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Conheça o comércio da antiga Favela Nova América, em BH

Empreendedores do atual Bairro Mantiqueira transformaram pontos de criminalidade em comércios familiares

2 nov 2023 - 05h00
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Vista da Rua 30 para as comunidades vizinhas do Nova América, em Belo Horizonte. Comércio revitalizou o local
Vista da Rua 30 para as comunidades vizinhas do Nova América, em Belo Horizonte. Comércio revitalizou o local
Foto: Erlaine Gracie/ANF

A comunidade do Nova América começou a ser ocupada em 1980, entre os bairros Mantiqueira, que pertence a Belo Horizonte, e Maria Helena, em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana. Era foco de muita violência, brigas de gangue, tráfico de drogas e assaltos na própria vizinhança.

Existia rivalidade na divisa da capital, quando o Nova América passou a pertencer oficialmente ao Mantiqueira. Hoje, mais de 40 anos após a fundação, a região tem o clima de uma cidade do interior, onde há um fluxo de comércios e moradores que se respeitam e compartilham o dia a dia.

Eu concluí o primário e o ginásio no bairro da Mantiqueira. Próximo à Escola Municipal Professor Pedro Guerra, onde cursei da 6ª a 8ª série, estava a “sorveteria da 30”, como chamávamos. Nossa turma ia lá raramente, só quando nossos pais davam algumas moedas pra gente fazer trabalho de escola na Biblioteca Pública do centro da cidade. Íamos a pé até a avenida Padre Pedro Pinto para pegar só uma condução e sobrar dinheiro pro famoso sorvete cascão. Era uma festa.

Hoje, a rua Edmar Colini Ferreira é a antiga Rua 30, a maior referência da região. Foi lá que surgiram os primeiros comércios, como o Supermercado Wasnei, que continua a todo vapor. E o boteco ao lado da sorveteria está no mesmo lugar.

Em um dos primeiros imóveis da antiga Rua 30, na periferia de Belo Horizonte, funciona o supermercado que é referência na região
Em um dos primeiros imóveis da antiga Rua 30, na periferia de Belo Horizonte, funciona o supermercado que é referência na região
Foto: Erlaine Gracie/ANF

Um bar que tem o nome que a freguesia quer

O atual proprietário do bar vizinho ao supermercado, Magmar Pereira, destaca que seu negócio nunca teve um nome oficial. “Chamavam de bar Tabajara, agora bar do Magmar, mas eu nunca quis colocar uma placa, um rótulo”, explica.

Ele toca o comércio há 15 anos e diz que nem sempre o local foi como hoje. “O bar aqui era meio pesado. Tinha droga, essas coisas. Aí, como eu não uso isso, nunca gostei, nem fumar eu fumo, fui limpando aos poucos, até ficar esse ambiente de família”, diz Magmar, ressaltando que tinha medo.

Devagarzinho, os fregueses envolvidos com o crime foram se afastando ao perceber que o lugar não era mais para eles. Magmar atende clientes da vizinhança, das redondezas e conta que, há 12 anos, todas as segundas-feiras, recebe o pessoal com um churrasco por conta da casa. “É gente do Pedra Branca, Maria Helena, Lagoa, Landi, que frequenta aqui desde o primeiro dia e viraram amigos.”

Magmar foi ameaçado várias vezes, mas, com jogo de cintura, fez do bar um ponto de lazer e diversão no Nova América, em BH
Magmar foi ameaçado várias vezes, mas, com jogo de cintura, fez do bar um ponto de lazer e diversão no Nova América, em BH
Foto: Erlaine Gracie/ANF

A história de Joubert, pioneiro do Nova América

Outro comerciante que passou por desafios é Joubert Melo, 62 anos, dono do Trayller do Joubert, de lanches. A história de empreendedorismo de sua família merece ser contada. Eles moravam no bairro vizinho, Maria Helena, divisa com o Jardim Primavera. Quando o casal foi demitido do emprego de um supermercado, em 1990, resolveu buscar um ponto para instalar a estrutura de lata que virou lanchonete.

“Em janeiro de 1991, encontraram essa esquina aqui. Não tinha nada, não tinha chão, não tinha parede, não tinha teto, igual aquela história da casinha da música, que não tinha nada”, brinca Raphael Álvaro, 36 anos, filho do casal. A esquina é abaixo da conhecida Rua 30 e Joubert foi um dos pioneiros da região.

Léo, Barrão e Joubert, dono do trailer de lanches. Clientes costumavam sentar-se na esquina com o comerciante e baterem papo pela madrugada
Léo, Barrão e Joubert, dono do trailer de lanches. Clientes costumavam sentar-se na esquina com o comerciante e baterem papo pela madrugada
Foto: Arquivo pessoal

Raphael recorda de quando não passava táxi no local. A família ia embora a pé ou dormia no Trayller, quando fechava tarde. “Tem várias histórias da gente presenciar assalto, tiro. Graças a Deus, com a gente nunca aconteceu nada.”

Com pai doente, filho revitaliza o negócio

Atualmente, são os filhos que cuidam do negócio de lanches, com a clientela enraizada. Raphael relata que, em outubro de 2015, teve que assumir o comando do comércio de um dia para o outro, quando o pai teve um AVC e ficou em tratamento.

Nesse período, o trailer enferrujou, começou a deteriorar e, com receio de que ele caísse, Raphael derrubou a estrutura metálica e mudou para uma construção de alvenaria. Nesse meio tempo, de desafios sendo resolvidos, vários clientes reclamaram da ausência e espalharam que o negócio tinha fechado.

“Teve uma mulher que chorou. Um outro disse que, se meu pai morresse, o trailer ia acabar. Ouvir isso me motivou, deu forças e, entre uma visita e outra no hospital para ver meu pai, fiz uma estrutura melhor”, relembra.

Trailer aberto é sinal de que está tudo tranquilo

Joubert é muito respeitado e conhecido. Segundo Raphael, tanto por quem está no mundo do crime, quanto por padres, pastores, trabalhadores. Os moradores contam que se sentiam seguros quando chegavam do trabalho e viam o comércio aberto.

Revitalizado, trailer de lata sumiu, dando lugar a uma construção de alvenaria. Durante reforma, clientes fiéis pensaram que o negócio tinha fechado
Revitalizado, trailer de lata sumiu, dando lugar a uma construção de alvenaria. Durante reforma, clientes fiéis pensaram que o negócio tinha fechado
Foto: Erlaine Gracie/ANF

“Quando aqui estava fechado, o pessoal ficava com medo e descia a rua correndo pra casa. Quando meu pai estava aqui, ficava acompanhando, esperando o pessoal descer do ônibus. Até casais foram formados por ele, que pedia para alguns rapazes fazerem companhia a moças até em casa”, comenta Raphael, com visível saudade dos velhos tempos.

“Ele está com sequelas e não pode trabalhar, mas marcou muito a história dos vizinhos e ajudou muita gente”, completa.

“Senti necessidade de continuar comunicando”, diz morador

É unânime a opinião de que, atualmente, o Nova América é um lugar tranquilo e de paz. O morador da antiga Rua 30, Adão Pereira, 73 anos, mudou para a comunidade em 1982, quando as ruas eram nomeadas por números.

“Depois que asfaltou e mudou de número pra nome, passou a ser Mantiqueira. Mas, até hoje, há mais de 30 anos, tem gente que troca o nome. A confusão é porque, dali pra baixo, é Maria Helena, e aqui, muita coisa tem o nome de Nova América, como essa igreja”, explica Adão.

Na parte de baixo, quase fora da foto, um dos primeiros moradores do Nova América, em Belo Horizonte: só de longe Adão Pereira se deixa fotografar
Na parte de baixo, quase fora da foto, um dos primeiros moradores do Nova América, em Belo Horizonte: só de longe Adão Pereira se deixa fotografar
Foto: Erlaine Gracie/ANF

Ele passa as tardes sentado na Igreja Batista de Nova América, em frente à sua casa. Chegou a mudar para um bairro fora da periferia, mas não se acostumou. “Fui vendedor, vendia de tudo por aqui e depois que aposentei, senti a necessidade de continuar comunicando. Só aqui as pessoas se falam da mesma forma como na minha infância, em Governador Valadares”, diz Adão, relembrando os costumes de quando morava no interior de Minas Gerais.

ANF
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