‘A floresta entrelaça o sabor do chocolate’: ribeirinha transforma memórias da infância em negócio de sucesso no PA
'Filha do Combu', criada há 20 anos por Dona Nena, virou referência em chocolates artesanais e é exemplo da importância da sociobioeconomia
A infância de Dona Nena foi marcada por banhos no rio, escalada de árvores e convivência diária com árvores frutíferas na comunidade Igarapé de Piriquitaquara, no interior do Pará. Das memórias mais afetivas que guarda daquela época, a principal é o relacionamento com o chocolate. O doce, que tem como base o cacau, esteve presente durante toda a vida de Izete Santos Costa, hoje com 60 anos.
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"Eu conheci o chocolate como chocolate caseiro, que era o que faziam meus pais. Eles nos ofereciam em momentos festivos como Natal, Páscoa, ou, até mesmo, durante a semana. Quando dava vontade, nossa mãe ralava o cacau da barra e misturava com água pra gente tomar chocolate quente", contou em entrevista ao Terra.
O caminho de ‘resgate’ do cacau, ao lado dos pais, era uma cena comum na infância da empreendedora. A família subia o rio de canoa e voltava sentada em cima do fruto e já se deliciando com o cacau.
Dona Nena é dona da fábrica de chocolate artesanal "Filha do Combu", localizada na Ilha do Combu, a cerca de 15 minutos de Belém (PA). O negócio construído há 20 anos é um exemplo de como a bioeconomia pode funcionar bem e ainda agregar populações ribeirinhas na Amazônia.
"Comecei a trabalhar com cacau no momento em que eu estava buscando geração de renda. Já estava casada e tinha filhos quando lembrei desse chocolate que nós tomávamos na família. Resolvi jogar no mercado, deu certo e, aos poucos, fui aprimorando e fazendo mais derivados de cacau para vender", explicou.
A empreitada da paraense teve início dentro de sua própria casa. Entre as principais dificuldades para produzir suas barras de chocolate estava a mão de obra. Além disso, a logística do transporte dos produtos artesanais também era complicada. Tudo isso dividindo o tempo com o emprego de agente de saúde e com os cuidados com a casa e a família
“Antes, era necessário o pilão para moer o cacau, então era difícil encontrar pessoas para me ajudar. Foi um momento difícil, mas eu nunca desisti. Eu precisava sair de casa de madrugada para vender o cacau na feira, às vezes com chuva, nos períodos do inverno amazônico. Era difícil conseguir transporte para chegar no porto. Também precisava desembarcar com a carga, embarcar no carro e desembarcar na feira novamente, além de armar a barraca”, relembrou.
'Passei a ter mais respeito pela floresta'
As noites mal dormidas e todo o esforço foram recompensados com o sucesso da fábrica de chocolates, que foi conquistando os mais diversos paladares e caindo no gosto popular. Com a renda expandida, Dona Nena aumentou, aos poucos, a sua equipe. Durante alguns anos, ainda precisou conciliar seu trabalho formal. Porém, com a expansão da fábrica, ela passou a oferecer atividades turísticas na região.
“Comecei a chamar algumas pessoas para me ajudarem a fazer as barras de chocolate no fim de semana. Meu trabalho foi para a mídia e as pessoas passaram a vir aqui tirar fotos, procurar e visitar. Fui servindo café da manhã, oferecendo trilha”, continuou. Em 2017, ela uniu forças com Mário Carvalho para profissionalizar de vez as atividades de turismo da “Filha do Combu”. Com isso, surgiu a empresa Vida Caboca, especializada em passeios turísticos na Ilha do Combu.
“A floresta para mim influencia no sabor do chocolate. São várias espécies frutíferas que rodeiam as árvores de cacau, elas se entrelaçam através das raízes. Tudo isso forma esse sabor diferenciado do cacau da floresta", explicou.
"Quando comecei a trabalhar com a floresta, passei a ter mais respeito por ela e por tudo aquilo que ela oferecia. Meu trabalho vai muito além do chocolate."
Além do chocolate, a comunidade também tem como principal fonte de renda a colheita do açaí --que pode virar, por exemplo, licor e geleia, produtos oferecidos na empresa de Dona Nena: “Hoje verticalizo grande parte da produção que a floresta me oferece, como o cupuaçu e a pupunha. Temos 22 funcionários registrados, além de fomentarmos duas cooperativas de transporte e vários restaurantes.”
Dona Nena ajudou a fundar a Associação de Mulheres Extrativistas do Combu. Hoje, são 16 mulheres envolvidas diretamente na organização. “Temos parcerias com outros produtores que agregam o produto deles aqui na loja. Eu vendo o produto deles, eles vendem o meu, isso ajuda a todos a terem uma renda, Temos várias iguarias que oferecemos aos turistas, mas nosso carro-chefe é o chocolate”, detalha.
Entendendo a bioeconomia e a sociobieconomia
A bioeconomia considera as necessidades das gerações presentes sem interferir nas das gerações futuras, segundo Felipe Storch, mestre em Gestão Ambiental pela Universidade de Yale. O modelo econômico surgiu como uma forma de reaproveitar recursos naturais sem prejudicar o meio ambiente.
"Há empresas que aproveitam cascas de frutas da Amazônia (cupuaçu, açaí, castanha) em farinhas, óleos, cosméticos, bioplásticos e ração animal. Veja que é um processo de transformação de um item ou parte dele de algo sem valor reconhecido para algo com mais valor agregado. Há diversos exemplos de inovação tecnológica neste sentido", diz o gestor.
De acordo com o especialista, para o Brasil, a bioeconomia é fundamental como uma estratégia de desenvolvimento econômico. Um estudo recente produzido pela ICC Brasil, SystemIQ e MMA apontou que o modelo pode gerar entre US$ 100 e 140 bilhões ao PIB brasileiro em 2032. A título de comparação, isso seria o equivalente a 2 ou 3 Zonas Franca de Manaus em resultado.
Paralelamente à bioeconomia, existe também a sociobioeconomia, da qual Dona Nena é um exemplo. "A sociobioeconomia foca nos produtos, bens e serviços que promovam a inclusão social e econômica de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares", exemplifica.
Storch explica que a bioeconomia é uma estratégia fundamental para gerar renda justa para as comunidades da Amazônia. Entre os exemplos destacados pelo especialista estão a COOPERACRE e a Belterra Agroflorestas.
Enquanto a primeira beneficia direta e indiretamente mais de 20 mil pessoas no Acre através da venda de castanha-do-Brasil, a segunda recupera áreas degradadas com sistemas agroflorestais. O manejo sustentável do pirarucu é outro exemplo celebrado, pois tem agregado valor de mercado tanto para a carne do peixe como para seu couro.
"O governo tem um papel fundamental de criar incentivos positivos para a bioeconomia e de colocar recursos financeiros que reduzem a percepção de riscos, por exemplo, via BNDES e compras públicas. Por outro lado, a bioeconomia só atinge seu potencial com a forte participação da iniciativa privada. Ela precisa investir em produção/beneficiamento, inovação (biotecnologia, química verde), contratos justos com comunidades, rastreabilidade e compromissos de demanda --frequentemente alavancados por capital concessionário e blended finance público", conclui Storch.