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O apagão dos testes

Só com muitos testes nos organizaremos para sair do isolamento de maneira segura

31 mar 2020 - 05h11
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Em São Paulo conseguimos evitar o erro da Itália que demorou a implementar o distanciamento social e está sofrendo as consequências. Mas estamos cometendo o erro dos Estados Unidos, que demoraram para adotar seu sistema de teste, deixaram de saber o número de casos que estavam ocorrendo, não conseguiram isolar os contaminados, e viram a pandemia explodir em Nova York com uma violência brutal. Agora o governo americano prevê até 200 mil mortes. Estamos no mesmo caminho e isso precisa ser revertido.

Para controlar essa pandemia só temos duas armas à disposição: o distanciamento social generalizado e a testagem ampla. Essas duas armas estão sendo usadas em conjunto nos países que têm tido mais sucesso. Vou tentar explicar como cada uma delas potencializa o poder de fogo da outra.

A testagem ampla é uma arma poderosa. Com ela visamos a identificar o maior número possível de pessoas infectadas, tanto os quadros mais sérios quanto os mais leves, identificar seus contatos e garantir que todos eles realmente fiquem isolados. O passo seguinte consiste em testar os contatos desses casos iniciais que já estão isolados. Para os positivos é possível identificar seus contatos, colocá-los em isolamento para serem testados no futuro. E assim podemos estender essa cadeia (é o chamado contact tracing). Quanto mais testes, mais ramificada e longa será essa cadeia, e quanto mais desses ramos forem interrompidos (quando um positivo não transmite para mais ninguém), menor a taxa de transmissão do vírus e menor o número de casos.

Essa estratégia exige organização, mas potencializa o isolamento generalizado. Enquanto o isolamento generalizado diminui o número de casos a serem testados, permitindo que um número menor de casos seja acompanhado pelo sistema de testagem ampla, a testagem ampla pode permitir o relaxamento gradual do isolamento generalizado. Uma arma multiplica o poder de fogo da outra. Isso funcionou na China, em Hong Kong e em Cingapura e se acredita que seja uma das razões do sucesso relativo de Alemanha e Inglaterra. Essa estratégia vem sendo usada no sistema privado de saúde, no entorno do presidente Bolsonaro e é bem conhecida entre epidemiologistas.

Veja o caso da comitiva de Bolsonaro. Quando uma pessoa testou positivo, toda a comitiva, mesmo os sem sintomas, foi testada. Mais de 20 pessoas sem sintomas foram identificadas como positivas e colocadas em isolamento. Muito provavelmente pessoas que não estavam na comitiva, mas eram contatos de pessoas que testaram positivo, também foram testadas e estão em isolamento. Por que esse mesmo procedimento não pode ser estendido ao restante da população, ou a uma parte dela?

Em São Paulo a resposta da Secretaria da Saúde quando defrontada com o problema é lacônica e derrotista: não temos testes suficientes. Isso simplesmente não é aceitável. Um Estado capaz de se mobilizar para comprar em poucos dias centenas de respiradores para os doentes graves, capaz de reorganizar todo o Instituto Central do Hospital das Clínicas para acolher centenas de casos graves, e capaz, com auxílio da iniciativa privada, de construir dois hospitais em ritmo chinês, um no Pacaembu e outro no Anhembi, simplesmente não pode se contentar com uma desculpa como essa.

Os Estados Unidos testavam mil pessoas por dia em 12 de março e hoje testam mais de 110 mil pessoas por dia. Não é impossível. Tampouco ajuda dizer que testes foram encomendados, que testes rápidos vão chegar e ir jogando a resposta para o futuro.

Enquanto os laboratórios privados fazem milhares de testes por dia e teriam, se incentivados e organizados, a capacidade de dobrar ou triplicar sua capacidade, a resposta do setor público nessa área é pífia. No Adolfo Lutz há mais de 12 mil amostras esperando para serem testadas enquanto seus laboratórios, pelo que se sabe, são capazes de processar menos de mil. São mais de 12 dias de fila. Inaceitável.

Os cientistas dos laboratórios de Biologia Molecular das universidades do Estado de São Paulo estão se organizando para ceder seus equipamentos e ajudar na crise, mas passados dias dessa oferta quantas amostras estão sendo testadas nessa rede? Se montamos hospitais com ventiladores rapidamente, por que não montamos uma estrutura de teste rápida (com resultados fornecidos em no máximo 24 horas) e robusta (capaz de testar dezenas de milhares de pessoas por dia)?

O fato de pessoas estarem sendo entubadas sem um teste positivo, pacientes estarem morrendo sem que o resultado do seu teste tenha sido recebido pelo hospital, e todos os caso que não são internados não serem testados, identificados e isolados, é um sinal claro da letargia gerencial. Afinal, quem é responsável por organizar o sistema de teste do Estado de São Paulo? Essa pessoa deve ter autoridade e se dedicar a isso 18 horas por dia. Precisa ter um nome e aparecer todo dia na televisão para anunciar o número de testes realizados no dia em cada laboratório, quantos deram positivo, o tamanho da fila, quantas pessoas serão testadas no dia seguinte e como progride o processo de contact tracing. Tudo isso com a mesma seriedade com que são anunciados os novos casos, o número de mortes e o cumprimento por parte da população do isolamento social.

Só com muitos testes saberemos o que nos espera no futuro próximo e nos organizaremos para poder sair do isolamento social de maneira segura. Passado o pico inicial só com o sistema de testes será possível monitorarmos casos que aparecem, apagando rapidamente pequenos focos que aparecerão, antes de eles se transformarem em novas epidemias.

É bom lembrar que, quando levantarmos o isolamento social, a única arma que teremos para conter os focos de infecção pelo coronavírus será o sistema de testes. Nós não sairemos desse isolamento profundo e a economia não se recuperará com segurança se não montarmos um enorme e poderoso sistema de teste. Quanto mais cedo levarmos isso a sério, melhor.

*É BIÓLOGO

Estadão
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