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Esperma de doador com mutação que causa câncer foi usado para concepção de quase 200 crianças na Europa

Algumas crianças já morreram, e apenas uma minoria das que herdam a mutação escapará do câncer ao longo da vida

11 dez 2025 - 07h01
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O esperma do doador foi utilizado em clínicas em toda a Europa (imagem ilustrativa)
O esperma do doador foi utilizado em clínicas em toda a Europa (imagem ilustrativa)
Foto: Shutterstock / BBC News Brasil

Um doador de esperma que, sem saber, tinha uma mutação genética que aumenta drasticamente o risco de câncer já gerou ao menos 197 crianças na Europa, segundo uma ampla investigação jornalística.

Algumas dessas crianças já morreram e apenas uma minoria das que herdaram a mutação escapará do câncer ao longo da vida.

O esperma não foi vendido a clínicas do Reino Unido, mas a BBC confirmou que um número "muito pequeno" de famílias britânicas, que já foram informadas, usou o material genético do doador em tratamento de fertilidade realizado na Dinamarca.

O European Sperm Bank (Banco Europeu de Sêmen, em tradução livre), da Dinamarca, que comercializou o esperma, afirmou ter sua "mais profunda solidariedade" com as famílias afetadas e admitiu que o material foi usado para gerar bebês em número excessivo em alguns países.

Até 20% do esperma do doador contém a mutação perigosa que aumenta o risco de câncer (imagem ilustrativa)
Até 20% do esperma do doador contém a mutação perigosa que aumenta o risco de câncer (imagem ilustrativa)
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A investigação foi conduzida por 14 emissoras públicas, incluindo a BBC, como parte da rede de jornalismo investigativo da União Europeia de Radiodifusão (EBU, na sigla em inglês).

O esperma veio de um homem anônimo que recebia pagamento para doar quando era estudante, a partir de 2005. Seu material genético foi utilizado por mulheres durante cerca de 17 anos.

Ele é saudável e passou nos exames de triagem para doadores. No entanto, o DNA em algumas de suas células sofreu mutação antes de ele nascer.

A alteração afetou o gene TP53, que tem função crucial na prevenção da transformação das células do corpo em células cancerosas.

A maior parte do organismo do doador não contém a forma perigosa do TP53, mas até 20% de seus espermatozoides apresentam mutação.

Porém, qualquer criança gerada a partir desses espermatozoides terá a mutação em todas as células do corpo.

Infográfico explica como uma mutação no gene TP53 presente no esperma do doador pode gerar risco de câncer em crianças concebidas por fertilização in vitro.

Painel superior esquerdo: fita de DNA com o texto “O TP53 ajuda o corpo a prevenir o câncer, mas mutações podem impedir seu funcionamento”.

Painel superior direito: figura humana ao lado de ilustrações de espermatozóides com o texto “O doador não é afetado pela mutação, mas ela está presente em até um quinto de seus espermatozoides”.

Painel inferior esquerdo: espermatozoide dentro de um círculo com o texto “Se espermatozoides mutados forem usados na fertilização in vitro, a mutação estará presente em todas as células do corpo da criança”.

Painel inferior direito: silhueta de uma criança com o texto “A criança gerada pode ter até 90% de risco de desenvolver câncer ao longo da vida, incluindo: câncer de mama, câncer nos ossos, tumores cerebrais e cânceres infantis, como leucemia”.
Infográfico explica como uma mutação no gene TP53 presente no esperma do doador pode gerar risco de câncer em crianças concebidas por fertilização in vitro. Painel superior esquerdo: fita de DNA com o texto “O TP53 ajuda o corpo a prevenir o câncer, mas mutações podem impedir seu funcionamento”. Painel superior direito: figura humana ao lado de ilustrações de espermatozóides com o texto “O doador não é afetado pela mutação, mas ela está presente em até um quinto de seus espermatozoides”. Painel inferior esquerdo: espermatozoide dentro de um círculo com o texto “Se espermatozoides mutados forem usados na fertilização in vitro, a mutação estará presente em todas as células do corpo da criança”. Painel inferior direito: silhueta de uma criança com o texto “A criança gerada pode ter até 90% de risco de desenvolver câncer ao longo da vida, incluindo: câncer de mama, câncer nos ossos, tumores cerebrais e cânceres infantis, como leucemia”.
Foto: BBC News Brasil

A condição é conhecida como síndrome de Li-Fraumeni e está associada a até 90% de risco de desenvolvimento de câncer, especialmente na infância e, mais tarde, de câncer de mama.

"É um diagnóstico terrível", disse à BBC a professora Clare Turnbull, geneticista do câncer no Institute of Cancer Research (Instituto de Pesquisa de Câncer, em tradução livre), em Londres (Reino Unido). "É uma situação muito desafiadora para uma família; há um peso permanente de conviver com esse risco. É claramente devastador."

Tomografias de ressonância magnética do corpo e do cérebro devem ser feitas todos os anos, assim como ultrassons abdominais, para tentar identificar tumores. Muitas mulheres optam por retirar as mamas para reduzir o risco de câncer.

O European Sperm Bank afirmou que "o próprio doador e seus familiares não estão doentes" e que esse tipo de mutação "não é detectada preventivamente na triagem genética". Além disso, o banco ainda que o doador foi "imediatamente bloqueado" quando o problema com seu esperma foi descoberto.

Morte de crianças

Médicos que tratavam crianças com câncer associado à doação de esperma levantaram preocupações durante a reunião deste ano da Sociedade Europeia de Genética Humana.

Eles relataram ter identificado 23 crianças com a variante, de um total de 67 conhecidas naquele momento. Dez já haviam recebido diagnóstico de câncer.

Por meio de pedidos via lei de acesso à informação e de entrevistas com médicos e pacientes, foi possível revelar que um número bem maior de crianças nasceu a partir do esperma do doador.

O total chega a pelo menos 197 crianças, mas o número final pode ser maior, já que ainda não há dados de todos os países.

Também permanece desconhecido quantas delas herdaram a mutação perigosa.

Kasper tem ajudado algumas das famílias afetadas
Kasper tem ajudado algumas das famílias afetadas
Foto: BBC News Brasil

A geneticista especializada em câncer Edwige Kasper, do Hospital Universitário de Rouen (França), que apresentou os dados iniciais, disse à investigação: "Temos muitas crianças que já desenvolveram câncer".

"Temos crianças que já tiveram dois tipos diferentes de câncer e algumas já morreram muito cedo."

Céline (nome fictício) é mãe solo na França. Sua filha, concebida com o esperma do doador há 14 anos, herdou a mutação.

Ela recebeu uma ligação da clínica de fertilidade que utilizou na Bélgica pedindo que sua filha fosse examinada.

Céline afirmou não ter "qualquer ressentimento" em relação ao doador, mas considera inaceitável ter recebido um esperma que "não estava limpo, não estava seguro, carregava um risco".

E ela sabe que o câncer estará sempre à espreita pelo resto de suas vidas.

"Não sabemos quando, não sabemos qual tipo e não sabemos quantas vezes", disse.

"Entendo que há grande chance de isso acontecer e, quando acontecer, vamos lutar e, se forem várias vezes, vamos lutar várias vezes."

Mapa da Europa destaca os países onde clínicas de fertilidade utilizaram o esperma do doador: Dinamarca, Bélgica, Espanha, Islândia, Alemanha, Grécia, Chipre, Macedônia do Norte, Geórgia, Hungria, Irlanda, Polônia, Albânia e Sérvia. Um marcador em vermelho indica a clínica European Sperm Bank, em Copenhague (Dinamarca)
Mapa da Europa destaca os países onde clínicas de fertilidade utilizaram o esperma do doador: Dinamarca, Bélgica, Espanha, Islândia, Alemanha, Grécia, Chipre, Macedônia do Norte, Geórgia, Hungria, Irlanda, Polônia, Albânia e Sérvia. Um marcador em vermelho indica a clínica European Sperm Bank, em Copenhague (Dinamarca)
Foto: BBC News Brasil

O esperma do doador foi utilizado por 67 clínicas de fertilização em 14 países.

O material não foi vendido a clínicas do Reino Unido.

No entanto, como resultado desta investigação, autoridades da Dinamarca notificaram, nesta segunda-feira (08/12), a Autoridade de Fertilização e Embriologia Humana do Reino Unido (HFEA, na sigla em inglês). de que mulheres britânicas viajaram ao país para receber tratamento com o esperma do doador.

Essas mulheres já foram informadas.

Peter Thompson, diretor-executivo da HFEA, afirmou que um número "muito pequeno" de mulheres foi afetada e que "todas foram informadas sobre o doador pela clínica dinamarquesa onde receberam atendimento".

Não se sabe se mulheres britânicas também fizeram tratamento em outros países que receberam esperma do doador.

Os pais que estiverem preocupados são orientados a contatar a clínica utilizada e a autoridade de fertilidade do país onde o procedimento foi realizado.

A BBC decidiu não divulgar o número de identificação do doador, pois ele fez as doações de boa-fé e os casos conhecidos no Reino Unido já foram comunicados.

Não existe legislação mundial que limite o número de vezes que o esperma de um doador possa ser utilizado, mas cada país estabelece suas próprias regras.

O European Sperm Bank reconheceu que esses limites foram "infelizmente" extrapolados em alguns países e afirmou estar "em diálogo com as autoridades da Dinamarca e da Bélgica".

Na Bélgica, o esperma de um único doador só pode ser usado por seis famílias. Em vez disso, 38 mulheres deram à luz 53 crianças com o material genético do mesmo doador.

No Reino Unido, o limite é de 10 famílias por doador.

No Brasil, a resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina recomenda que um doador gere no máximo dois nascimentos por milhão de habitantes na região, para reduzir o risco de relações entre irmãos biológicos. Também estabelece que a doação deve ser voluntária e anônima, mas não explica como essa divisão territorial é feita.

'Não é possível detectar tudo'

O professor Allan Pacey, que já dirigiu o Banco de Esperma de Sheffield (Reino Unido) e hoje é vice-presidente adjunto da Faculdade de Biologia, Medicina e Saúde da Universidade de Manchester (Reino Unido), afirmou que os países passaram a depender de grandes bancos internacionais de esperma, e que metade do esperma utilizado no Reino Unido é importado.

Ele disse à BBC: "Precisamos importar de grandes bancos internacionais de esperma, que também vendem para outros países, porque é assim que eles ganham dinheiro, e é aí que o problema começa, porque não existe lei internacional sobre quantas vezes o esperma pode ser usado".

Segundo Pacey, o caso é "horrível" para todos os envolvidos, mas é impossível garantir segurança absoluta no material genético.

"Não é possível detectar tudo. Hoje, aceitamos apenas 1% ou 2% de todos os homens que se candidatam para ser doadores, pelas regras atuais de triagem. Se apertarmos ainda mais, não teremos doadores de esperma."

Este caso, junto ao de um homem que foi impedido de continuar após ter gerado 550 filhos por meio de doação de esperma, reacendeu as discussões sobre a necessidade de limites mais rígidos.

A Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia sugeriu recentemente um limite de 50 famílias por doador.

No entanto, afirmou que essa regra não reduziria o risco de transmissão de doenças genéticas raras, mas seria melhor para o bem-estar das crianças que descobrem ter centenas de meio-irmãos.

"É preciso fazer mais para reduzir o número de famílias que nascem globalmente de um mesmo doador", disse Sarah Norcross, diretora da Progress Educational Trust, entidade independente que apoia pessoas afetadas por infertilidade e condições genéticas.

"Não compreendemos totalmente quais serão as implicações sociais e psicológicas de ter centenas de meio-irmãos. Isso pode ser potencialmente traumático", afirmou à BBC News.

O European Sperm Bank declarou: "É importante, especialmente à luz deste caso, lembrar que milhares de mulheres e casais não teriam a oportunidade de ter um filho sem a ajuda de esperma de um doador. De modo geral, é mais seguro ter um filho com o auxílio de esperma de um doador, desde que esses doadores passem por triagens conforme as diretrizes médicas."

E se você optar por um doador de esperma?

Sarah Norcross afirmou que esses casos são "extremamente raros" quando se considera o número de crianças nascidas por doação de esperma.

Todos os especialistas ouvidos disseram que recorrer a uma clínica licenciada garante triagem para mais doenças do que a maioria dos futuros pais passa.

Pacey, do Banco de Esperma de Sheffield, afirmou que perguntaria: "Esse doador é do Reino Unido ou de outro país?"

E acrescenta: "Se [o doador] for de outro país, é legítimo questionar se esse doador já foi utilizado antes, ou quantas vezes o [material genético do] doador já foi usado."

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