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Com força no YouTube, lo-fi hip-hop vira 'companheiro' de millennials na pandemia

Carregado de batidas cadenciadas, samples e ruídos, gênero vira música de meditação das novas gerações; clássicos brasileiros ganham roupagem no estilo

24 set 2021 - 17h00
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"Não teria terminado minha tese de doutorado se não fosse a menininha do lo-fi no YouTube", conta a advogada Bianca Kremer, 32. A "menininha" a que ela se refere é uma ilustração famosa na internet, que virou marca registrada do canal Lofi Girl, que tem mais de 9 milhões de inscritos no YouTube. Já "lo-fi" diz respeito ao gênero musical "lo-fi hip-hop", que ganhou status de "música de meditação" entre os millennials na pandemia. Quase sempre instrumental e com batidas cadenciadas e repetitivas, o estilo tem se espalhado pelo site de vídeos do Google como um instrumento de concentração para estudo e trabalho.

Ganhando adeptos nos últimos quatro anos, o lo-fi virou a trilha sonora oficial da quarentena de muita gente, dados todos os desafios de foco impostos pelo trabalho remoto. "Você entra em um universo paralelo escutando lo-fi. Num ambiente barulhento como o home office, é uma forma de estimular a imersão", diz a advogada, que passou o confinamento com a desagradável companhia de um prédio em obras ao lado de sua casa no Rio de Janeiro.

Desde sempre, a humanidade busca em músicas repetitivas e relaxantes a janela para uma outra dimensão - isso acontece dos mantras budistas e hindus ao canto gregoriano, passando pelo movimento New Age, pela ambient music do produtor Brian Eno e chegando a nomes do mainstream, como a cantora Enya. Nenhuma delas, porém, alcançou tanta gente em tão pouco tempo. Afinal, somente o lo-fi se beneficiou de uma plataforma tão poderosa como o YouTube.

Embora o lo-fi exista no Spotify, no SoundCloud e em outros serviços de música, o YouTube tinha o terreno perfeito para que o gênero prosperasse. Por lá, canais transmitem playlists ao vivo 24 horas por dia, algo parecido com o que fazem as rádios tradicionais. O potencial de transmissão infinita não exige que o ouvinte escolha o que escutar (e ele nunca será interrompido pelo fim da playlist, como ocorre no Spotify). É ideal para quem quer colocar algum tipo de som e se concentrar - muita gente, inclusive, chega a fixar uma aba das playlists de lo-fi no navegador, ao lado de e-mail e outros sites usados no dia a dia.

Ao mesmo tempo, os canais permitem a sensação de companhia, algo raro em tempos de home office. "As rádios ao vivo dão a sensação de que você não está estudando sozinho. Criou-se um senso de comunidade e proximidade", afirma Bruno Telloli, gerente de cultura e tendências do YouTube Brasil. Além da transmissão na plataforma, as rádios do YouTube têm uma parte de chat, em que os usuários podem trocar mensagens em tempo real.

Criado em 2017 ainda sob o nome ChilledCow, o principal ícone do gênero no YouTube é o canal francês Lofi Girl. De acordo com a plataforma de monitoramento de audiência digital SocialBlade, a página teve um boom de 340 mil novos inscritos em março de 2020 - antes da pandemia, o canal registrava um crescimento médio de 160 mil inscritos por mês. Hoje, o Lofi Girl soma mais de 9 milhões de inscritos e, todos dias, há cerca de 40 mil usuários online simultaneamente na transmissão.

Em fevereiro de 2020, os fãs do canal tiveram um susto: um erro no YouTube encerrou a transmissão, que àquela altura já somava 13 mil horas, ou 541 dias, de som ininterrupto. Uma dessas pessoas foi o estudante de Direito Eros Teodoro, 22.

Ele conta que o canal se encaixou em sua rotina. "É uma playlist infinita que atualiza sempre. Você faz sua atividade sem precisar se preocupar em selecionar a próxima música", conta o jovem, que mora na cidade de Sete Lagoas (MG).

Além de acompanhá-lo nos estudos da faculdade ao longo da madrugada, a menininha também é a trilha sonora que Teodoro escolhe para jogar no computador e criar desenhos - o estudante gosta de animes e faz ilustrações com traço oriental, principalmente de mangás. O estilo, por sinal, é o mesmo da ilustração da Lofi Girl, que se inspirou na estética do japonês Hayao Miyazaki, diretor de animes como "A Viagem de Chihiro".

Que som é esse?

A conexão do Japão com o estilo não é apenas estética. Um dos criadores do lo-fi é o produtor japonês Nujabes - além dele, o rapper americano J Dilla é um dos nomes fundamentais do gênero. Morto em 2010, Nujabes costumava samplear peças de som de jazz e soul, o que abriu caminho para pequenos trechos instrumentais tocados em repetição acompanhado de batidas eletrônicas. Isso abriu as portas para as propriedades relaxantes do som.

"A constância da batida é o que causa essa sensação. Nunca tem algo na música que você não espera", conta a designer Izadora Duarte, 20, de Aracati (CE). A impressão dela, que é ouvinte desde 2019, encontra ecos nas palavras dos estudiosos do estilo.

"O lo-fi não tem variação dinâmica, tensão e nem acordes sujos. Os acordes são mais melosos e a batida é mais lenta", explica Marcelo Bergamin Conter, professor de produção fonográfica do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). "Isso parece uma resposta à precarização e à pressão que estamos vivendo no trabalho e no estudo", diz.

Além das características musicais, o lo-fi carrega outras propriedades sonoras com potencial de relaxamento. As músicas muitas vezes levam propositalmente chiados, ruídos e outras imperfeições sônicas - a maioria característica de formatos analógicos como fita K7 e disco de vinil (lo-fi, afinal, é uma sigla para som de baixa fidelidade). "Esses sons trazem um certo conforto. É como ligar um ventilador na hora de dormir para que o ruído encubra o barulho da rua. Esses elementos ajudam a construir essa paisagem sonora", diz Conter.

Alguns dos ruídos e dos chiados vêm dos samples de discos da década de 50 e 60, que tinham formas mais rudimentares de captação de áudio. Porém, é possível também que eles sejam gerados artificialmente por meio de programas de computador - ou seja, as gerações atuais usam alta tecnologia para emular baixa tecnologia. É uma conexão tão complexa que coloca em cheque as definições de música de alta fidelidade e de baixa fidelidade.

Zeca Viana, doutorando em sociologia da música pela Universidade Federal Pernambuco (UFPE) e produtor independente, lembra também que esses elementos sonoros trazem uma sensação de nostalgia, o que também ajuda a colocar o ouvinte num lugar de conforto e proteção. "O lo-fi carrega uma ideia de nostalgia daquilo que não foi vivido, o que funciona para quem está lidando com pandemia, isolamento ou alguma outra situação de pressão", diz.

Suco de Brasil

No Brasil, o braço nostálgico também ressuscitou uma nova geração de lendas da música brasileira: alguns canais fazem remixes ao estilo lo-fi hip-hop para grandes clássicos do cancioneiro nacional. Assim, as vozes de Tim Maia, Seu Jorge, Belchior, Jorge Ben Jor e Rick & Renner são abraçadas pelas batidas cadenciadas e efeitos oníricos do estilo.

Um dos principais produtores do lo-fi no País é o gaúcho João Dutra, 26, que tem como grande hit de seu canal o vídeo "Lofi Para Webchurrasco". Lançado em agosto de 2020, ele reúne uma hora de remixes de sons nacionais e soma mais de 1 milhão de visualizações - o álbum, pensado especialmente para os quarentenados, foi produzido durante dois meses.

Além das músicas, Dutra faz uma pesquisa extensa de diálogos dos artistas para incluir entre um remix e outro - um dos trechos do Webchurrasco, por exemplo, é uma fala de Zeca Pagodinho refletindo sobre a diferença entre samba e pagode.

"Criei o canal em janeiro de 2019 quando comecei a mexer com produção musical. Antes da pandemia, eu tinha mil inscritos, mas entre março e maio do ano passado teve um boom gigantesco. E não investi em publicidade", conta o jovem de Porto Alegre, que trabalha com tecnologia da informação e passou a produzir mais vídeos durante a quarentena - trabalhando de casa, ele termina o expediente e já parte para os remixes. O canal Jdutra tem hoje 74,3 mil inscritos.

"Misturar a música brasileira traz um fator surpresa para o lo-fi. São músicas complexas harmonicamente, com detalhes que às vezes passam despercebidos. Dá muito certo quando juntamos com uma batida eletrônica", diz ele.

É também o caminho ideal para apresentar grandes nomes para uma nova geração. "Encontro músicas nessa playlist que escutava com a minha mãe no carnaval de 2004 e não tinha ideia do título ou do autor. Adoro isso!", comenta Izadora.

Viana lembra: "É uma forma de ressignificar a música brasileira e permitir que uma nova geração busque identidade". Nada mal para um gênero que nasceu para ficar tocando em segundo plano, sem intenção de atrapalhar.

Estadão
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