Bruno Barreto, diretor de O Que é Isso, Companheiro?, já atravessou diferentes fases do cinema brasileiro e segue encontrando novos motivos para filmar. Aos 70 anos, o diretor está em cartaz nos cinemas brasileiros com Traição Entre Amigas, longa que aborda temas como erro, juventude e aborto, protagonizado por Larissa Manoela (Fala Sério, Mãe!) e Giovanna Rispoli (Totalmente Demais).
Em conversa com Rolling Stone Brasil, Barreto afirmou que, para ele, o papel do cinema nunca foi oferecer respostas, mas complexidade. "A gente vive uma pressão acachapante para acertar e entregar. Eu quis fazer um filme que lembrasse que errar também liberta", diz. Entre reflexões sobre ficção, verossimilhança e ética artística, o diretor também falou sobre sua relação com o elenco jovem e revelou sua filosofia como diretor: ouvir mais do que falar — e, acima de tudo, não atrapalhar. Confira a entrevista na íntegra a seguir:
No início do papo, Bruno Barreto voltou ao momento em que conheceu o livro que inspirou o novo filme, ainda na época do lançamento, quando Thalita Rebouças "não era a Thalita de hoje". Ao ser questionado se ele acredita que a adaptação tenha finalmente acontecido no melhor momento de sua carreira, ele responde sem hesitar: "Olha, eu acho que sim. Foi um acaso, né? Porque, idealmente, eu teria feito o filme lá atrás. Mas isso acontece às vezes com projetos. Eles não se fazem."
Barreto lembra que, na época, havia resistência de mercado para um livro que, segundo ele, escondia "uma casca de banana brutal"."Esse livro quebra qualquer regra de roteiro. No corte final do filme, aos 28 minutos, o conflito principal é suspenso. E aí vira uma história paralela, e você não sabe se elas vão se encontrar ou não. Isso quebra todas as regras. Como é que você conduz? Olha o risco que você corre."
O diretor comenta o temor de que o público comparasse as tramas. "A pior coisa que tem em roteiro é você ter duas histórias paralelas que não conversam. Eu estava com frio na barriga até agora, até o filme começar a ser mostrado e eu ver que estava funcionando." Segundo ele, a ausência de testes de audiência — interrompidos após a pandemia — aumentou a angústia. "Um filme com a Larissa Manoela a gente certamente teria testado. E aí eu já saberia se estava funcionando ou não. Então fiquei muito agoniado até agora."
No fim, o que o convenceu foi a força dos personagens. "Eu disse: vale a pena o risco dessas duas histórias paralelas. Acho que os personagens estão interessantes o suficiente para segurar uma história que não tem trama, porque fica o amadurecimento de cada um."
Barreto também revela que a longa espera pela adaptação teve motivos práticos. "Foi o único livro que a Netflix não tinha os direitos. A gente perdeu a opção, depois outra produtora teve e não fez. Eu fui fazendo outros filmes… Flores Raras, O Casamento de Romeu e Julieta, Última Parada 174."
O projeto só ressurgiu quando ele viu Larissa Manoela em Fala Sério, Mãe!. "Eu vi a Larissa e pensei: 'poxa, ela é interessante'. Eu sou muito movido pelo ator. Quero trabalhar com esse ator, com essa atriz." Ele então voltou ao livro — e descobriu que os direitos estavam novamente disponíveis.
Na releitura, percebeu caminhos possíveis para atualizar a história. "No livro não tem ela ficando com uma menina em Nova York. A gente criou essa vertente. No original, ela ficava com meninos, e o Vicente [Dan Ferreira] ia para Nova York para ficar com ela num momento em que ela estava carente."
Ele destaca a intensa parceria com Thalita Rebouças e o roteirista Marcelo Saback. "Eu trabalho muito com roteiristas. Eu dirijo os roteiristas. Não quer dizer que eu seja roteirista. Mas vou ser o responsável pelo produto final." Aos poucos, o roteiro tomou forma — inclusive fortalecendo arcos secundários. "As mães também ficaram com papéis interessantes."
Quando indagado sobre o fato de ter lido o livro em um Brasil e lançar o filme em outro, completamente diferente — especialmente no tratamento de temas sensíveis — ele reconhece imediatamente a mudança de contexto. "É curioso. O tema do aborto é um tema muito atual, não só no Brasil, no mundo, nos Estados Unidos."
Para ele, a discussão revela algo maior sobre a própria relação entre ficção e realidade. "A ficção é mais verossímil que a realidade. Aliás, a ficção tem que ser verossímil, senão ela não funciona. A realidade pode se dar o luxo de ser inverossímil. E acho que a realidade do mundo atual fica cada vez mais inverossímil. Então a gente precisa da ficção para sobreviver."
O diretor destaca que essa sincronia entre temas atuais e a narrativa do filme também aconteceu por acaso. Mas, ao abordar assuntos como aborto e bissexualidade, havia um princípio claro orientando a equipe. "O que eu quis — e a Thalita também, e o Marcelo também, e as próprias atrizes — é que a gente… aliás, eu busco isso em todos os meus filmes: quero que o espectador decida. Procuro não pregar nada."
Ele explica que essa postura tem um fundamento ético. "O cinema tem um poder tão grande que acho antiético você pregar alguma coisa. Eu quero dar complexidade. Num momento tão polarizado como a gente vive no mundo, acho que o dever número um ético de um artista é dar complexidade e fazer o espectador pensar." Essa foi, segundo Barreto, a bússola na condução dos temas delicados da história. "Foi essa a postura que buscamos, tanto na bissexualidade, na experiência dela com o mesmo sexo, como no aborto."
Barreto foi perguntando sobre o que aprendeu com os jovens de hoje — público que receberá sua nova história — e se isso influenciou decisões estéticas e narrativas, ele começa pela própria relação que o espectador tenta estabelecer com seu trabalho. Ele cita um comentário recente no Letterboxd que o marcou. "Era um cara tentando me entender, tentando me decifrar. Ele dizia: 'Ele não é o Roberto Farias, ele é um Ron Howard, um William Wyler…' Eu achei maravilhoso, porque era genuíno. Era alguém realmente tentando entender quem eu sou como diretor."
A partir desse exemplo, Barreto abre um panorama sobre seu ofício. "Para quem tem uma relação como eu tenho — e não estou dizendo que todo mundo tem que ter — é muito uma relação de trabalho. Eu vivo disso, pago minhas contas disso." Ele critica a visão que divide cinema e outras áreas do audiovisual como se fossem esferas moralmente separadas. "Para mim, isso é uma divisão quase da mulher-esposa para ter filhos e a amante para ter sexo. É quase tão perverso quanto isso."
Mesmo quando revisita sua filmografia com brutal sinceridade, ele aponta que o motor permanece o mesmo. "Tem dois filmes meus que eu acho uma merda que fiz — Gabriela e meu primeiro filme nos Estados Unidos, A Show of Force — mas foram experiências importantes. No fim das contas, sempre me pergunto: por que eu vou contar essa história? Para falar do quê? Isso é mais importante do que a história em si. As histórias estão aí. O que muda é como você conta, e o que te move a contá-las."
Ele cita Flores Raras como exemplo desse processo. "Li tudo sobre a Elizabeth Bishop. Dois anos lendo. Mas eu pensava: qual é o gancho pra mim? E aí entendi que era um filme sobre a perda. Eu queria que o filme se chamasse A Arte de Perder. Detesto o título Flores Raras." Esse entendimento, diz, só surgiu quando encontrou o eixo emocional da narrativa. "Eu sou movido a personagem. O comportamento humano é a raiz de tudo."
Barreto explica que seu método vem de observar pessoas — obsessivamente. "Eu adoro andar na rua. Eu pego ônibus, metrô. Não fico ouvindo podcast, não me alieno. Fico observando." E reforça o quanto esse hábito influencia sua direção de atores e suas escolhas estéticas. "O que eu mais tenho prazer é trabalhar com ator. Gosto de filmes que falam do comportamento humano." Ele menciona ainda um filme que o impactou recentemente, o finlandês Girl Picture, que recebeu como membro da Academia. "Eu adorei esse filme. Inclusive usei um pouco como referência para figurino em Traição Entre Amigas."
Ao falar sobre juventude, o diretor se conecta à própria biografia: casou cedo, foi pai aos 21. "Carreira, casamento, paternidade… tudo aconteceu junto. Então eu me identifico com essas mulheres jovens do filme, com esses dilemas." Ele lembra um conselho de Francis Ford Coppola (Megalópolis) que o acompanha desde sempre: "Se vocês querem contar histórias, têm que viver histórias."
A partir disso, Barreto entende que conseguiu retratar os jovens com autenticidade. "Acho que consegui ter uma certa verossimilhança. Porque os jovens vêm e se identificam." Ele admite que descobre o próprio filme aos poucos. "Fazer um filme é sempre um salto mortal sem rede. O frio na barriga é igual."
E, no entanto, diz que está vivendo um momento criativo de retomada da liberdade. "Estou começando a sentir de novo a liberdade que senti quando não sabia muito. Quando você não sabe, tem mais liberdade. A experiência vai ficando lá atrás, no inconsciente, e você fica mais solto."
Quando questionado sobre o que seu filme pode dizer a qualquer espectador, independentemente da idade, ele responde sem hesitar: "O erro. Como o erro é libertador. E como é fundamental errar para aprender — você só aprende com o erro." Ele comenta que vivemos uma cultura sufocante de performance. "Hoje a gente vive uma pressão tão grande de acertar e de entregar… Essas palavras — entrega, foco — é uma ditadura do mercado. Os seres humanos estão ficando desumanizados."
Para ele, a força do filme está justamente em fazer o caminho contrário dessa lógica. "Essa história é sobre isso: errar é humano. Erre. Porque você só vai aprender com o erro e só vai se sentir livre errando. É quase uma ode ao erro."
Barreto então conta uma história que carrega desde os tempos em que era casado com Amy Irving. Ele lembra de assistir a uma montagem de Jardim das Cerejeiras em Nova York. No camarim, ouviu Meryl Streep dizer uma frase que nunca esqueceu: "45% dos diretores não sabem o que estão fazendo e atrapalham. Os outros 45% não sabem o que estão fazendo, mas não atrapalham. E 10% sabem dirigir." Ele ri antes de concluir: "Eu procuro não atrapalhar."
Esse princípio se conecta ao que considera a base de seu trabalho: "Tenho uma profunda curiosidade, um profundo respeito pelo ator." Ele conta que sempre dá o mesmo aviso à equipe no primeiro dia de filmagem: "Todo esse circo — caminhões, equipamento, o preço absurdo de uma diária — tudo afunila na cara do ator. Se, quando eu disser 'ação', o ator não entregar, fodeu. Não adianta fotografia, não adianta grua, não adianta Steadicam. Então ninguém tem o direito de reclamar que o ator tem frescura. A pressão sobre ele é única."
Por isso, ouvir as atrizes [Larissa Manoela e Giovanna Rispoli] é parte do próprio método. "Eu ouvi muito elas." Ele descreve o processo de escalação como uma espécie de ritual imprevisível. "É meio magia, meio macumba. Não é ciência exata." E fala sobre elas com admiração:
"Elas são duas grandes atrizes com métodos totalmente diferentes. Uma é muito racional, que é a Larissa. Ela analisa o que faz e chega na emoção. A Giovanna é emoção pura. Ela sente primeiro e depois tenta desenhar." Para ele, ambas alcançam o mesmo resultado por caminhos opostos. No fim, Barreto sintetiza sua postura como diretor diante de jovens atrizes: "É quase um trabalho de psicanalista — o analista não fala muito, ele trabalha com o material que lhe entregam."