Após anos de dedicação aos estudos, Samille Ornelas conquistou sua tão sonhada vaga no curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2024. No entanto, embora se autodeclarasse parda, a universidade indeferiu sua matrícula inicial sob a alegação de que a estudante não possuía "as características fenotípicas" exigidas para o sistema de cotas raciais.
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Depois de entrar com uma ação judicial, Samille conseguiu iniciar o curso no primeiro semestre de 2025, após um ano de espera. Porém, no final do período, quando estava prestes a fazer as últimas duas provas, a liminar que garantia sua permanência foi cassada, obrigando-a deixar a universidade.
A estudante, atualmente com 31 anos, contou ao Terra que veio de uma família simples, nasceu no interior da Bahia e se mudou para Minas Gerais ainda criança. Estudou sozinha durante anos, contando apenas com aulas no YouTube, enquanto conciliava os estudos com longas jornadas de trabalho em regime de 12x36 horas.
"Aproveitava todo o tempo livre, nos intervalos do almoço, nas madrugadas e folgas, para estudar. Já fiz o Enem 12 vezes, mas com foco exclusivo em Medicina a partir de 2019. Em 2024, finalmente fui aprovada no Sisu para Medicina na UFF, por meio da política de cotas para pessoas pretas e pardas", relembrou.
No entanto, a jovem foi surpreendida pela negativa da banca de heteroidentificação da universidade, que a indeferiu com base em um vídeo de 17 segundos, exigido na pré-matrícula online. O sistema permite apenas vídeos curtos, limitando seu conteúdo a uma breve declaração. "Eu me autodeclaro parda", seguida de um movimento em que virava o rosto para os dois lados.
"A banca não fornece justificativas individuais. Apenas divulga uma lista com o resultado como 'apto' ou 'inapto', com a justificativa genérica de que o candidato 'não possui características fenotípicas', sem explicar o que isso significa ou quais critérios são considerados", disse Samille. "O recurso administrativo precisa ser feito em apenas um dia, sem tempo suficiente para compreender ou responder adequadamente à decisão. Mesmo assim, apresentei fotos, documentos pessoais e até comprovantes de que já havia sido beneficiária do Prouni na mesma modalidade de cota racial", acrescentou.
Apesar dos esforços, seu recurso foi negado. Diante da recusa, Samille acionou a Justiça. O juiz analisou todas as provas, incluindo um laudo antropológico, e reconheceu sua identidade racial como parda, concedendo uma liminar que obrigou a UFF a efetuar sua matrícula --o que só aconteceu em 2025, fazendo-a perder um ano inteiro de vida acadêmica.
Já matriculada e frequentando as aulas, Samille teve sua permanência contestada pela UFF, que recorreu da decisão judicial. Na apelação, a universidade alegou que o caso já havia sido analisado pela instituição e que a estudante estaria ocupando a vaga de outro candidato que realmente se enquadraria nos critérios de cotas raciais.
"O juiz de segunda instância ignorou completamente as provas apresentadas, fotos, laudo, documentos, e, independente das evidências, manteve a decisão da banca", relatou. "Sem aviso prévio ou direito à defesa, minha matrícula foi cancelada imediatamente, e todos os meus acessos ao sistema da UFF foram bloqueados. Só descobri o que estava acontecendo quando fui impedida de entrar no restaurante universitário junto aos meus colegas, me constrangendo e me deixando completamente paralisada e, mais uma vez, invalidada", lamentou Samille.
Abalo emocional
A perda da vaga na universidade ocorreu em um dos momentos mais difíceis da vida de Samille. Ela havia perdido recentemente o pai e a avó, suas principais referências de apoio emocional e financeiro. Atualmente vivendo sozinha em outro estado e dependendo da ajuda de familiares, a estudante afirma que vê toda sua trajetória de esforços e sua identidade sendo negadas.
Samille também destaca a dor de nunca ter tido a chance de ser avaliada presencialmente. "A decisão foi tomada com base em um vídeo curto e superficial, ignorando completamente meu rosto, meus traços, meus documentos e minha vivência como mulher parda. O que eu sabia sobre mim, o que cresci ouvindo, as experiências que tive. Dentro da minha família e dos meus círculos, sempre fui reconhecida como parda. Já sofri racismo por causa da minha cor. Já tive bolsas em outra universidade por causa da minha cor. E agora me vejo negada pela mesma razão. É como se tudo que vivi fosse uma mentira."
A estudante relata que chegou a duvidar de si mesma. "No início, me senti uma impostora. Perguntei a mim mesma: 'Será que usei a cota indevidamente? Será que cometi uma fraude?' Comecei a buscar validação nos outros, perguntando o tempo todo como me viam. Tive que reconstruir minha autoestima."
O vídeo em que relata seu caso viralizou, alcançando 1 milhão de visualizações em 24 horas. "Espero que essa visibilidade ajude não só a mim, mas a tantos outros que passam pelo mesmo", diz, referindo-se às mensagens que recebeu de pessoas com experiências similares. Samille destaca a necessidade de debater os critérios para identificação de pardos. "Há um gargalo nessas bancas - vidas e sonhos estão sendo destruídos por avaliações frágeis que ignoram a diversidade de traços".
Mesmo diante das adversidades, a estudante mantém-se determinada a seguir seu propósito. "Já estou com os livros abertos estudando de novo. Medicina não é só um sonho, é minha missão de vida", afirma. Apesar de admitir a dificuldade emocional, Samille se recusa a desistir. "Se não der certo pela Justiça, uma hora vai dar. Passei uma vez, posso passar outra". Enquanto aguarda decisão judicial, afirma esperar que seu caso pelo menos sirva para mudar o sistema.
"Só peço o direito de ser ouvida e reavaliada de forma presencial pela banca, que me negou por meio de um vídeo de 17 segundos, sem justificar quais características consideram ou não. Que minha história,feita de tanta luta, suor e perseverança, não seja descartada por decisões frias e desumanas. Eu só queria estudar. Mas a única coisa que tenho conquistado, mesmo com tanto esforço, é dor, exclusão e apagamento", finalizou.
O que diz a universidade?
Em nota, a universidade afirma que a análise do caso de Samille foi conduzida por comissões compostas por servidores e estudantes capacitados, que passam por formação específica e continuada em temáticas étnico-raciais. Veja a nota na íntegra:
"A Universidade Federal Fluminense (UFF) informa que o caso envolvendo a candidata Samille Ornelas encontra-se atualmente sob apreciação judicial. A instituição reitera seu compromisso com o cumprimento rigoroso das determinações do Poder Judiciário, preservando a lisura e a legalidade de todos os seus atos administrativos, sem qualquer interferência ou decisão autônoma enquanto vigente a judicialização.
Em relação aos procedimentos de heteroidentificação, a UFF esclarece que as análises são conduzidas por comissões compostas por servidores(as) e estudantes capacitados(as), que passam por formação específica e continuada em temáticas étnico-raciais, visando à construção de um processo técnico, criterioso e respeitoso com os direitos das pessoas autodeclaradas negras.
A universidade reafirma sua defesa incondicional das políticas afirmativas e de reserva de vagas no ensino superior como instrumentos de justiça social e combate às desigualdades históricas. Reconhecendo a complexidade e a sensibilidade que envolvem os processos de identificação racial, a instituição está continuamente empenhada na qualificação de seus procedimentos, com base na escuta de especialistas, movimentos sociais e na evolução do entendimento jurídico e acadêmico sobre o tema.
A UFF compreende a importância do debate público em torno do caso e reafirma seu compromisso com a transparência, o diálogo e o aperfeiçoamento institucional, sempre pautada pelos princípios da equidade, legalidade e função social da universidade pública."