'Todo gay transfóbico é um traidor': artista revela queda de perfil após onda de denúncia

Proposta de ativistas LGBs que daria independência do restante da sigla é avaliada como transfóbica por associações e especialistas

11 out 2025 - 04h59
Resumo
A proposta de separação dos LGBs das pessoas trans na sigla LGBTQIAPN+ tem gerado críticas e é considerada um retrocesso que enfraquece a luta coletiva por direitos e cidadania da comunidade. Para grupo autor do manifesto, políticas específicas para lésbicas, gays e bis só podem avançar se forem discutidas sem as pautas de identidade de gênero.
Rô Vicentte relata episódios transfóbicos vindo de dentro da comunidade LGBTQIAPN+
Rô Vicentte relata episódios transfóbicos vindo de dentro da comunidade LGBTQIAPN+
Foto: Arquivo pessoal

Episódios de transfobia dentro da comunidade LGBTQIAPN+ são recorrentes. Pelo menos essa é a avaliação de Rô Vicente de Moura, artista de 29 anos e uma pessoa trans não-binária. "Por não seguir uma norma de gênero esperada por outras pessoas LGBT ou pela própria cisgeneridade e heterossexualidade", avalia.

Um caso marcante foi a derrubada de seu perfil no Instagram --criado há quase dez anos e que era usado para a criação de conteúdo temático principalmente de sua vivência como pessoa trans-- após uma onda de denúncias sem motivo. 

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O episódio, para Rô, revela transfobia e simboliza a dificuldade de pessoas trans manterem espaços de expressão mesmo dentro da própria comunidade.

"A sociedade nunca deu essa possibilidade de visibilidade para pessoas trans. A gente foi acostumado a ver pessoas trans nesse lugar da marginalização, das ruas, das esquinas, da prostituição", pontua.

Grupos LGB anunciam 'saída' da sigla LGBTQIAPN+, comparando movimento ao Brexit — saída do Reino Unido da União Europeia
Foto: Reprodução/X

Nas últimas semanas, essa relação conflituosa entre pessoas LGBTQIAPN+ descrita voltou a ser discutida na internet. "Hoje, lésbicas, gays e bissexuais têm uma nova organização global", escreveu o perfil da LGB Internacional --rede que reúne organizações voltadas para estas orientações sexuais em diferentes países-- na legenda de um vídeo de "declaração de independência".

Na publicação, representantes da organização afirmam estar "cansados de pessoas que não são lésbicas, gays ou bissexuais falando por nós, em nosso nome" e defendem a saída da sigla, já que identidade de gênero e orientação sexual são pautas distintas e teriam demandas separadas.

Para o grupo, políticas específicas para LGBs só podem avançar se forem discutidas sem as pautas de identidade de gênero. Portanto, a entidade afirma que sua principal missão é eliminar estereótipos de gênero impostos pela sociedade patriarcal. "A homofobia é a punição social para quem frustra tais expectativas. É contraditório 'acolher' identidades de gênero (pessoas trans) que reafirmam estereótipos do que é ser uma mulher ou um homem, especialmente quando essas identidades pretendem apagar a materialidade do sexo", justificou ao Terra a Aliança LGB Brasil, filiada à LGB Internacional.

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A publicação do vídeo pelo perfil da Aliança LGB motivou acusações de transfobia e respostas de perfis contrários ao manifesto, que passaram a compartilhar a frase "Todo gay transfóbico é um traidor" ou "Toda lésbica transfóbica é uma traidora", em defesa da manutenção da união da sigla.

"A LGB não tem e nunca teve intenção de ofender e discriminar pessoas trans porque são trans; a separação se dá por um acúmulo teórico e prático de que gênero não é performance individual e nem identidade subjetiva. Gênero é uma construção social, cujo marcador primeiro e fundante é o sexo, para oprimir e explorar mulheres. Se pretendemos desconstruir o gênero --porque é ele o causador da homofobia, inclusive - não é possível promover identidades que o reforçam", responde a entidade.

O grupo entende que conquistas como o casamento homoafetivo e a proteção de espaços femininos --como banheiros -- estão em risco por causa do que chamam de "apagamento dos marcadores materiais do sexo". E alega, ainda, representar um número crescente de pessoas LGB que não se sentem mais representadas pela agenda de pessoas trans ou queer.

Pessoas trans responderam 'ruptura' de grupos LGB em protestos em que pedem união de todas as letras da sigla
Foto: Arquivo pessoal/Daniel Viana (ZUMBICORE) | Rô Vicentte

Higienização da comunidade

O gesto separatista "repete uma história longa de transfobia dentro do próprio movimento", avalia a pesquisadora e doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo, Andreone Medrado. Para ela, a separação de LGBs das pessoas trans é um método de "higienização das identidades".

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"É nitidamente uma tentativa de reafirmar um privilégio cisgênero, ainda que a partir das sexualidades dissidentes, como gay, lésbica e bissexual, como se houvesse um lugar puro e natural da homossexualidade cisgênera", segue Andreone.

A estudiosa defende, ainda, ser necessário lembrar que corpos trans costumam ser atravessados por outros marcadores sociais, como a negritude e a pobreza, que aumentariam as consequências concretas da exclusão proposta. "Quando gays e lésbicas cisgêneros decidem romper conosco, eles estão repetindo uma lógica colonialista que busca limpar o movimento daquilo que consideram 'impróprio', 'sujo', 'indesejável'."

Para o doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), Cleyton Feitosa, esse manifesto dos grupos LGB revela "uma posição conservadora e que se assemelha a posições da extrema-direita e de alguns grupos feministas radicais que negam o social e o cultural no gênero e argumentam que o que importa é a biologia, a natureza". 

"A ideia é tão conservadora que sequer considera as pessoas intersexos . Para esses grupos, somos apenas machos e fêmeas. O que difere a LGB Internacional, então, de um líder evangélico da Câmara Federal brasileira é apenas a variável 'orientação sexual'. Tirando isso, parecem pensar iguais: pessoas trans e suas pautas atrapalham a família e a normalidade social", afirma Cleyton. 

Ele também classifica o discurso da Aliança LGB como transfóbico: "As declarações que eu li ultrapassam as disputas costumeiras do movimento e colocam os atores em posições antagônicas em que os ganhos de um grupo representam as perdas do outro."

Cores da bandeira trans são projetadas no Congresso Nacional no Dia da Visibilidade Trans, em 29 de janeiro
Foto: @hilton_erika via Instagram / Estadão

O que pensam outras organizações LGBTQIAPN+

Diretor-presidente da Aliança Nacional LGBT+ --que, apesar dos nomes parecidos, não tem relação com a Aliança LGB--, Toni Reis reagiu ao manifesto afirmando respeitar a autonomia de cada grupo, mas disse que sua organização continuará defendendo a união entre as diferentes identidades da comunidade. "Quanto mais pessoas virem para a nossa luta, melhor. E separar não é uma estratégia nossa", disse em contato com a reportagem.

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Ele destacou que a força do movimento sempre esteve na coletividade, que foi essencial para conquistas como o casamento homoafetivo, a adoção por casais do mesmo sexo e o direito das pessoas trans à mudança de nome e de gênero. Para Reis, a luta conjunta é o que garante avanços concretos em direitos civis, mesmo quando o movimento tem divergências internas.

Já a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), referência na articulação para a promoção da cidadania e dos direitos de pessoas trans no Brasil, lembrou que "a história do movimento LGBTQIA+ no Brasil foi escrita com travestis e pessoas trans na linha de frente, enfrentando violências, ditaduras e a marginalização que muitos hoje preferem esquecer". "Negar esse protagonismo e as alianças históricas que têm sido construídas é zombar de nossa memória", criticou a associação em nota publicada nas redes sociais.

A Antra classificou o objetivo da proposta da LGB Internacional como algo que "fomenta exclusão, cisnormatividade e ódio contra pessoas trans e travestis". "Permitir que esse tipo de articulação avance em nosso país é abrir as portas para a mesma lógica que já excluiu lésbicas de espaços feministas e silenciou gays em ambientes públicos", finaliza a entidade.

Fonte: Portal Terra
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