. Se o Estado não ocupa os espaços públicos da forma devida, se não oferece segurança para a população, se não faz policiamento em áreas com muitos roubos, os milicianos passam a oferecer esses serviços", disse o promotor.

Planos de segurança

Para tentar diminuir os índices de violência, governos estaduais criaram planos de segurança que, certa forma, atingiram o objetivo a curto prazo.

É o caso do Programa Paraíba Unida pela Paz, um dos responsáveis pela redução na taxa de homicídios no Estado que ocorre desde 2011.

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O projeto foi inspirado no Pacto Pela Vida, criado pelo ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos. O programa, que priorizava investigações de homicídios, conseguiu diminuir em 31% o número de mortes violentas em Pernambuco entre 2008 e 2013, mas depois os índices voltaram a subir.

Em 2017, segundo o Atlas da Violência, a taxa de homicídios no Estado chegou a 57,2 por 100 mil habitantes - um crescimento de 7% em relação a 2007, anulando a queda anterior.

Para Paiva, os programas de segurança são benéficos, mas precisam ser encarados como políticas de Estado e não apenas do governo de ocasião.

"Os programas falam de integração entre as polícias, Ministério Público e Justiça. Com o passar o tempo e a mudança de governos, o foco muda e fica mais difícil cobrar efetividade. Então, esses projetos funcionam a curto prazo, mas não conseguem mudar as estruturas da violência", diz.

Colaborou Paula Adamo Idoeta

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