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Quando os EUA salvaram a Venezuela de um bloqueio naval europeu

19 dez 2025 - 11h41
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No início do século 20, Grã-Bretanha, Império Alemão e Itália impuseram um bloqueio aos portos da Venezuela para cobrar dívidas do país sul-americano. E o papel dos EUA na crise foi bem diferente do que o sob TrumpUma esquadra de navios impõe um bloqueio na costa venezuelana e potências estrangeiras apresentam ultimatos para o governo em Caracas. Não se trata de Donald Trump deslocando um porta-aviões e ordenando a captura de petroleiros para tentar pressionar o regime de Nicolás Maduro, mas uma cena que aconteceu há mais de um século.

Captura de navio venezuelano pela esquadra anglo-germânica em 1902
Captura de navio venezuelano pela esquadra anglo-germânica em 1902
Foto: DW / Deutsche Welle

A chamada Crise da Venezuela de 1902 guarda paralelos com a atual escalada de tensão em andamento entre Venezuela e Estados Unidos, mas também tem elementos de um mundo invertido.

Os algozes da Venezuela neste caso eram europeus: mais especificamente britânicos, alemães e italianos. E os venezuelanos apelaram que os Estados Unidos interviessem para evitar uma escalada ainda mais grave, e Washington acabou se envolvendo em apoio a Caracas.

Escalada da crise

Era o fim de 1902. A Venezuela passava por uma grave crise econômica e política sob a batuta do presidente José Cipriano Castro, um militar nacionalista e autoritário que havia chegado ao poder por meio de uma revolução.

À época, o país devia milhões de dólares em empréstimos a países europeus, principalmente para o Império Britânico e o Império Alemão, este último liderado pelo kaiser (imperador) Guilherme 2º.

A Venezuela não só se recusou a pagar, como foi além. Cipriano Castro deu outro calote, no pagamento de uma ferrovia de 200 km de extensão, ligando Caracas e o porto de Valencia, construída no país sul-americano pela empresa alemã Krupp.

Cipriano Castro também acusado pelo Império do kaiser de desapropriar terras de comerciantes alemães e forçá-los a ceder empréstimos ao governo da Venezuela.

A Coroa Britânica e Império Alemão se uniram e reagiram. Em 7 de dezembro de 1902, as duas potências apresentaram um ultimato para o pagamento, que foi rejeitado por Cipriano Castro. O Reino da Itália, outro credor, também apresentou um ultimato dias depois.

Dois dias depois, as nações europeias lançaram, em retaliação, um bloqueio naval na costa venezuelana no Mar do Caribe. Um cruzador inglês e três alemães - incluindo o principal deles, o SM Gazelle -, além de outros navios de guerra menores, encurralaram a pequena frota da Marinha Venezuelana, composta de apenas quatro pequenos navios.

A coalizão germano-britânica afundou dois deles. A Itália, por sua vez, ficou encarregada de bloquear o porto venezuelano de La Vela de Coro, no oeste do país.

Na sequência, os venezuelanos interceptaram um navio mercante britânico. A situação escalou. Os europeus bombardearam Puerto Cabello, o principal porto da Venezuela. Cipriano Castro, por sua vez, mandou prender 200 alemães e britânicos que viviam no país. Nessa altura, Alemanha e o Império Britânico já cogitavam desembarcar em território venezuelano.

Hesitação inicial dos EUA

Acuado, Cipriano Castro vislumbrou uma saída: apelar para os Estados Unidos. O presidente venezuelano entrou em contato com Washington e pediu para que os EUA arbitrasse o conflito. O líder de Caracas acreditava que, pela Doutrina Monroe, os EUA deveriam intervir automaticamente em seu favor, já que a crise envolvia dois impérios europeus se metendo na zona de influência americana.

A partir dessa doutrina, estabelecida na primeira metade do século 19 e que ganhou o nome do ex-presidente James Monroe, Washington procurava manter o domínio político e econômico nas Américas, impedindo tentativas de recolonização por parte da Europa.

Mas, a princípio, não era assim que o então presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, enxergava a situação. Ele inicialmente acreditava que Cipriano Castro devia cumprir com as obrigações com os credores europeus.

"Se qualquer país sul-americano se comportar mal com qualquer país europeu, deixe o europeu dar uma surra nele", ele já havia dito, quando ainda era vice-presidente.

Até então, segundo a interpretação conservadora de Roosevelt sobre a Doutrina Monroe, uma intervenção americana só poderia ser iniciada no caso de uma invasão terrestre por europeus. Ou seja, o bloqueio naval inicialmente não sofreu objeções de Washington.

Mas Roosevelt logo mudaria de ideia. O temor maior era em relação aos alemães. O império do kaiser Guilherme 2º estava em expansão e, logo, buscava novos mercados pelo mundo.

Em 1898, a marinha germânica havia anexado a baía de Kiauchau, na China, depois de ocupar a região. O presidente americano, que em pouco tempo se envolveria na construção do Canal do Panamá, passou a temer que os alemães poderiam repetir o feito em Kiauchau na Venezuela, rivalizando assim com os EUA na região. Os norte-americanos também vinham se expandindo no Caribe, tendo conquistado Porto Rico dos espanhóis apenas três anos antes e transformado na prática Cuba em um protetorado.

Roosevelt entra na crise e fim do bloqueio

O presidente dos Estados Unidos já havia sido alertado pelo Bureau of Navigation dos EUA, uma agência responsável por fiscalizar o comércio marítimo, sobre um eventual risco de os alemães forçarem a Venezuela a entregar uma fatia de território como pagamento da dívida.

Roosevelt era um germanófilo, admirava a língua e a história alemã, mas desconfiava do kaiser, como ele mesmo afirmara numa carta, um ano antes.

Numa mudança de posição, Roosevelt mandou avisar a Berlim que não toleraria a presença do Império Alemão na América Latina.

Primeiro, ele nomeou o único almirante quatro estrelas da Marinha dos EUA, George Dewey, como comandante para exercícios militares no Atlântico, algo pouco usual. Àquela altura, alemães e ingleses já contavam com 29 embarcações militares no Mar do Caribe. Roosevelt, então, mandou uma frota ainda maior, com 53 embarcações, que zarparam ao sul de Porto Rico.

Depois, o chefe da Casa Branca escreveu ao parlamentar britânico Arthur Lee que Dewey se preparava para a "guerra". Por fim, chamou o embaixador alemão, Theodor von Holleben, e disse para ele deveria avisar ao governo do kaiser que o Império Alemão tinha dez dias para aceitar uma arbitragem dos EUA na disputa com os venezuelanos. Do contrário, enfrentaria os EUA.

As conversas de Roosevelt com Von Holleben foram feitas a portas abertas a chegaram aos ouvidos do secretário do presidente, William Loeb. Roosevelt também relatou as negociações em cartas divulgadas mais tarde e disponíveis no Theodore Roosevelt Center.

Holleben, a princípio, achou que era um blefe e inicialmente não transmitiu a informação. Semanas depois, Roosevelt chamou-o novamente em seu gabinete e foi claro: era um ultimato, que ele agora antecipava em 24 horas, para 17 de dezembro. O governo alemão finalmente capitulou, e foi acompanhado pela Coroa Britânica e pela Itália. Os europeus acabaram aceitando, enfim, a arbitragem americana do conflito com a Venezuela.

O bloqueio ainda perdurou oficialmente até fevereiro de 1903, mas já sem incidentes militares. No dia 13 daquele mês, a Itália e os impérios Britânico e da Alemanha selaram um acordo com a Venezuela, concordando com uma redução drástica dos débitos de Caracas e num plano de pagamento que seria coberto com uma porcentagem de arrecadação de taxas aduaneiras. O bloqueio acabou oficialmente em 19 de fevereiro de 1903.

O governo de Cipriano Castro, no entanto, ainda seguiria mantendo relações tensas com as nações europeias. Em 1908, ele foi derrubado do poder em um golpe arquitetado pelo vice, Juan Vicente Gómez, que reverteu medidas de Castro, reabriu o país ao investimento estrangeiro e seguiu no poder liderando uma ditadura que durou até sua morte, 1935.

Expansão da Doutrina Monroe

A crise na Venezuela, por fim, levaria o presidente dos EUA a divulgar, em dezembro de 1904, uma expansão da Doutrina Monroe, que desta vez passaria a incluir a possibilidade de intervenção em assuntos internos de nações do continente americano.

Enquanto a interpretação original da doutrina previa que os EUA tomariam ação para afastar os europeus do território das Américas, essa expansão, batizada de Corolário Roosevelt, afirmava que, a partir daquele momento, os Estados Unidos podiam intervir militarmente, como "polícia internacional", "ainda que relutantemente", em casos "flagrantes de transgressões" nas nações latino-americanas. O objetivo declarado era intervir em crises e assim evitar que a situação de países da região se deteriorasse a ponto de abrir a porta para ações de potências da Europa.

No entanto, a longo prazo, o corolário acabou tendo pouco peso nas relações entre as Américas e a Europa, mas serviu como justificativa para intervenções dos EUA em Cuba, Nicarágua, Haiti e República Dominicana nas décadas de 1910 e 1930.

Mais recentemente, a nova Estratégia de Segurança Nacional anunciada por Trump em dezembro de 2025, está sendo vista como uma nova expansão tanto da Doutrina Monroe quanto do Corolário Roosevelt. Apelidada de "Doutrina Donroe" - um neologismo que combina Donald e Monroe - a estratégia estabelece que os EUA negarão a competidores externos "a capacidade posicionar forças ou outros meios de ameaça" ou "possuir ou controlar ativos estrategicamente vitais no nosso hemisfério", referindo-se especialmente à China.

Mas a face visível da visão de Trump para a América Latina tem sido a pressão sobre a Venezuela de Maduro, que foi reforçada nesta semana com um bloqueio contra petroleiros que entram e saem do país, numa cena reminiscente de 1902.

Deutsche Welle A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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