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'Queremos formar bons clínicos, mas isso não é mais suficiente'

Futuro profissional tem de pensar no sistema de saúde e buscar formas inovadoras de levar saúde, afirma reitor

16 ago 2018 - 03h10
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Formado em Medicina pela Universidade Harvard, Ph.D. em Epidemiologia pela Universidade da Califórnia em Berkeley, Claiborne Johnston - conhecido como Clay Johnston - assumiu, em maio de 2014, uma tarefa complexa: criar um modelo para o ensino de Medicina que incentivasse os alunos a diagnosticar e tratar não apenas pacientes, mas o próprio sistema de saúde. Para combater a ineficiência que compromete a sustentabilidade do setor, a aposta foi em inovação e no engajamento com a comunidade local.

Johnston é o primeiro reitor da Dell Medical School, da Universidade do Texas, em Austin. Trata-se da primeira faculdade de Medicina criada numa universidade de ponta nos Estados Unidos nos últimos 50 anos. Diante da oportunidade de desenvolver algo do zero, ele idealizou um novo currículo, que prima pela resolução de problemas em equipe, incentiva a multidisciplinaridade e busca desenvolver a capacidade de liderança.

Um dos principais convidados do Summit Saúde Brasil, que ocorre nesta sexta-feira, 17, em São Paulo, Johnston falará no evento sobre aspectos que tornam o sistema de saúde disfuncional e os caminhos que podem ser adotados para a criação de novos modelos de atendimento. Na semana passada, antes de embarcar para o Brasil, ele conversou sobre sua experiência à frente da Dell, sobre o plano de tornar Austin uma cidade modelo na área da saúde e os desafios relativos à forma como o serviço de saúde costuma ser remunerado hoje.

Quando pensamos na Medicina do futuro, vemos muita informação a respeito de inteligência artificial, big data e robôs. Mas e quanto aos médicos? Como você visualiza os médicos do futuro?

Acho que nosso sistema vai evoluir para um uso mais efetivo da tecnologia e também das equipes. Queremos promover uma abordagem voltada aos resultados, em que sejamos pagos com base nos ganhos para os pacientes. Na medida em que o sistema é aprimorado, particularmente por meio da inteligência artificial, o papel tradicional do médico muda. A ciência da medicina vai se tornar menos importante, mas a arte do cuidado ganhará importância. Precisamos de pessoas que possam liderar essa mudança e que consigam abraçar a tecnologia, mas apenas quando ela visa ao benefício para o paciente e à evolução do sistema de saúde. É um tipo diferente de médico, que está confortável com a tecnologia, que entende de engenharia de sistemas, que consegue colocar o foco no valor proporcionado e que exerce liderança para mudar esse sistema.

Com base nisso, como vocês selecionam os alunos de Medicina? Quais características estão buscando?

Estamos em busca de criatividade, paixão e liderança. É fácil achar estudantes inteligentes, mas é difícil encontrar pessoas realmente preparadas para pensar no sistema de saúde como um todo e mudá-lo. Como buscamos essas características? Procurando evidências de conquistas nessas áreas. E, nas entrevistas, olhando para aspectos como a habilidade de trabalhar em equipe.

E quanto ao conhecimento tecnológico?

Não achamos que os alunos precisem já vir com essa habilidade, embora muitos venham. Mas acreditamos que, sim, eles precisam estar abertos à importância da tecnologia e da inovação na solução dos problemas do sistema de saúde.

O que eles encontram na Dell que não vão achar em outra faculdade de Medicina?

Nós somos bem diferentes de outras faculdades, por causa do nosso enfoque. A maior parte das faculdades de Medicina está focada em formar ótimos clínicos, no trabalho com pacientes individuais. E claro que nós nos importamos com isso. Queremos garantir que nossos alunos sejam bons clínicos, mas isso não é suficiente. Nosso foco está em como continuar ajudando essas pessoas quando elas não estão em nossas clínicas e hospitais. E isso significa uma nova forma de abordar o sistema, um jeito diferente de pensar em equipes. Nosso currículo reflete isso. Não acreditamos que memorização seja tão importante, então reduzimos os tradicionais dois anos de ciência básica para um ano - assim os alunos têm um ano inteiro dedicado à inovação e liderança, ao longo do qual eles trabalham em equipe em projetos relacionados à melhoria da saúde. Além disso, a maior parte de nossos alunos tem graduação dupla - Saúde Pública, Administração, Engenharia e Psicologia Educacional são as mais populares -, pois achamos que a multidisciplinaridade é importante para incitar a criatividade.

Que ações vocês desenvolvem para promover essa interação da Medicina com outras disciplinas?

Na primeira semana, nossos alunos têm aulas com todos os estudantes de Enfermagem, de Farmácia e de Assistência Social, além de certo número de estudantes de outras áreas, como Engenharia e Administração. Então a gente foca nisso desde o começo do curso com nossos alunos, buscando engajar pessoas de toda universidade, especialmente quando chegam ao terceiro ano da faculdade.

Uma das metas da Dell é tornar Austin uma cidade modelo na área da saúde. O que, exatamente, desejam atingir?

A maior parte da saúde é definida fora das clínicas e hospitais - talvez 80% dos cuidados com a saúde ocorram fora desses locais. Então, a gente tem de entrar na comunidade e olhar para prevenção e promoção de saúde, assim como para aspectos sociais determinantes nesse sentido. Tudo isso precisa estar em nosso radar. Com essa proposta, a gente não quer só fazer com que Austin seja uma cidade o mais saudável possível, como mostrar que tipos de mudança podem ser feitos e ver como podemos ser um modelo para outras. Por isso estamos bem focados em atualização de dados, para determinar se o que fazemos traz o impacto que buscamos, e também estabelecer modelos de negócio, que nos permitam ser sustentável e expandir.

Qual o maior desafio para tornar essa meta realidade?

O modelo de negócio. No sistema de saúde americano, estamos fortemente construídos sobre uma estrutura de pagamento por serviço e o que estamos fazendo na verdade entra em conflito com isso. É complicado, as pessoas não entendem, é arriscado... Então, por causa disso, muitas das organizações no sistema de saúde hoje não estão interessadas no tipo de mudança que consideramos necessárias, e isso cria uma tensão constante entre nós.

Aqui no Brasil também estamos fortemente estruturados nesse sistema de pagamento por serviço, em que se paga pelo procedimento feito, não pelo resultado obtido ou valor gerado. Como alterar esse modelo?

Resolver todo o sistema de uma vez só é extremamente difícil. Então, em primeiro lugar, nós temos que encontrar entidades que estejam realmente dispostas a produzir melhores resultados a um custo baixo. Os indivíduos estão dispostos, mas eles não têm o conhecimento suficiente para conduzir esse tipo de decisão, determinar o valor, o custo... São as seguradoras que conduzem isso nos EUA, elas que pagam pelo tratamento possível e também pelas consequências que um atendimento precário coloca - como absenteísmo ou um trabalho menos efetivo. E tem as entidades governamentais. Nós trabalhamos com eles para resolver seus maiores problemas na área de saúde - após identifica-los, tentamos desenhar um sistema para otimizar a busca por resultados, com menos desperdício. Essa é nossa estratégia: ela nos permite fazer o trabalho à medida que avançamos.

Na Dell, vocês puderam começar do zero. Mas deve ser muito difícil promover mudanças radicais em instituições já existentes. Como fazer essa transição rumo a uma nova forma de ensinar Medicina?

É uma oportunidade maravilhosa não ter de confrontar, na minha própria organização, pessoas que gostam da forma como as coisas costumam ser feitas e não querem mudar. É extremamente difícil pegar uma prática existente e dizer: OK, agora nossa orientação vai ser focada em valor (em vez de pagamento por serviço). Isso simplesmente não é realista. Locais que tentarem isso não vão ser bem-sucedidos. Temos de abrir caminho para a criação de certos "espaços seguros", onde esse trabalho mais experimental possa ser feito, aberto à participação daqueles mais animados com a ideia de fazer algo diferente (enquanto aqueles que não quiserem se envolver não precisam). E ter o suporte e a liberdade para definir, com base em resultados comprovados, como o atendimento deve ser organizado. Para fazer isso, do ponto de vista financeiro, a organização terá que entender as eventuais vantagens que podem advir de um investimento como esse. Mas isso pode ser feito por meio de parcerias com entidades que tenham muito interesse naquele produto. Para nós, essa parceria veio com o Serviço de Saúde do condado, aqui em Austin. Eles dizem: ei, nós queremos esse atendimento com foco em valor, em resultado, queremos reduzir o desperdício, se vocês desenvolverem uma solução para isso, nós vamos pagar por ela. Esse tipo de relação é fantástico para manter as coisas fluindo.

Summit Saúde Brasil será realizado nesta sexta

Em sua terceira edição, o Summit Saúde Brasil reunirá nesta sexta-feira, 17, mais de 30 palestrantes que abordarão, entre outros temas, a importância da tecnologia e da inovação para a melhoria do sistema de saúde. O evento, realizado pelo Estado, será das 8 às 18 horas, no Sheraton WTC Hotel (Av. das Nações Unidas, 12.551), no Brooklin, em São Paulo.

Entre os convidados estão Camilla Junqueira, diretora-geral da Endeavor Brasil, Robson Miguel, diretor de Digital Services da Siemens Healthineers no Brasil, e Marcelo Felix, responsável pela estratégia digital em saúde do Hospital Albert Einstein.

A programação trará debates sobre modelos de remuneração e judicialização da saúde, além do atendimento a pessoas com doenças raras.

Assinantes do Estado podem adquirir ingressos com desconto. Também há preços promocionais para associados das apoiadoras. Patrocinam o evento Amil, Associação Nacional das Administradoras de Benefícios (Anab), Hospital Leforte, Roche e Siemens Healthineers. Informações: estadaosummitsaude.com.br.

Estadão
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