Como o calor afeta nossa capacidade cognitiva? Entenda a relação
Quando as temperaturas sobem, o cérebro entra em modo de sobrevivência - e aprender, pensar e até manter o equilíbrio emocional se torna muito mais difícil
Nos últimos anos, falar de calor deixou de ser apenas comentar o tempo ou o próximo dia de praia. Com o avanço da crise climática e a sequência de recordes de temperatura, o calor extremo passou a ser também um tema de saúde pública - e, cada vez mais, de saúde mental e cognitiva.
Quando a temperatura sobe demais, o corpo entra em modo emergência. O cérebro passa a priorizar funções básicas, ligadas à sobrevivência, e retira energia daquilo que considera menos urgente: foco, memória, raciocínio. A sensação de "cabeça lenta", irritação e cansaço excessivo em dias muito quentes não é frescura, é fisiologia.
Quando o calor entra na sala de aula
Ao site Repórter Brasil, a neurocientista Lívia Ciacci explica que, em ambientes muito quentes, o organismo desvia recursos para tentar se resfriar. Ele aumenta a perda de água, dilata vasos, acelera a respiração. "É como se a gente entrasse em um estado de alerta, em que o bem-estar do corpo é prioridade e tudo o que é secundário perde importância", diz.
Numa sala de aula cheia, esse efeito se intensifica: mais pessoas, mais calor, menos concentração. Em vez de prestar atenção no conteúdo, o cérebro se ocupa de pensamentos como "queria uma água gelada" ou "precisava jogar uma água na cabeça". O resultado é um aprendizado prejudicado.
Os números ajudam a dimensionar o problema: 2024 foi o ano mais quente já registrado, 1,6 ºC acima da média do início da era industrial. Em cidades como Nova York, o desempenho escolar caiu até 50% em dias letivos com temperaturas acima de 38ºC em comparação com dias mais "amenos", acima de 32ºC.
No Brasil, a realidade já bate à porta. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o ano letivo precisou ser adiado em meio a temperaturas que passaram dos 43 ºC. Sociedades médicas pediátricas alertam: crianças desidratam mais rápido, podem apresentar tontura, desmaios, exaustão, cãibras, insolação e, claro, mais irritabilidade e dificuldade de atenção.
Quando o sol "queima" o raciocínio
O calor não prejudica apenas o conforto: ele interfere diretamente no funcionamento do cérebro. Um estudo apoiado pelo projeto HEAT-SHIELD mostrou que a exposição prolongada da cabeça e do pescoço à radiação de luz intensa e calor levou a aumento da temperatura corporal em 1 ºC. Além disso, observou-se uma piora significativa em tarefas cognitivas e motoras, mesmo antes de o corpo atingir níveis extremos de aquecimento.
Os pesquisadores observaram que as pessoas começaram a errar mais em tarefas que exigiam precisão e atenção, especialmente em atividades mais complexas. Em estudos com militares e pilotos, por exemplo, o estresse térmico levou a desvios de rota e aumento do risco de incidentes.
Outra revisão científica apontou que a combinação de calor, desconforto e irritação subjetiva está diretamente ligada à queda de desempenho em tarefas cognitivas complexas. Intervenções de resfriamento, como bolsas frias na pele, ajudaram a amenizar parte desses efeitos.
A temperatura ideal para pensar melhor
Pesquisas conduzidas por universidades como Stanford mostram que nos afastar da chamada "zona de conforto térmico" cobra um preço alto. Ambientes muito frios ou muito quentes fazem o corpo gastar energia apenas tentando se equilibrar, desviando recursos do cérebro. O resultado é mais erro, mais cansaço, menos clareza mental.
Em ambientes de estudo e trabalho, ajustar a temperatura para algo em torno de 21 ºC a 23 ºC já traz ganho perceptível de desempenho. Quando não é possível controlar o termostato, camadas de roupa, ventilação adequada, pausas e hidratação ajudam a manter o corpo em uma faixa mais estável. Às vezes, o que chamamos de "cansaço mental" não é falta de disciplina, café ou motivação. É excesso de calor (ou frio) drenando energia do cérebro.
Calor, saúde mental e risco aumentado
Se por um lado o calor nos deixa lentos, por outro pode nos tornar mais impulsivos e instáveis. Psiquiatras e neurocientistas têm observado que ondas de calor se associam a aumento de: irritabilidade e agressividade; sintomas de depressão e ansiedade; crises em pessoas com transtorno bipolar e esquizofrenia; insônia e alterações de humor.
A Organização Mundial da Saúde já vem alertando para o impacto das ondas de calor na saúde mental. Estudos internacionais apontam que as ondas de calor elevam em mais de 70% os casos de doenças mentais em determinadas populações analisadas; cada aumento de 1 ºC em alguns contextos se associa a alta nas taxas de suicídio; e em cidades brasileiras, como Curitiba, períodos quentes foram ligados a mais atendimentos de emergência por tentativa de suicídio e a maior incidência de quadros de ansiedade e depressão.
Reconhecer isso não é motivo para pânico, mas para ação. Cuidar do ambiente em que vivemos, ouvir os alertas da ciência e proteger o que temos de mais precioso - a nossa capacidade de sentir, pensar, aprender e criar, mesmo em tempos cada vez mais quentes.