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Lacrou! Saiba o que expressões LGBTQ+ tem a ver com política

"Bater cabelo", "fazer a louca" e "fada sensata" são alguns termos do Pajubá, símbolo de resistência histórica que vai além da "cultura pop"

24 jun 2020 - 09h00
(atualizado às 09h14)
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Ques bixistranha, ensandecida/ Arrombada, pervertida/ Elas tomba, fecha, causa/ Elas é muita lacração...”, diz Linn da Quebrada em “Bixa Preta”. Os termos que saem da boca da artista, que se autodefine na música como “bicha loka, preta, favelada”, podem ser interpretados como simples gírias do vocabulário LGBTQ+. Mas as expressões usadas não são meras referências da "cultura pop”.

Por trás da, muitas vezes banalizada, “lacração”, e outras palavras tidas como “divertidas”, conhecidas como parte da “linguagem queer” e cada vez mais inseridas na comunicação entre os jovens - principalmente na internet -, há uma história de perseguição e resistência na origem do Pajubá, como é chamado o dialeto desenvolvido pela comunidade LGBTQ+ no Brasil. 

Linn da Quebrada foi bastante aplaudida ao tirar a peruca e continuar o show exibindo a cabeça raspada
Linn da Quebrada foi bastante aplaudida ao tirar a peruca e continuar o show exibindo a cabeça raspada
Foto: Andy Santana/Futura Press / Estadão Conteúdo

Resultado da união do português informal e falas usadas nas línguas africanas, mais especificamente dos grupos étnico-linguísticos nagô e iorubá, o Pajubá passou a ser reproduzido inicialmente em meios onde práticas religiosas afro-brasileiras eram aceitas, como os terreiros do candomblé e da umbanda. 

Por serem espaços já vistos com preconceito e intolerância, o acolhimento de pessoas não heterossexuais foi se naturalizando por lá e as pessoas acabaram adaptando a linguagem africana às vivências LGBTQ+.

“Funcionava como uma estratégia de sobrevivência das pessoas sexo-gênero dissidentes”, explica Carlos Henrique de Lucas, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia e autor do livro Linguagens Pajubeyras: Re(ex)sistência cultural e subversão da heteronormatividade.

Da resistência política ao entretenimento

Como uma forma de subversão ao sistema que violava os direitos humanos, a linguagem verbal e corporal pajubeyra foi muito usada durante o período da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985. Nessa época, foi comprovado pela Comissão Nacional da Verdade que havia perseguição e abusos cometidos contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, alvos de excessos cometidos em práticas de tortura, espancamento e extorsão nos anos de chumbo.

“Penso as linguagens pajubeyras como verdadeiras máquinas de guerras, entendendo-as como estratégias políticas e culturais de superação de uma realidade que se mostrou tenebrosa para as travestis e as beeshas afeminadas”, relata o professor. 

O dialeto, então, era utilizado para que essas pessoas se comunicassem com segurança durante a repressão. Segundo ele, a situação era ainda mais delicada para as travestis em um primeiro momento. “Uma vez que, como argumento no livro, foram elas a sofrerem o terror de Estado dirigido ao gênero dissidente e àquelas práticas sexuais que escapavam às normalidades heterossexuais”.

Kika Boom fala sobre como o Pajubá ainda é utilizado como forma de resistência pela comunidade LGBTQ+
Kika Boom fala sobre como o Pajubá ainda é utilizado como forma de resistência pela comunidade LGBTQ+
Foto: Instagram @kikaboomoficial / Reprodução

Desde então, cada vez mais o Pajubá vem se destacando não apenas na arte, refletindo a resistência cultural, como também conquistando espaço no âmbito acadêmico. Um exemplo disso foi quando chegou a ser tema da prova do Enem, em 2018, exaltando sua importância histórico, social e política.

O nome da linguagem passou a ser conhecido nos últimos anos e ganhou força quando artistas decidiram falar sobre o assunto. “O trabalho de artistas como Linn da Quebrada é extremamente potente no enfrentamento da violência centrada na sexualidade e no gênero. É um poderoso trabalho que aposta na inauguração de vidas possíveis, na criação de mundos em que os corpos de pessoas sexo-gênero dissidentes possam se mover livremente no interior de uma democracia. É preciso que entendamos o papel da cultura e da arte no enfrentamento da violência contra as pessoas LGBTQI+. E as linguagens pajubeyras operam exatamente aí”, destaca de Lucas.

Ainda assim, mesmo com um maior consumo da arte drag e visibilidade nos meios de comunicação pelo público heterossexual, artistas do meio retratam o preconceito. Para a cantora Kika Boom, é no Pajubá que ela encontra uma forma de expressão, de conforto e resistência, mesmo em tempos atuais. 

“O Pajubá nos acolhe muito, mas também nos solidifica como comunidade, que construiu sua comunicação e o seu contexto com características especiais. Na ditadura, provavelmente salvou a vida de muitos que queriam despistar a repressão e continua sempre atualizado com os contextos do seu tempo. Eu utilizo muito no meu dia-a-dia expressões como mona, bater cabelo, mana”, conta. 

Linguagem queer pelo mundo

Evento do MPT promove visibilidade e direitos LGBT.
Evento do MPT promove visibilidade e direitos LGBT.
Foto: Instagram/@peterhershey / Estadão Conteúdo

A criação de um vocabulário voltado à comunidade LGBTQ+ não é uma exclusividade do Brasil. Na Turquia, é o lubunca, que abarca termos de outras línguas como grego, armênio e francês. Já a África do Sul possui alguns vocabulários próprios que contemplam os “argots queer”, como são chamadas as gírias queer: gayle e isiNgqumo.

 “Algumas línguas, como o turco e o indonésio, por exemplo, também possuem linguagens queer, mas a genialidade e o humor contidos no Pajubá são muito particulares”, conta Vitor Shereiber, brasileiro e gerente de projetos didáticos da Babbel. Shereiber traduziu e contextualizou dezenas de termos e expressões para que linguistas de diversas nacionalidades pudessem eleger as mais criativas (confira o ranking no gráfico abaixo).

Entre a lista das 10 expressões do pajubá eleitas como as mais interessantes internacionalmente, de Lucas chama a atenção para uma delas: a expressão “fexação”, que ele prefere grafar com ‘x’. “Tem um aspecto político não mencionado na lista: a fexação é um curto-circuito no gênero, espécie de fio desencapado nos sistemas que se propõem regular e definir quais vidas valem ou não a pena ser vividas. Fexar, assim, tem uma relação intrínseca com a zombaria, ou a gongação, outra palavra pajubeyra poderosa”, finaliza.

 

Infogram

Fonte: Redação Terra
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