A música brasileira que rodou o mundo, foi cantada por Stevie Wonder e virou hino do Partido Socialista francês

Dupla soteropolitana Antônio Carlos & Jocafi viu os versos de 'Você Abusou' correr o mundo, inclusive gerando um processo contra um plágio na Justiça francesa. Com parceria longeva e rara no mundo da música, eles nem pensam em separação.

8 dez 2025 - 18h21
(atualizado às 18h26)
Antônio Carlos & Jocafi comemoram este ano 54 anos do lançamento do primeiro disco, Mudei de Ideia
Antônio Carlos & Jocafi comemoram este ano 54 anos do lançamento do primeiro disco, Mudei de Ideia
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

No final de setembro, o cantor e compositor Antônio Carlos Pinto, da dupla Antônio Carlos & Jocafi, recebeu em seu apartamento no Rio de Janeiro um pedido especial da produção do Grammy Latino.

A cantora cubano-estadunidense Celia Cruz (1925-2003) teve seu centenário de nascimento lembrado na entrega do prêmio em Las Vegas, nos Estados Unidos, em 13 de novembro.

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Em 1977, Celia gravou em dueto com Willie Colon a salsa Usted Abusó, versão de Você Abusou (1970), da dupla soteropolitana.

"Como Celia tinha um amor pela gente fora de conta, eles pediram um depoimento meu e de Jocafi para abrir a cerimônia do Grammy", diz Antônio Carlos.

Com o parceiro impossibilitado de participar da gravação, Antônio Carlos gravou sozinho a mensagem.

Você Abusou teve centenas de versões ao redor do mundo, da Argentina ao Sri Lanka.

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Além de Celia Cruz, a música foi gravada por Ella Fitzgerald, Sérgio Mendes, Serge Gainsbourg, Vinicius de Moraes, Toquinho, Maria Creuza, Maysa, Jorge Aragão, MPB-4, Sivuca, Pauline Croze, Daniela Mercury e Diogo Nogueira, entre muitos outros nomes celebrados da música nacional e internacional.

Também foi cantarolada por Stevie Wonder em um show com participação de Gilberto Gil no Rock in Rio 2011, com coro de milhares de pessoas.

Você Abusou exibe harmonia sofisticada, na qual a linha de baixo (sequência de notas tocadas pelo instrumento grave, normalmente o contrabaixo) ajuda a criar um efeito de doce lamento.

Em uma época de canções-manifesto destinadas a um público jovem cada vez mais intelectualizado, a letra despojada ria da própria simplicidade:

Você abusou

Tirou partido de mim, abusou

Tirou partido de mim, abusou

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Tirou partido de mim, abusou

Mas não faz mal

É tão normal ter desamor

É tão cafona sofrer dor

"Foi a nossa única parceria em que a música é 100% de Jocafi, e a letra, 100% minha", afirmou Antônio Carlos, ao lado do parceiro, em entrevista por videoconferência à BBC News Brasil em 21 de outubro.

Normalmente, a dupla cria letra e música de maneira colaborativa, sem preocupação com a divisão rígida de papéis.

Na época, a primeira reação de Jocafi aos versos escritos pelo amigo foi negativa.

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"Eu disse: 'É uma melodia tão bonita, e você está botando essas coisas de que é tão cafona sofrer dor'", relembra Jocafi.

Foi o multiartista Edy Star, amigo dos dois, que convenceu o compositor a mudar de ideia.

"Ele disse: 'Jocafi, isso aí é a coisa mais moderna que eu já vi, ninguém faz letra dessa forma'", recorda-se o músico, que acabou se rendendo aos versos do parceiro.

Jocafi e Antônio Carlos em entrevista à BBC News Brasil; a parceria já dura mais de 50 anos
Foto: BBC News Brasil

A canção mais famosa de Antônio Carlos & Jocafi soma-se a uma robusta produção da dupla, que inclui 16 discos, dezenas de prêmios em festivais, trilhas sonoras para TV e cinema, shows e turnês por todo o mundo — e nenhum sinal de aposentadoria à vista.

Suas canções já foram interpretadas por Orlando Silva (Desespero), Luiz Gonzaga (Chuculatera, Cordel), Alcione (Jesuíno Galo Doido), Emílio Santiago (Recado), Marcelo D2 (Qual é?, releitura de Kabaluerê) e BaianaSystem (Água, Miçanga), entre muitos outros.

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Com 80 anos recém-completos, Antônio Carlos comemora também este ano o 54º aniversário de Mudei de Ideia (1971).

Foi o primeiro álbum com Jocafi, que fará 81 anos em 21 de dezembro.

A seguir, alguns momentos marcantes da vida e da obra dos baianos, cultuados por quatro gerações de fãs.

Berço musical

Antônio Carlos Marques Pinto conta que cresceu junto com a música.

"Meu avô tocava. Antigamente, na casa de todo mundo na Bahia havia um piano, era normal. Minha mãe tocava um pouquinho de piano. Geralmente, também tinha acordeão e violão", relata o artista.

O pai do compositor cultivava uma tradição. "Todo sábado, trazia para casa um disco 78 rotações com canções de Francisco Alves, Orlando Silva, Nelson Gonçalves".

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Antônio Carlos cresceu no bairro Garcia, em uma casa vizinha à de Carmen Oliveira da Silva, filha da mãe de santo Menininha do Gantois.

Carmen sucedeu a mãe em 2002, assumindo como Mãe Carmem do Gantois.

"O batuque, pa-tá-tim-tum-tum-tum-pá-tá, chega ao ouvido da criança que acaba de nascer, e antes de falar 'mamãe', todo mundo já sabe fazer ijexá [ritmo de origem africana bastante presente na Bahia]", diverte-se Antônio Carlos.

Criado no bairro Cosme de Farias, Jocafi lembra de outra influência comum aos dois parceiros: o rádio.

"Meu pai era um garçom do município de Bonfim, mas conseguiu juntar dinheiro para comprar um aparelho de rádio", diz.

"A Rádio Nacional foi a grande mentora de todos os compositores de nossa geração."

Outra presença constante nos anos 1950 nas ruas de Salvador e de outras cidades brasileiras eram os serviços de alto-falante, que transmitiam músicas, notícias e recados.

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"Quando a gente estava jogando bola na rua, ouvia [pelos alto-falantes] todos os cantores e compositores famosos da época, como Luiz Gonzaga e Waldick Soriano, e também música erudita, Bach, Beethoven, Ravel...", afirma Antônio Carlos.

"A plebe rude não tinha rádio, que era caro, mas tinha alto-falante", comenta Jocafi.

O encontro da dupla

A cantora Maria Creuza (terceira a partir da esquerda) mantém por mais de 50 anos uma relação de colaboração artística e amizade com a dupla
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Quando foi apresentado a Jocafi, Antônio Carlos já tinha participado, como cantor e compositor, de festivais na Bahia e do 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, em São Paulo.

A canção selecionada para este festival, Festa no Terreiro de Alaketu, foi interpretada no evento por Maria Creuza.

No ano seguinte, a cantora e Antônio Carlos uniram-se em um casamento de quase duas décadas que deixou três filhos e um legado inestimável para a música brasileira por meio de discos, shows e turnês juntos.

Aos 81 anos, baiana de Esplanada e hoje radicada na Argentina, Maria Creuza é uma das maiores cantoras do Brasil, com repertório que inclui títulos de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Lupicínio Rodrigues, Nelson Cavaquinho, Chico Buarque e Roberto Carlos, entre outros.

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Jocafi conta que era fã de Antônio Carlos desde o festival de 1967.

Quem apresentou a dupla foi o pianista e compositor Carlos Lacerda (nenhum parentesco com o homônimo ex-governador do então Estado da Guanabara).

A oportunidade de parceria surgiu, porém, somente em 1968, por intermédio do poeta Ildásio Tavares, com quem ambos já tinham trabalhado.

"Jocafi tinha a música do que viria a ser Catendê e queria que Ildásio colocasse letra. Acabou que fomos lá para casa e aconteceram Catendê, Mercado Modelo e outras", diz Antônio Carlos.

A primeira composição da dupla, Catendê, tinha dois coautores: Ildásio e Onias Camardelli.

Em 1969, Catendê foi selecionada para o 5º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, registrada como composição apenas de Jocafi, Ildásio Tavares e Onias Camardelli — segundo Antônio Carlos, na época "era feio quatro parceiros assinarem uma música".

A fim de acompanhar os intérpretes Maria Creuza e Ruy Felipe à final do festival, a futura dupla viajou para São Paulo.

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"Ildásio Tavares era filho de fazendeiro, e Jocafi e eu, filhos de pobre. Ele pediu à mãe que nos emprestasse 1 milhão de cruzeiros para a viagem. Gastamos 500 mil nas passagens e ficamos com 500 mil para passar o resto da vida", brinca Antônio Carlos.

Catendê acabou desclassificada por já ter concorrido em um festival regional.

Depois de alguns meses na capital paulista, transferiram-se para o Rio de Janeiro.

Ao ouvir Maria Creuza interpretar Mirante, de Aldir Blanc e César Costa Filho, no 2º Festival Universitário de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Tupi, Vinicius de Moraes insistiu em conhecer a cantora.

Em seguida, foi a vez de Creuza apresentar Antônio Carlos e Jocafi ao poeta.

Em uma tarde de sábado, quando os três preparavam-se para ir à casa de Vinicius no bairro da Gávea, o telefone tocou.

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"Naquele tempo, usava-se telegrama da Western [telegrama fonado da companhia Western Union]. Eu atendi, e o cara falou assim: 'Sua mãe morreu. O enterro é amanhã'", lembra Antônio Carlos.

Consternados, Creuza e Jocafi quiseram cancelar o compromisso, mas Antônio Carlos se recusou a fazê-lo.

"A fortuna da minha mãe era que eu fosse cantor. Na última vez que ela me viu cantar na TV Itapoan, me disse: 'Meu filho, você cantou como um artista do Rio'."

Na casa de Vinicius, o trio encontrou, além do poeta, os compositores Tom Jobim e Dori Caymmi e o jornalista Nelson Motta, que mantinha uma coluna diária na TV Globo, exibida antes do Jornal Nacional.

"Na segunda-feira, Nelsinho Motta disse assim: 'Olha, eu estive na casa de Vinicius no sábado e conheci uma dupla de baianos chamada Antônio Carlos & Jocafi. Se eu fosse produtor, contrataria eles logo antes de todo mundo'", recorda-se Jocafi.

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Em poucas semanas, com a intermediação do produtor Rildo Hora, a dupla assinou contrato com a gravadora RCA Victor.

O primeiro álbum

Os baianos defendem Desacato, que conquistou o segundo lugar no VI Festival Internacional da Canção, em 1971
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Na época, era de praxe que artistas estreantes lançassem um ou dois compactos (discos menores, com apenas duas faixas, uma de cada lado) antes de produzir um álbum.

O primeiro compacto de Antônio Carlos & Jocafi pela RCA tinha um rock, Roberto, Não Corra, e Por Causa Dela.

A primeira faixa era uma sátira a Roberto Carlos, que acabara de lançar As Curvas da Estrada de Santos.

"Ele [Roberto Carlos] é gente fina, mas não perdoa a gente até hoje", diverte-se Jocafi.

O apresentador Silvio Santos (1930-2024), que na época comandava um programa de auditório dominical na TV Globo, convidou-os para uma participação.

Amigos da dupla que trabalhavam na emissora alertaram que a real intenção do apresentador seria ridicularizá-los, em uma espécie de desagravo a Roberto Carlos.

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"Silvio Santos queria acabar com a gente", deduz Antônio Carlos.

Semanas antes, o músico, jornalista e jurado José Fernandes quebrara o compacto da dupla diante das câmeras.

Fernandes tinha fama de rigoroso e não via com bons olhos a influência estrangeira, especialmente do rock e da guitarra elétrica, na música brasileira.

"Dizia: 'Isso aí é um rock, é um rock!". Os caras tinham uma ideia errada, porque era um rock muito bem feito", ironiza Jocafi.

A dupla compôs então uma canção satírica em forma de recado ao próprio Fernandes para ser apresentada antes de Roberto, Não Corra.

"Fomos aplaudidos de pé pelo Zé mesmo", diz Antônio Carlos, rindo.

A repercussão foi tão grande que o próprio diretor artístico da RCA Victor na época, Alfredo Corletto, viajou de São Paulo ao Rio para conhecer os baianos.

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Assim, surgiu em 1971 o primeiro álbum, Mudei de Ideia, que trazia Você Abusou, Kabaluere, Conceição da Praia, Deus o Salve e outras.

'Versão' francesa

Antônio Carlos & Jocafi (na foto diante da Torre Eiffel, em Paris) tiveram o plágio da canção Você Abusou reconhecido pela Justiça francesa
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Depois de uma turnê da dupla pela Europa, Maria Creuza alertou que Você Abusou fazia sucesso em uma versão francesa, Fais Comme L'oiseau ("Faça como o pássaro"), de Michel Fugain.

A versão de Fugain chegou a ser adotada como hino semioficial do Partido Socialista Francês, do qual o cantor e compositor é simpatizante.

O caso motivou uma ação judicial por plágio contra Fugain nos tribunais franceses.

A dupla brasileira acabou obtendo ganho de causa, com ressarcimento financeiro e inserção de autoria em todos os registros da obra.

"A RCA mobilizou advogados, e todo o dinheiro que iria para ele [Fugain] veio para nós", lembra.

Mas Jocafi reconhece que Fugain é um "grande compositor" e fez uma letra "sensacional". Antônio Carlos afirma que a versão francesa é mais famosa que a da dupla soteropolitana.

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Até hoje, comentam os músicos, a maioria esmagadora do público na Europa crê que a canção foi composta por um francês.

Em turnês internacionais, os baianos estão acostumados a ouvir o público cantar Você Abusou em francês ou espanhol — esta última na versão gravada por Celia Cruz.

"Celia fez uma leitura mais próxima da guaracha cubana [gênero musical]", diz Jocafi.

Mas, afinal, o que é que Você Abusou tem para calar tão fundo nos ouvidos e nas mentes de tantas audiências ao redor do mundo?

Os dois fornecem uma resposta simples: a canção é um samba de roda, gênero musical ilustre nascido no Recôncavo Baiano e cultivado por Dorival Caymmi, João Gilberto, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que pode ser ouvido em qualquer esquina de Salvador.

"Enquanto eu venho do candomblé, Jocafi vem do samba de roda", explica Antônio Carlos.

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Praias do futuro

A dupla faz parte do seleto time de criadores que teve sucessos gravados tanto pelos ídolos da infância quanto por artistas que poderiam ser seus netos
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Com obra reconhecida no mundo inteiro e uma agenda de shows até hoje agitada, Antônio Carlos & Jocafi continuam sendo os mais célebres intérpretes de suas próprias canções.

Ao longo dos anos, deixaram de lado outros instrumentos — Antônio Carlos já tocou baixo, e Jocafi, cavaquinho — para se concentrar no violão, mas assumiram novos papéis como arranjadores e produtores.

Se parcerias tão longevas são raras no mundo da música, ainda mais insólitas são duplas que ultrapassem 50 anos de atividade.

No caso de Antônio Carlos & Jocafi, porém, os dois garantem que a parceria não será interrompida enquanto viverem.

"Eu não quero fazer nada sem ele", diz Antônio Carlos.

"Quando falo 'esta música é minha', está sempre subentendido que é minha e de Jocafi."

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Isso não significa, porém, que não haja espaço para novas colaborações.

Com modéstia, a dupla credita a mais recente fase — "a penúltima", brinca Antônio Carlos — de sua longa carreira a dois músicos da nova geração: Marcelo D2, que realizou em 2003 uma releitura de Kabaluere em Qual é?, e Russo Passapusso e a banda BaianaSystem, que se tornaram parceiros recorrentes.

"Com Russo Passapusso, mudou totalmente a maneira de a gente compor. É o que eu sempre digo: tem de ter qualidade", explica Jocafi.

Em 2019, o BaianaSystem lançou o álbum O Futuro Não Demora, fortemente marcado pela temática ambiental, tendo como carro-chefe Água — que tem a dupla entre os compositores.

No ano seguinte, foi a vez de Miçanga, single da banda que ganhou o Grammy Latino.

Em 2022, Russo Passapusso, Antônio Carlos e Jocafi lançaram Alto da Maravilha, álbum premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

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Em 2024, nasceu o álbum do BaianaSystem Batukerê, e este ano mais um single, Praia do Futuro.

A dupla com Russo Passapusso, com quem a parceria tem sido produtiva
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

O próximo projeto da dupla é uma trilogia inspirada na obra de Jorge Amado, que já serviu de mote para o álbum Antônio Carlos & Jocafi cantam Jorge Amado (1996).

No momento da conclusão desta reportagem, a BBC News Brasil enviou mensagem de texto para Antônio Carlos a fim de checar informações.

"Estamos dentro do estúdio. Vou mandar para você a última música que gravei", respondeu o compositor.

A faixa — na qual a dupla se junta a uma cantora de voz majestosa e límpida sobre uma base de violão, órgão, cordas, percussão e vocais — parece se equilibrar entre a sonoridade dolente dos primeiros trabalhos e a roupagem visceral da produção mais recente dos parceiros.

O repórter transmite sua impressão e pergunta qual é o nome da canção e quem é a intérprete.

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"Essa música, Ingorossi, foi a primeira música que eu fiz na minha vida. Com ela que eu comecei tudo. Esse final eu fiz agora com Jocafi", explica Antônio Carlos em áudio.

"Quem está cantando com a gente é Maria Creuza", complementa.

"Ela gravou a primeira música minha e parece que vai gravar a última."

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