O uso excessivo de inteligência artificial para ganho de produtividade pode comprometer a saúde cerebral, reduzindo criatividade, pensamento crítico e bem-estar, exigindo um equilíbrio entre eficiência tecnológica e desenvolvimento humano.
A ideia de automatizar processos, delegar tarefas e acelerar resultados parece, à primeira vista, extremamente eficiente e promissora. Afinal, quem não deseja alcançar maior rapidez na execução, aumentar a produtividade e reduzir o esforço manual? Vivemos em uma sociedade cada vez mais acelerada, onde a competitividade exige que as organizações se tornem mais ágeis, eficientes e capazes de responder rapidamente às mudanças do mercado. Nesse contexto, a automatização de tarefas rotineiras, o uso de inteligência artificial e a otimização de fluxos de trabalho parecem ser soluções naturais e necessárias para manter a competitividade.
No entanto, é fundamental refletirmos com profundidade: a que custo estamos abrindo mão ao adotar essa lógica de eficiência constante? Quais são as consequências invisíveis e muitas vezes negligenciadas nesse processo de transformação digital acelerada?
A neurociência, ramo do conhecimento que estuda o funcionamento do cérebro humano, já comprovou de forma contundente que o cérebro se molda pelo uso e sofre poda pelo desuso. Essa dinâmica é uma das bases do funcionamento cerebral e influencia profundamente nossa capacidade de aprender, criar, decidir e nos adaptar às mudanças. A chamada poda sináptica, que é mais intensa na infância e adolescência, continua ocorrendo em menor escala ao longo de toda a vida, sempre que conexões neurais deixam de ser ativadas com frequência. Ou seja, toda habilidade que deixamos de exercitar, toda prática que deixamos de cultivar, o cérebro interpreta como desnecessária e, com o tempo, apaga. Essa adaptação natural do cérebro, embora seja uma estratégia de economia neural, traz consigo riscos importantes quando aplicamos essa lógica ao nosso cotidiano, especialmente no ambiente de trabalho.
Com o avanço das inteligências artificiais generativas, como o ChatGPT, estamos terceirizando não apenas tarefas rotineiras, mas funções cognitivas inteiras. Decidir, refletir, escrever, imaginar—atividades que antes exigiam engajamento profundo, criatividade e pensamento crítico—agora podem ser realizadas de forma automática por prompts curtos e respostas instantâneas. Essa transformação tem implicações neurológicas profundas e, se não forem cuidadosamente consideradas, podem comprometer a saúde mental, a capacidade de inovação e o desenvolvimento de competências essenciais para o futuro.
Do ponto de vista da neurociência, essa mudança é preocupante. Quando não usamos o córtex pré-frontal, a área do cérebro responsável por planejamento, julgamento, criatividade, tomada de decisão e regulação emocional, outros sistemas cerebrais mais primitivos tendem a assumir o controle. Entre eles, destacam-se o sistema límbico e o eixo de sobrevivência, que ativam respostas automáticas de luta ou fuga, aumentando a reatividade emocional e reduzindo a capacidade de reflexão consciente. Essa ativação constante de respostas emocionais automáticas diminui nossa habilidade de pensar de forma racional, de planejar com clareza e de resolver problemas complexos de maneira criativa.
O impacto disso na saúde mental e no funcionamento organizacional é alarmante. Entre os efeitos observados, podemos citar:
• Redução do pensamento crítico e da capacidade de análise aprofundada, prejudicando a tomada de decisões estratégicas.
• Aumento da impulsividade e da reatividade emocional, tornando os indivíduos mais suscetíveis a conflitos e estresse.
• Menor tolerância à ambiguidade e à complexidade, dificultando a inovação e a adaptação a mudanças imprevisíveis.
• Empobrecimento do vocabulário, especialmente na linguagem emocional, dificultando a expressão de sentimentos e a empatia.
• Desconexão com o sistema de recompensa dopaminérgico, que regula a motivação, o engajamento e o prazer em aprender.
Essas mudanças não são apenas individuais, mas coletivas. Elas já estão sendo percebidas em times e lideranças, onde ambientes acelerados, hiperestimulados e com baixa reflexão tornam o cérebro mais reativo do que criativo. Funciona como uma armadilha: a busca por mais eficiência a curto prazo, ao reduzir o tempo gasto com tarefas cognitivas complexas, gera uma vulnerabilidade crescente a médio e longo prazo. Essa vulnerabilidade se manifesta na diminuição da capacidade de inovação, na perda de resiliência diante de desafios difíceis, e na incapacidade de desenvolver uma cultura de aprendizagem contínua.
E o aspecto mais grave dessa situação? Qual KPI (Indicador-Chave de Desempenho) podemos usar para mensurar esses impactos? A resposta é: ninguém está realmente medindo esses efeitos invisíveis. O clima organizacional vai sendo corroído de forma silenciosa, quase imperceptível, mas de uma importância determinante para o futuro das organizações. Menos inovação, mais insegurança, menos diálogo, mais ruído comunicacional. Menos aprendizagem real e mais repetição automatizada. Tudo isso ocorre sem aparecer nos dashboards tradicionais de gestão de pessoas, que costumam focar apenas em métricas tangíveis e de fácil mensuração, como produtividade, absenteísmo ou faturamento.
Esse impacto cerebral coletivo é silencioso, mas de uma magnitude que pode comprometer a sustentabilidade do negócio. A Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que trata de saúde e segurança no trabalho, já reconhece os riscos psicossociais como fatores reais de prejuízo à saúde mental. No entanto, o que muitos ainda não perceberam é que a sobrecarga cognitiva e o empobrecimento mental também representam riscos sérios, muitas vezes invisíveis, para o bem-estar organizacional e o desempenho sustentável. A negligência com a saúde cerebral pode gerar custos invisíveis, como queda na criatividade, aumento do turnover, dificuldades na resolução de problemas e diminuição do engajamento.
Em um mundo que valoriza a agilidade, a velocidade de resposta e a adaptação rápida, o silêncio, a pausa e o foco tornam-se recursos de alto valor estratégico. Porque, sem espaço mental, o cérebro simplesmente não consegue registrar, processar e reter informações essenciais para a tomada de decisão e o crescimento sustentável. Sem o devido registro, não há retenção; sem retenção, não há transformação real. Essa cadeia de processos depende de um ambiente que promova reflexão, atenção plena e aprendizagem contínua, elementos que estão sendo sacrificados na busca incessante por eficiência.
Se a sua empresa ainda não está atenta a esses aspectos, talvez já esteja atrasada no preparo para os desafios do futuro. A inovação, a criatividade e a resiliência dependem de uma saúde cerebral otimizada. Felizmente, há boas notícias: novas soluções estão surgindo. Uma delas é uma abordagem inovadora que utiliza a neurociência e a inteligência artificial para mapear, com precisão, os impactos invisíveis da cultura organizacional no cérebro coletivo. Essa ferramenta identifica riscos, gargalos, padrões e alavancas reais para melhorar o clima, o engajamento, a aprendizagem e o bem-estar de forma sustentável.
Tudo isso por meio de um sistema que utiliza IA a favor do cérebro humano, e não o contrário. Um sistema que fala a linguagem do RH e da liderança, promovendo desenvolvimento real para quem mais precisa. Porque, enquanto muitos ainda falam sobre Inteligência Artificial, o verdadeiro futuro da alta performance começa por cuidar e preservar a saúde mental e a inteligência humana. Investir na saúde cerebral da equipe não é apenas uma estratégia de bem-estar, mas uma decisão inteligente de longo prazo para a inovação, criatividade e resiliência organizacional.
Essa mudança de paradigma pode ser o diferencial que garante a competitividade e a sustentabilidade do seu negócio no mundo de amanhã. Afinal, organizações que priorizam a saúde mental, a reflexão e o desenvolvimento cognitivo estarão mais preparadas para enfrentar os desafios de um mercado em constante transformação. Além disso, esse cuidado promove um ambiente de trabalho mais saudável, mais motivador e mais humano, onde as pessoas se sentem valorizadas, compreendidas e motivadas a contribuir com o seu melhor. Assim, o investimento na saúde cerebral não é apenas uma questão de responsabilidade social ou de bem-estar, mas uma estratégia de sobrevivência e crescimento sustentável.
Portanto, é fundamental repensar a forma como conduzimos nossos processos de trabalho, liderança e gestão de pessoas. É necessário criar espaços que permitam pausas, reflexões e o desenvolvimento de competências cognitivas essenciais. A inovação verdadeira não está apenas na tecnologia, mas na capacidade de alinhar essa tecnologia com o bem-estar e o potencial humano. Afinal, o sucesso de uma organização depende, em última análise, do bem-estar e da saúde mental de suas pessoas. E essa é uma das maiores lições que a neurociência nos ensina: cuidar do cérebro é cuidar do futuro.
(*) Marina Marzotto Mezzetti é especialista em neurociência aplicada e fundadora da Neuro(efi)ciência.