Imagine a cena: você vai à Sala São Paulo escutar a OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). Primeiro, o dilema da roupa. Não pode ir de qualquer jeito. Chegou lá, desliga o celular, desativa o alarme. Silêncio absoluto. Não pode tossir. Você não sabe a hora certa de aplaudir. Olha para o palco: os músicos impecáveis, seguindo a partitura com precisão cirúrgica. É bonito, é impressionante, mas também é intimidador. É rígido.
Gabriele Leite conhece bem essa rigidez. Violonista clássica, primeira da categoria a entrar na lista Forbes Under 30 e presente na lista do Futuro da Música da Rolling Stone Brasil, ela passou anos navegando pelos códigos não escritos da música de concerto. Mas seu segundo disco, Gunûncho (2025), que acaba de ser lançado pela gravadora Rocinante, vem para desafiar essas convenções.
O álbum reúne obras de quatro compositoras que, embora não fossem violonistas, escreveram peças marcantes para o instrumento: Chiquinha Gonzaga, Lina Pires de Campos, Tania León e Thea Musgrave. E tudo isso carrega o nome que sua mãe deu à mantinha de bebê que a acompanhava para todo lado.
A mantinha e o manifesto
"Quando eu era criança, eu tinha essa mantinha, essa naninha, que eu carregava para cima e para baixo", conta Gabriele. "E minha mãe sempre falava: 'Vai lá, pegou o Gunûncho?' Para mim, Gunûncho era uma palavra que todo mundo conhecia. Depois que tive que doar meu Gunûncho, falei para meus amigos e eles ficavam: 'Que que é isso?' Eu falei: 'Ah, beleza, ninguém conhece essa palavra'".
O termo voltou quando surgiu a oportunidade de gravar o segundo disco. Seria sobre mulheres compositoras, e Gabriele queria trazer também o aspecto familiar. "Minha família sempre me apoiou muito. Isso às vezes é difícil de acontecer. Quantos músicos a gente não conhece que eram para ser grandes músicos, mas desistiram porque não teve apoio da família?"
A caligrafia da palavra Gunûncho na capa do disco é da mãe de Gabriele, Edelzuita Leite. E aqui o projeto ganha outra camada política. "Minha mãe não acabou a escola. Então é também um lugar de reflexão, sabe? Ela tinha o direito de acabar a escola, mas ela não conseguiu por N questões."
O disco, portanto, não vem pouco político. É uma observação sobre quem são as mulheres compositoras. Sobre como se chega a esses lugares de protagonismo e quais desafios se enfrenta pelo caminho. "É escutar essa vozinha interior que às vezes não fala muito, entendeu? Mas tá fazendo."
Quatro mulheres, um crochê de vozes
Gabriele usa uma metáfora perfeita para descrever a construção do disco: crochê. "São várias linhas que se juntam e formam, né, dão a forma ali para esse paninho que você pode moldar do jeito que você quiser, mas ele te esquenta também."
As quatro compositoras escolhidas vêm de lugares completamente distintos. Chiquinha Gonzaga, a grande homenageada, é a compositora brasileira do século 19 que abriu alas para todas as outras passarem. "Ela é uma super compositora, escreveu tantas marchinhas, tem muitas coisas que a gente escuta dela do Brasil", diz Gabriele. Chiquinha foi uma das primeiras mulheres que ela conheceu na universidade, e a conexão é profunda: "O que eu faço hoje, em menores proporções, é algo que ela fazia no século 19. Sendo mulher divorciada, mãe solo."
A segunda, Lina Pires de Campos é paulista, estudou com Camargo Guarnieri, filha do luthier Del Vecchio. "Por causa da luta do pai dela de ser luthier de violão e cavaquinho, ela acabou conhecendo essa galera das cordas." As músicas dela no disco foram todas dedicadas a outros violonistas. "É bem bacana de ver, porque são visões de pianista para escrever para violão. É muito diferente a concepção do instrumento."
Em terceiro lugar, Tania León. Cubana, ainda viva, radicada em Nova York, foi diretora do Ballet da cidade. "Ela é uma mulher negra, diretora do Ballet de Nova York, cubana, compositora, que tá aí, já uma senhorinha." Escreve muito para orquestra, não conhece violão, nunca tocou violão. A peça dela no disco, "Paisanos Semos!", foi escrita nos anos 80. "Quis trazer de novo para a galera se ligar em outras compositoras."
Por fim, Thea Musgrave, escocesa, foi um achado, segundo Gabriele. "Foi um amigo que me falou: 'Ó, essas composições aqui nunca foram gravadas'." Ela também escreve muito para orquestra, e suas peças para violão exploram a riqueza de timbres do instrumento. "Cartões postais da Espanha", impressões que ela teve quando foi para a Espanha.
E apesar dessas quatro "não tem nada a ver uma coisa com a outra", é aí que está o ponto. "Se você olhar, não faz nenhum sentido uma com a outra. Mas eu acho que a ideia do que as conecta muito é um discurso político sobre como é que essa mulher, como é que essa produção musical, como é que faz, como é que chega nesses lugares, como é que ocupa."
A maioria das compositoras do disco não tocava violão. Escreveram para orquestra, para piano, para outros instrumentos. Como, então, imagine o desafio…
"É quase que a mesma coisa de quando a gente vai ler algum escritor", compara Gabriele. "É interessante você entender a biografia, o que a pessoa fez para além disso. O grande desafio foi beber dessas outras fontes e trazer esses pequenos elementos."
O violão tem uma vantagem: é um instrumento de múltiplas possibilidades. "Você vai numa roda de choro, vai numa roda de samba. O violão de choro é uma coisa, o violão de samba é outra coisa. Você vai tocar música sertaneja, o violão que tá lá fazendo o acompanhamento é completamente diferente."
Mas na música clássica, há uma diferença crucial em relação ao piano: a história é muito menor. "Nosso repertório é muito mais enxuto." E isso gerou uma tradição. "O violonista sempre pega o repertório da galera de piano e transcreve. Isso é algo que a gente já faz desde o início da história. Lá no começo, no século XVIII, tinham poucos compositores e não foram os grandes compositores que escreveram para esse instrumento, que tem o som mais frágil, pequeno."
Então, mexer com compositoras que não tocaram violão é trabalhar com algo que já está no DNA do instrumento. "É como se fosse você colocar o arquivo para mandar no e-mail, é meio que já tá ali sempre, entendeu? Você sabe que tem que fazer esse tipo de pesquisa."
Gabriele Leite e a carteirada necessária
Todo esse conhecimento da vida, mais os que ela adquiriu durante o doutorado em Performance Musical na Stony Brook University ou no bacharelado em Música pelo Instituto de Artes da UNESP, ou o mestrado pela Manhattan School of Music ajudaram Gabriele a chegar até aqui e, acima de tudo, ser reconhecida pelo que faz.
Para ela, marcar presença em listas de destaque, permite "aquele tipo de carteirada" que vai além da expectativa. "É muito legal você poder falar, em vez de 'ah, eu ganhei um grande concurso', dizer que você tá nessas listas. As pessoas ficam impressionadas".
Tirando as brincadeiras, Gabriele entende tudo isso e o fardo que vem:
"Foi um marco gigantesco não só para mim, mas para a classe de todos os violonistas, guitarristas que estiveram aí batalhando, escrevendo partitura, gravando disco sem ganhar dinheiro, fazendo turnês, dando aula nos conservatórios, sendo mal-pagos".
Mas antes de todos esses cursos acadêmicos, ela teve de encontrar a música clássica, ou melhor a música clássica encontrar ela. "A gente se topou assim sem querer".
Começou no Projeto Guri, em Cerquilho, interior de São Paulo. "Desde o começo a gente já usava um banquinho e já lia partitura. Já sentava com a postura do violão clássico, que é você colocar o violão na perna esquerda e o violão é o violão de nylon."
Depois veio o Conservatório de Tatuí, e foi lá que ela fez o curso de violão clássico e conheceu mais sobre o mundo da música clássica. A mudança para São Paulo, para fazer graduação na UNESP, abriu tantas portas, mas a mais especial foi a do coração dela. Foi ali que ela se apaixonou e mergulhou de vez nesse mundo.
Quebrar a rigidez, manter a essência
Com essa vivência, Gabriele conheceu a rigidez da música clássica na prática, mas decidiu desafiá-los em Gunûncho. "O disco vem no eterno contrário paradigma disso", explica. "A gente tem que preparar música, tem que estudar muito, tem que ser o mais perfeito possível, mas dentro do que a gente gravou, tem muitos ruídos." São ruídos propositais: a passagem de uma nota para outra, respirações, imperfeições que geralmente são editadas. A quebra começa pela produção: Erika Ribeiro, pianista (não violonista), trouxe uma conexão diferente, menos presa às digitações ortodoxas do violão clássico.
O resultado é um disco íntimo e acolhedor. "Eu diria que num sábado de manhã pós-café seria o momento ideal para ouvir, mas cabe também numa sexta-feira à noite antes de dormir."
Se no primeiro álbum, Territórios, o foco estava na interpretação, Gunûncho marca uma virada. Pela primeira vez, Gabriele apresenta composições próprias: três nano-estudos chamados "Gunûncho", "Maracatu" e "Jongo". "Eu vinha há alguns bons anos tentando amadurecer a ideia de compor e, num inverno em Nova York em 2023, o lapso criativo apareceu de forma natural e intuitiva." O nome do disco sugere um desmame de narrativas amarradas, uma história de amadurecimento como intérprete, arranjadora e, agora, compositora.
O violão clássico, historicamente, é marcado por muitos homens e poucas mulheres em protagonismo, principalmente no Brasil. Por isso, Gunûncho vai além de um disco bonito, é uma declaração.