A Queda do Céu, filme de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, integrou a seleção da Mostra Quinzena dos Cineastas, no Festival de Cannes, em maio do ano passado. Um ano depois, o filme estreou na França, recebendo uma entusiasmada crítica na prestigiada revista Cahiers du Cinéma, na qual Thiérry Méranger atribuiu-lhe a cotação máxima, quatro estrelas, correspondente a chef-d'oeuvre. Obra-prima! Mais meio ano e A Queda do Céu finalmente estreou nos cinemas brasileiros.
É outro documentário maravilhoso, nesse ano em que já houve 3 Obás de Xangô, de Sérgio Machado, embora a definição 'documentário' talvez não seja bem exata. O cinema documental de Eryk tem sempre muito de experimental e investigativo da linguagem. É o que ressalta a crítica de Méranger. O importante é que, nesse ano e meio, A Queda do Céu participou e foi premiado em festivais ao redor do mundo, em países como Coreia do Sul e México. No Festival do Rio de 2024, venceu os prêmios de edição de som e direção de documentário.
A Queda do Céu baseia-se no livro homônimo do xamã Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. Falado principalmente na língua Yanomami, traz o que o site da empresa produtora Aruac Filmes define como uma reflexão contundente sobre o modelo de predação generalizada dos povos e do planeta, gerada por aqueles que Davi chama de "povo da mercadoria", os brancos.
Para penetrar no espírito do filme, o espectador tem de estar preparado para a primeira cena. Mostra um grupo de indígenas, uma tribo inteira, que avança em direção à câmera. Filmado com lentes de aproximação, o grupo avança lentamente até chegar ao primeiro plano, só isso. Só? Há algo de misterioso nesse prólogo que já prepara o público para a beleza das imagens e para a elaboração do som. Não há exagero algum em dizer que nunca se viu nada parecido na tela, e o Brasil já tem tradição na realização de docs sobre a questão indígena, com a participação e até autoria deles próprios.
No centro da narrativa está a celebração do Reahu, em homenagem ao sogro de Davi Kopenawa. O ritual fúnebre celebra a transição do falecido para o mundo espiritual e fortalece os laços da comunidade. Para os Yanomami, o conceito de vida e morte não é linear, mas uma constante renovação e conexão com o mundo espiritual.
Como despedida coletiva, o Reahu ajuda o espírito do morto a não se prender ao plano terrestre. Não é apenas um ato de luto, mas uma celebração da vida. Isso pode ser pesquisado na internet, mas em se tratando de um filme o importante é como Eryk e Gabriela transformam o Reahu em linguagem, em imagens e sons que permanecem com a gente muito tempo após a projeção.
No que diz respeito ao som, inclusive, é um trabalho tecnicamente brilhante e impecável, a anos-luz do tempo em que público e crítica queixavam-se do som nos filmes brasileiros.
A primeira queda do céu
De acordo como a cosmologia Yanomami, os espíritos da floresta impediram a primeira queda do céu. Face aos desmandos do povo da mercadoria, o da floresta pergunta-se: os espíritos impedirão a nova queda? Em maio de 2024, enquanto Eryk e Gabriela mostravam seu filme no maior festival do mundo, o Sul sofria as consequências das enchentes que devastaram o Rio Grande. Parecia um aviso. Agora, o filme estreia justamente na sequência da Cop30, que terminou, em Belém do Pará, com poucos avanços e uma lista de pendências para a próxima cúpula do clima, em 2026, na Turquia.
Cinéfilo de carteirinha - ou ecologista antenado - sabe quem está contra a discussão sobre as condições climáticas. Muita gente, e não apenas o presidente dos EUA, Donald Trump, até admite discutir o aquecimento global, mas se recusa a encarar o nó górdio - a regulamentação dos combustíveis fósseis.
O cinema tem pintado quadros apocalípticos em inúmeras fantasias científicas. A questão embutida no filme de Eryk e Gabriela é - a nova queda do céu é possível? É iminente?
Grave como é o tema do filme, como obra é de uma beleza irrepreensível. Tanto como o livro de Davi Kopenawa e Albert, o filme não faz apenas o diagnóstico de um perigo real e imediato. Por meio de suas imagens e sons que criam um clima muitas vezes mágico e encantatório, livro e filme chamam a atenção para a necessidade de transformação. A floresta, como pulmão do mundo, precisa respirar. A cosmoecologia Yanomami, no quadro da atual era geológica, é mais do que advertência. Em Cannes, Gabriela estava grávida. No Rio, amamentava seu bebê. Como diz o Reahu, a conexão vida/morte/vida tem compromisso com a continuidade, e a renovação.