A ecologia dos espíritos e a conservação da biodiversidade na Amazônia

A existência de entes espirituais nos ecossistemas e suas relações com a Amazônia ainda é uma lacuna nos estudos biológicos e antropológicos sobre criação e conservação da biodiversidade na região

17 dez 2025 - 13h15

A situação climática global e suas consequências têm colocado a Amazônia no centro do debate sobre as possibilidades de futuro. O extenso relatório publicado pelo Painel Científico para a Amazônia (SPA) informa que a maior floresta tropical do mundo continua a ser tomada como uma frente de expansão para o capital neoextrativista e agroindustrial, mas também que há uma crescente preocupação e esforços locais e globais com a conservação e proteção da Amazônia em função dos serviços ecossistêmicos que presta ao planeta e por sua enorme sociobiodiversidade.

As vozes dos povos da floresta — indígenas, ribeirinhos e quilombolas, ecoando cada vez mais fortes e atingindo uma audiência cada vez maior — têm sido fundamentais para o reconhecimento tanto da imensa diversidade que constitui a Amazônia quanto dos riscos e agressões a que a floresta e seus povos estão atualmente expostos.

Publicidade

Os conhecimentos indígenas têm um papel ativo no manejo histórico das paisagens, contribuindo para a atual conformação das ecologias amazônicas. Ainda assim, é da perspectiva da governança global e da ciência ocidental que a "proteção" e a "conservação" da Amazônia e de sua biodiversidade são usualmente encaradas.

Os conhecimentos tradicionais nunca estiveram tão em voga e foram tão valorizados nas soluções para a crise climática e ambiental como o são atualmente mas, em boa medida, seguem sendo medidos e pesados frente às ciências naturais, que considera estas ciências ancestrais apenas como suplementares ao conhecimento científico naturalista. Em outras palavras: "explicações culturais" para "fenômenos naturais".

Ao mesmo tempo, como aponta um recente relatório das Nações Unidas, os povos indígenas e comunidades tradicionais estão sendo deixados para trás nos esforços de enfrentamento às mudanças climáticas, onde encontram barreiras estruturais que os impedem de ter acesso aos financiamentos climáticos internacionais.

Mas o que acontece quando os conhecimentos indígenas, ribeirinhos e quilombolas desafiam os pressupostos das ciências naturais e das estratégias de conservação ambiental, quando desafiam seu entendimento do que é o mundo e de como ele se mantém?

Publicidade

Tudo vai bem quando os conhecimentos tradicionais podem ser traduzidos em termos das taxonomias e dos processos naturais que sustentam as práticas científicas. Mas e quando as populações amazônicas apontam para a existência de seres espirituais como responsáveis pela criação e reprodução de determinadas espécies animais e vegetais ou pelo cuidado e proteção de lugares e ambientes?

As cosmo-ecologias amazônicas

As cosmologias dos povos amazônicos descrevem o mundo como habitado por uma pluralidade de seres espirituais. Dentro de sua multiplicidade e complexidade existencial, impossível de resumir aqui em tão poucas linhas, chamamos atenção especialmente para o que podemos nomear genericamente de "espíritos".

São entes que nutrem uma relação particular, de controle ao mesmo tempo que de cuidado, com determinadas espécies, com lugares específicos ou com o próprio equilíbrio do mundo: são os donos, mestres, encantados e mães de espécies vegetais, animais e minerais, espíritos auxiliares de xamãs, santos ou visagens.

Os "donos", "mestres" ou "mães", por exemplo, são seres que se situam em diversos patamares (celeste, terrestre, aquático, fundo da terra), vivem em lugares sob seus domínios (lagos, igarapés, florestas, serras) e controlam e cuidam de determinadas espécies, sendo responsáveis pela existência desses animais e vegetais, bem como por sua reprodução.

Publicidade

Em seus domínios cósmicos, esses seres criam porcos do mato, tartarugas e outros animais em "currais", e deixam suas criações sair dali para que as pessoas humanas possam delas se alimentar. Essa é uma imagem bastante difundida entre diversos povos amazônicos. Outros seres estabelecem essa relação de domínio com lugares específicos, como um lago, um trecho do rio, uma árvore de grande porte, ou uma porção da mata. É deles que vêm a fertilidade e a potência de vida desses lugares - as espécies que ali coabitam, a água que corre no igarapé etc. Se eles se afastam ou morrem, seus lugares também perecem - os animais somem, as plantas morrem, os igarapés secam.

Há ainda os "espíritos" que ativamente mantêm o equilíbrio dinâmico do mundo. Um exemplo disso são os xapiri, descritos pelo povo Yanomami, que sustentam o céu, como nos conta o xamã Davi Kopenawa no livro A queda do céu, escrito em conjunto com o antropólogo francês Bruce Albert: se os xapiri se afastarem, a floresta morrerá, o céu caíra sobre a terra e não haverá mais mundo.

A existência desses seres é muito bem conhecida e extensamente documentada, sobretudo em pesquisas antropológicas, como podemos observar nos diversos capítulos do relatório Povos Tradicionais e Biodiversidade no Brasil publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). No entanto, a existência desses entes espirituais nos ecossistemas e suas relações com a biodiversidade na Amazônia ainda é uma lacuna nos estudos biológicos e antropológicos sobre criação e conservação da biodiversidade.

Se é verdade que novas espécies são identificadas em estudos com a participação de povos amazônicos, geralmente a rede de saberes, histórias e práticas que conecta tais espécies identificadas a seus donos, mães e lugares de origem é cortada do conhecimento produzido.

Publicidade

Foi a partir dessa constatação que propusemos o projeto "Ecologia dos Espíritos: conhecimentos tradicionais e conservação da sociobiodiversidade na Amazônia", contemplado na Iniciativa Amazônia+10, com financiamento do CNPq, e das fundações de amparo a pesquisa dos estados do Amazonas (Fapeam) e do Pará (Fapespa).

O projeto de pesquisa

Nosso projeto busca produzir um panorama de conhecimentos etnográficos sobre o manejo e conservação da sociobiodiversidade por parte de uma diversidade de povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia, tomando como foco esses seres espirituais e suas existências em assembleias socioecológicas e as relações que estes povos estabelecem com eles.

Acreditamos que os resultados da pesquisa darão sustentação empírica para a ideia de que a maneira como as populações indígenas e tradicionais amazônicas lidam com a biodiversidade está inseparavelmente ligada às suas cosmo-ecologias, que concebem uma floresta animada por seres espirituais, nos permitindo compreender outros modos de se relacionar no ambiente.

Para isso, é preciso levar a sério os conhecimentos tradicionais desses povos, não como meras alegorias culturais para fatos naturais, mas como conhecimentos legítimos sobre a constituição do mundo. Não reduzir as formulações locais sobre a existência dos seres espirituais como "crença", "cultura", "lenda" ou "folclore", mas sim tomá-los como modos de existência, ou como formas de estar no mundo que não se encontram separadas das relações com pessoas, plantas, fungos, animais e outros agentes minerais relevantes na paisagem.

Publicidade

Levar a sério, portanto, implica em desenvolver práticas científicas que se abram para conversações com as criatividades presentes nas cosmo-ecologias dos povos da Amazônia, reconhecendo o papel dos seres espirituais para a conservação da biodiversidade e na mitigação das mudanças climáticas, o que continua sendo um fator subestimado, pouco pesquisado e mal compreendido para explicar os desafios da Amazônia contemporânea.

Iniciado neste ano e com duração prevista até o início de 2028, o projeto se encontra ainda nas fases iniciais de execução. Dentre os resultados planejados, destacamos a produção de uma coleção digital multimodal de dados e narrativas, oriundos das pesquisas nos diferentes territórios, constituindo uma forma imediata de conhecer e visualizar a diversidade de formas de conservação da sociobiodiversidade a partir da relação dos povos amazônicos com os seres espirituais.

Esperamos que o projeto Ecologias dos Espíritos, realizada em rede por meio de um conjunto de pesquisas colaborativas, implicadas e reflexivas, possa nos fornecer uma imagem da Amazônia e de seus povos que contribua para o tensionamento, no âmbito do debate científico e do debate público, dos pressupostos que animam os discursos hegemônicos sobre a conservação da sociobiodiversidade amazônica.

Se a Amazônia aparece cada vez mais como o centro do debate sobre as possibilidades de futuro(s), é preciso multiplicar entendimentos, sendo a partir dos conhecimentos tradicionais dos povos amazônicos que as estratégias e ações presentes precisam ser formuladas.

Publicidade

Este artigo contou com a colaboração e co-autoria dos seguintes pesquisadores do projeto: Darlem Teixeira Penaforth (indígena Kaixana, engenheiro de pesca e Mestrando em Antropologia Social pela UFAM); Elaine Cristina Guedes Wanderley (indígena Parintintin, arqueóloga, historiadora e Doutoranda em Antropologia Social pela UFAM); Emerson Saw Munduruku (indigena Munduruku, Pedagogo e Mestre em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais - UnB); Gilberto Oliveira (pesquisador quilombola, farmacêutico e Mestrando em Antropologia Social pela UFAM); Izabel Maria Bezerra dos Santos (Jornalista e Mestranda em Antropologia Social pela - UFAM); José Carlos Almeida Cruz (indígena Piratapuia, pedagogo, Mestre e Doutorando em Antropologia Social pela UFAM); Mariana Spagnuolo Furtado (Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC); Mario dos Santos Cruz (indígena Omágua-Kambeba, pedagogo, Mestre e Doutorando em Antropologia Social pela UFAM); Melanie Theresia Peter (Mestre e Doutoranda em Antropologia Social pela UFAM); Nayara Marcelly Ferreira da Silva (Doutoranda em Antropologia Social pela UFAM); Rosijane Fernandes Moura (indígena Tukano, licenciada em Letras, Mestre e Doutoranda em Antropologia Social pela UFAM).

The Conversation
The Conversation
Foto: The Conversation

Carlos Calenti recebe financiamento do CNPq.

Eduardo Soares Nunes recebe financiamento da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (FAPESPA).

Miguel Aparicio é membro do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados, organização na qual atua como presidente

Nicole Soares-Pinto é membro da Assembléia Geral do Centro de Trabalho Indigenista. Já recebeu financiamento de pesquisa do CNPQ, FAPERJ, FAPES e Ford Foundation.

Rafael Vitorino Devos recebe financiamento do CNPq (Bolsa PQ).

Publicidade

Thiago Mota Cardoso não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
Curtiu? Fique por dentro das principais notícias através do nosso ZAP
Inscreva-se