Miriam Leitão sobre sofrer tortura nua e grávida na Ditadura Militar: 'Marca profundamente'

Ao Terra, ela relembrou o período de dois meses no quartel e o classificou como traumatizante

4 nov 2025 - 04h59
(atualizado às 07h25)
Resumo
A jornalista Miriam Leitão, em entrevista, relembrou as torturas sofridas durante a Ditadura Militar, destacando os traumas vividos no período e ressaltando seu compromisso com a defesa da democracia e o combate à desinformação sobre o regime militar.
Miriam Leitão conversa sobre tortura que sofreu no regime militar
Miriam Leitão conversa sobre tortura que sofreu no regime militar
Foto: Reprodução | Instagram

A jornalista Miriam Leitão, de 72, relembrou a tortura que sofreu durante dois meses na Ditadura Militar (1964-1985). Em 1972, quando ainda era apenas uma estudante e militante do PCdoB, ela foi abordada em uma praia, na companhia de um antigo namorado, e levada ao quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, em Vitória, no Espírito Santo. Lá, ela foi trancada em uma sala, sem roupas e na companhia de uma cobra —  uma forma de mantê-la sob constante medo e ameaça.

Grávida, em dois meses de reclusão, ela chegou a pesar 39 kg, 11 a menos do que o de costume. Em entrevista exclusiva ao Terra, ela classificou o episódio de traumatizante. “Eu vi tudo [o que faziam com as pessoas]. Eu cheguei na idade adulta durante os anos de chumbo. Depois do AI-5, então... não teve mais ou menos. Eu vi o horror de frente. E isso consolidou essa minha visão sobre democracia”, contou ela.

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Após o suplício, Miriam Leitão relutou em contar sua história. Ela passou 42 anos em silêncio sobre os terrores que viveu no quartel. Quando falou pela primeira vez sobre o caso, nos idos de 2010, nem seu filho sabia o que ela tinha vivido. Para ela, o que a motivou a falar foi o fato de as Forças Armadas negarem episódios de tortura e chamarem os relatos apresentados em uma comissão de “desvio de função”.

“Eu nunca na minha vida tinha revelado nada, nunca tinha contado publicamente da prisão. Não era segredo também, algumas pessoas que me conheciam sabiam, mas eu não tinha falado publicamente. Eu passei a falar como parte do processo de defesa da democracia”, disse ela, que logo depois contextualizou:

Ficha de Miriam Leitão feita quando deu entrada no quartel
Foto: Divulgação | Superior Tribunal de Justiça

“Quando, na discussão da Comissão da Verdade, as Forças Armadas disseram que não teve tortura, eu não pude ouvir isso em silêncio. Eu não fui à Comissão da Verdade como vítima, eu nem fui à Comissão da Verdade, eu cobri a Comissão da Verdade. Sou jornalista, meu trabalho é contar. Se eu não falasse de mim, do que eu vi, testemunhei e sofri, eu estava sonegando uma informação importante no debate público. Então, eu falei, e eu não falo porque gosto — ninguém gosta de falar, isso é um assunto que dói.”

Durante seu período de cárcere, Miriam diz que passou por agressões físicas e ameaças — muitas delas em situação de nudez, com o intuito de deixá-la em posição de vulnerabilidade. Em uma das ocasiões, um dos agentes teria insinuado que, com um simples comando, ela poderia ser abusada pela tropa de militares. Um de seus principais algozes teria sido Paulo Malhães, coronel do Exército. Em março de 2014, ele confessou alguns de seus crimes; apenas um mês depois, foi encontrado morto. Segundo informações da polícia, antes de morrer, Malhães foi mantido refém em sua casa, em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro.

Apesar do destino que o coronel do Exército teve, as marcas deixadas em Miriam são profundas. Entre os episódios que viveu, há também a privação de sono. Quando pensava em descansar os olhos, os soldados soltavam os pastores alemães em sua cela. Segundo ela, eles não mordiam, mas pareciam agitadados e com potencial de estraçalhar alguém. Para irritar os animais, os agentes ainda gritavam: "Terrorista!".

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Miriam Leitão posa para fotografia 3x4
Foto: ARQUIVO PESSOAL

“Cada vez que você fala, dói de novo, mesmo tanto tempo depois, porque a tortura tem uma característica de marcar uma pessoa muito profundamente. Então, por que falo? Falo porque eu acho que faz parte do trabalho de convencimento dos mais jovens. Teve muita propaganda, muita desinformação sobre esse período [militar]. Os jovens, as novas gerações, foram submetidos a muita informação equivocada sobre o que aconteceu na Ditadura Militar e sobre os defeitos, e acham que vamos nos resolver agora com outra ditadura. Então, eu, como uma democrata convicta, ativista da democracia, se for preciso, eu falo.”

Muito além da defesa da democracia e de relembrar as novas gerações, Miriam conta que também fala sobre sua experiência no quartel porque não foi uma experiência isolada, mas sim algo que afetou o coletivo. “O meu testemunho não é uma queixa individual, como se fosse uma queixa da vida. É uma fala testemunhal, e existe uma diferença que parece tênue, mas é diferente na maneira como eu conto, porque eu sei o que aconteceu nos quartéis — porque eu estava lá. Então, não é uma questão individual, não. É uma questão coletiva. Eu não falo como uma pessoa, eu faço parte de um coletivo. Eu faço parte do coletivo dos democráticos, dos que defendem a democracia. Em nome desse coletivo que eu falo.”

Miriam Leitão, durante juventude, tomando banho de sol
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Questionada sobre como combate as ameaças à democracia na atualidade, Miriam Leitão fala de seu trabalho. Segundo ela, todo jornalista, por natureza, deve defender a democracia — e ela, ao longo dos anos, tem dedicado sua carreira a isso.

“Eu entrei na idade adulta já vendo o horror instalado no país; minhas convicções democráticas são muito profundas, são inamovíveis. Se a democracia está em perigo, eu estou a postos. No meu livro Democracia na Armadilha, que publiquei em 2021, eu já falava que estava sendo preparado um golpe. Eu falei com todas as forças, usei toda a capacidade da minha voz para dizer que havia um golpe em curso. Hoje, quando a gente vê que generais, almirantes e ex-presidentes estão condenados por tentativa de golpe de Estado, vemos que seguimos o caminho certo em alertar o público”.

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Quem é Miriam Leitão

Miriam Leitão em preparação para entrar ao vivo na Globo
Foto: Divulgação | Globo

Natural de Caratinga (MG), Miriam Leitão é jornalista e escritora com uma trajetória de 53 anos de carreira. Formada em jornalismo, atuou em diferentes meios — imprensa escrita, rádio, televisão e mídias digitais. Focada em economia e política, se consolidou como uma das vozes mais influentes da imprensa brasileira.

Ao longo da carreira, recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, entre eles o da Universidade Columbia de Nova York, além de reconhecimentos da Abraji, ANJ e do Instituto Vladimir Herzog. Como escritora, venceu o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, em 2012, com Saga Brasileira (Record).

Para além disso, publicou Tempos Extremos (2014), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura; História do Futuro: o horizonte do Brasil no século XXI (2015); A Verdade é Teimosa (2017); a coletânea Refúgio no Sábado (2018), finalista do Jabuti; A Democracia na Armadilha (2021); e Amazônia na Encruzilhada (2023). Em 2025, Miriam Leitão foi eleita para a cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras (ABL), coroando uma trajetória marcada pela reflexão, pela defesa da democracia e pelo compromisso com a escrita.

Fonte: Portal Terra
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