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Meninos podem crescer violentos quando são criados em meio à masculinidade tóxica dos pais

Vítima de bullying diz que a raiva, o rancor e a sede por justiça lhe dão controle e autoconfiança

29 mar 2019 - 17h36
(atualizado em 30/3/2019 às 18h06)
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Cena do vídeo da campanha 'Boys Don't Cry', em que menino fica constrangido diante da valentia e masculinidade tóxica do pai.
Cena do vídeo da campanha 'Boys Don't Cry', em que menino fica constrangido diante da valentia e masculinidade tóxica do pai.
Foto: Reprodução de cena de 'Boys Don't Cry' (2018)/ White Ribbon PSA / Estadão

"Sou uma pessoa cética, relativamente fria e desconfiada dos outros. Sou incapaz de confiar em alguém pela quantidade de vezes que me dei mal com isso", desabafa Miguel** sobre sua vida adulta. O homem passou a adolescência sofrendo bullying e guarda consigo o rancor daquela época. Por mais que já tenham se passado dez anos, ele diz sentir "um misto horrível de pensamentos" quando lembra das humilhações que viveu nas mãos dos primos e colegas de classe.

"Já prejudiquei quem fez isso comigo quando tive a oportunidade, tanto na vida pessoal quanto na profissional. É uma sensação agridoce: azeda, porque normalmente é algo ruim, e doce porque eu reconquisto o controle e a autoconfiança que perdi há muito tempo [agredindo quem me fez mal]", explica.

O ódio e a vingança de Miguel não estão muito longe da realidade de outros homens que descontaram suas dores massacres vistos em março deste ano. Um atirador abriu fogo em uma mesquita na Nova Zelândia, e dois jovens atiraram contra alunos e funcionários de uma escola em Suzano, na região metropolitana de São Paulo. Ambos acreditavam que "sete mulheres virgens" estariam esperando por eles no céu.

Segundo a psicóloga e especialista em saúde mental Janaína Leslão, um dos motivos que tornam os homens mais violentos que as mulheres é a forma tóxica como é construída a masculinidade dos meninos na sociedade.

"O que se espera de um garoto é força física, e pouco se trabalha as frustrações, o choro e a sensibilidade. Há pais que não abraçam o filho, não o deixam beijar o irmão ou demonstrar amor. Se eles não podem entrar em contato com as emoções, não vão aprender a demonstrar afeto e amar sem serem tóxicos e obsessivos", afirma. "Hora ou outra isso pode explodir de forma cruel, inclusive contra as mulheres e pessoas próximas".

A especialista diz ainda que muitas famílias têm medo do filho não responder ao padrão do que é masculino e feminino na sociedade. "Sempre tem que ter demonstração de humilhação na forma de brincadeira, como dizer ao menino que ele é mais fraco porque faz algo considerado de mulherzinha", diz.

A ONG australiana White Ribbon demonstrou essa violência presente na vida de muitos meninos na campanha Meninos Não Choram. O vídeo do projeto mostra um garoto constrangido diante da valentia e masculinidade do pai. Assista.

"Meninos não podem ter medo, não podem chorar, não podem ser tímidos, não podem se sentir machucados, ser sensíveis e impotentes, porque meninos não choram", diz o narrador enquanto crianças se agridem com socos e um adolescente induz uma jovem bêbada a ter relações sexuais com ele.

'Cheguei a andar com facas na escola para me defender'

Miguel relata que sempre foi um jovem tranquilo e esforçado. Trabalhava para ajudar nas despesas de casa e sempre apoiava os pais nas dificuldades financeiras. "Passei perrengues com a minha família para poder me manter na escola particular. Eu não merecia os xingamentos, armações e ridicularizações [que faziam contra mim]", relata.

A sede por justiça fazia Miguel responder à altura as agressões dos outros meninos. Ele recorda que já quebrou os braços e o nariz do primo e foi enquadrado pela polícia ao ser visto brigando fora da escola. "Até hoje sinto raiva, asco, ódio e vontade de vingança", revela.

O jovem Pedro** passou por momentos ainda mais drásticos que Miguel. Ele recorda que alunos roubavam itens da escola para jogar embaixo de sua mesa para incriminá-lo, até que um dia surtou e perdeu o controle. "Derrubei aquele desgraçado no chão e soquei a cara dele até quebrar o nariz dele. Mesmo assim, nada mudou. Cheguei a andar com facas na escola para me defender e tentei me suicidar uma vez quando tinha 11 anos", relata.

Pedro acredita que cometeria um atentado se tivesse uma arma ou acesso à internet da forma facilitada que existe hoje. "Eu seria um desses perturbados que decidem se matar e levar mais gente junto, porque eu tinha vontade de matar meus agressores todos os dias. Desejava que algo acontecesse com eles para ver se aquilo parasse", revela.

Segundo o psicólogo Flávio Urra, os professores dos colégios também têm culpa disso quando reproduzem discursos machistas. "Nos meninos é estimulado o exercício da coragem e de correr riscos, enquanto que nas meninas constroem a ideia de submissão", explica. O especialista alerta ainda que "a falta de contato com as próprias emoções leva muitos homens a se tornarem silenciosos, frios e insensíveis, capazes de cometer atos violentos, porque a única emoção que lhe sobra é a raiva".

'A masculinidade do homem está centrada no pênis'

A psicóloga Janaína Leslão analisa que os ambientes de violência entre homens são marcados desde a infância por xingamentos que associam o pênis a agressão. Isso porque expressões como "pau", "cacete" e "porrada" fazem alusão ao órgão masculino e ao sêmen. "Os nomes dados ou relacionados a essa parte do corpo são sempre usados para coisas que podem machucar", afirma.

Por outro lado, diz ela, o agressor só se sente ameaçado por esse vínculo entre o sexo e as palavras quando está em um ambiente marginalizado como as prisões, onde teme o estupro assim como as mulheres. "O maior medo de um homem é entrar na cadeia e ser estuprado, virar o que chamam de 'mulherzinha', definição que muitos deles desprezam e dizem aos outros todos os dias", explica.

Diante dessa relação tóxica que muitos rapazes criam com a masculinidade, o psicólogo e sociólogo Flávio Urra começou a coordenar o programa de discussões entre homens "E Agora, José? pelo fim da violência contra a mulher", na capital de São Paulo. Nas atividades, os integrantes compartilham experiências, frustrações e formas de se tornarem pessoas melhores.

Avanços esbarram nos retrocessos

Urra afirma que o grupo é positivo para a saúde mental dos participantes. Ele lembra de um homem que parou de forçar a mulher a fazer sexo e de outro que confessou que já teria matado a companheira se não tivesse entrado para o grupo. Num outro momento, um policial disse que passou a evitar matar durante o trabalho depois que conheceu o coletivo, passando a atirar para imobilizar e não mais para tirar vidas.

De forma independente, Miguel e Pedro também buscam se tornar pessoas melhores a cada dia. O primeiro faz terapia psicológica e o outro diz ter parado de remoer o passado com o passar do tempo. No entanto, os avanços ainda não definem a realidade no Brasil: seis mulheres são estupradas por hora, mais de 4,5 mil foram assassinadas em 2017 e homens ainda recorrem aos fóruns de ódio da dark web para, assim como Miguel, alimentar o sentimento de "ódio, nojo e vontade de vingança" que sentem.

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

**Nomes fictícios para preservar a identidade das fontes. Pedro e Miguel relataram a dor deles no fórum "Sobre as escolas e as humilhações", da rede social Reddit.

Estadão
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