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Rússia x Ucrânia: o xadrez político por trás da escalada de tensão entre os países

Motivações políticas internas dos dois países podem ter tido um papel nos momentos tensos do último domingo. Reação da União Europeia e dos EUA ainda é incógnita.

28 nov 2018 - 06h18
(atualizado às 11h52)
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Putin enfrenta um momento de relativa dificuldade no governo russo
Putin enfrenta um momento de relativa dificuldade no governo russo
Foto: Alexei Nikolsky/Kremlin via REUTERS / BBC News Brasil

O incidente envolvendo os navios ucranianos no Estreito de Kerch, hoje controlado pela Rússia, é mais um perigoso capítulo da crise entre os dois países que há quase cinco anos ameaça a estabilidade no leste europeu.

No domingo, três navios da marinha da Ucrânia entraram em águas territoriais russas e realizaram manobras durante algumas horas, sendo então atacados pela frota russa. Três militares ucranianos ficaram feridos, e os navios foram retidos pelos russos.

A história de desentendimentos entre Rússia e Ucrânia no Mar de Azov, onde fica o estreito, vem de muito antes da revolução que derrubou o então presidente ucraniano Viktor Yanukovich e abriu uma crise sem precedentes entre os dois países, em 2014.

Já em 2003 o foco do desentendimento era uma ilha, Tuzla, que fica no estreito de Kerch. A questão foi resolvida com um acordo que, dentre outros pontos, estabelecia que embarcações russas e ucranianas possuíam liberdade de navegação na área. O texto ainda está em vigor - e suas regras seguiram sendo observadas mesmo depois da anexação da Crimeia pela Rússia.

Os navios ucranianos apreendidos continuam sob controle russo
Os navios ucranianos apreendidos continuam sob controle russo
Foto: Reuters / BBC News Brasil

A situação começou a mudar depois da construção da ponte no estreito de Kerch, criando uma ligação terrestre entre a Crimeia e a Rússia continental. O governo da Ucrânia considera a obra ilegal e recebeu o apoio de grande parte da comunidade internacional.

Além da questão diplomática, uma questão prática deixou os ucranianos preocupados.

Mapa
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Foto: BBC News Brasil

Com um vão central de 35 metros de altura, a nova ponte limitava a passagem de parte das embarcações com destino ao porto de Mariupol, de onde é escoada boa parte da produção metalúrgica ucraniana. Além disso, os russos passaram a exigir que todos os navios que passassem pela área pedissem autorização prévia e se submetessem a uma inspeção.

Segundo relatos de autoridades ucranianas, algumas destas varreduras chegavam reter os navios por dias. Os russos se defendem dizendo que é apenas uma medida de segurança, para evitar ataques contra a ponte.

No incidente do domingo, os dois lados insistem ter razão. Os ucranianos dizem que cumpriram as exigências das autoridades russas, avisando com antecedência sobre a passagem dos navios por Kerch. A Rússia diz que nunca recebeu qualquer aviso e que a área estava temporariamente fechada para navegação.

Mapa
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Foto: BBC News Brasil

A resposta ucraniana foi imediata e surpreendeu pela força. O presidente Petro Poroshenko decretou a lei marcial no país, uma medida que não foi adotada nem durante os piores dias do conflito em Donetsk ou depois da anexação da Crimeia. O governo diz que a situação é crítica - e que age para defender os interesses do povo ucraniano.

Em vigor a partir desta terça-feira, a lei marcial permite que o governo convoque civis para o serviço militar, que institua toque de recolher, restrinja a livre movimentação de pessoas e conduza inspeções e checagem de documentos. Ou seja, em caso eventual de agressão russa, a Ucrânia, em tese, conseguiria se mobilizar mais rapidamente para reagir.

À priori, a lei vale pelos próximos 30 dias em 10 regiões específicas do país, a maioria na fronteira com a Rússia.

Um carro foi queimado durante protestos em frente à embaixada russa na capital ucraniana, Kiev, no domingo
Um carro foi queimado durante protestos em frente à embaixada russa na capital ucraniana, Kiev, no domingo
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Cálculo eleitoral

Mas a situação sugere que um cálculo eleitoral também estaria envolvido. Fatos ligados à soberania e segurança nacional sempre produzem resultados nas urnas, segundo especialistas.

Em março do ano que vem Poroshenko disputa a reeleição e, até o momento, está apenas em terceiro lugar nas pesquisas, lideradas pela ex-premiê Yulia Timoshenko. Poroshenko foi eleito em 2014 prometendo pacificar o país depois da "EuroMaidan", uma onda de protestos de rua pró-União Européia e contra o governo.

Poroshenko prometeu reduzir a influência russa no país, modernizar o governo e atacar a corrupção. Das promessas, pouco saiu do papel. A economia ainda se recupera a passos lentos depois de muitos anos de recessão, o leste vive uma guerra sem qualquer perspectiva de terminar e a corrupção na sociedade segue mais viva do que nunca. Não é de se espantar que esteja tão mal nas pesquisas.

O presidente ucraniano tenta, assim, jogar a crise a seu favor.

Para o cientista político Ian Bremmer, presidente da consultoria Eurasia Group, chama a atenção o fato de Poroshenko não ter usado a lei marcial em nenhum momento de sua Presidência. Mas, agora, a alguns meses da eleição, a conversa parece ser outra.

As embarcações ucranianas que foram capturadas após entrar em águas russas
As embarcações ucranianas que foram capturadas após entrar em águas russas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Em artigo recente publicado pela agência de notícias Bloomberg, o jornalista russo Leonid Bershidsky reforça essa ideia, lembrando que o lema da campanha à reeleição é "Exercito, Língua, Fé", um tom nacionalista, que potencialmente tem muito a ganhar com a crise.

Alguns acreditam que a situação possa caminhar para um conflito armado, ainda mais com o fato de o presidente Poroshenko ter deixado a possibilidade em aberto no decreto publicado nesta segunda-feira.

Leonid Bershidsky afirma que nenhum dos dois lados está interessado em abrir uma nova frente de batalha. Já o cientista político e professor de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Maurício Santoro acredita que o momento pode, sim, levar a mais violência, ainda mais com uma liderança em busca de legitimidade dentro do país.

"Sempre existe a possibilidade do conflito se tornar mais violento diante das sucessivas crises dos governos russo e ucraniano, e a possibilidade de que eles tentem usar essa cartada do conflito internacional para ganhar popularidade internamente. Esse é o principal risco que a gente tem visto no confronto entre os dois países."

Bershidsky também considera que o presidente russo, Vladimir Putin, deve tentar usar o caso a seu favor. Ele não enfrenta os melhores dias de seu governo, com índices de popularidade em queda por causa do plano da reforma da previdência, que vai elevar a idade mínima para a aposentadoria. Os russos também contam com uma certa resistência da comunidade internacional em condenar o país.

Ao defender a lei marcial, Poroshenko disse que as autoridades precisam ter firmeza no comando do país em caso de invasão russa
Ao defender a lei marcial, Poroshenko disse que as autoridades precisam ter firmeza no comando do país em caso de invasão russa
Foto: EPA / BBC News Brasil

Como os EUA e a Europa reagirão?

Até agora não foram feitas declarações fortes ou promessas de novas medidas, como sanções econômicas.

Em reunião de emergência no Conselho de Segurança da ONU a embaixadora dos EUA, Nikki Haley, disse que a ação russa foi "ultrajante". O presidente Donald Trump afirmou apenas que a Casa Branca "não está feliz com a situação".

Mas para Mauricio Santoro, a reação americana deve mesmo ficar apenas nas palavras.

"Trump, desde a campanha presidencial (de 2016), tem sido critico das abordagens mais duras com relação à Rússia e basicamente apresentando a ideia de que as ações russas na europa oriental, inclusive na Ucrânia, não seriam uma razão de ameaça à segurança americana. Isso vem com o esforço de Trump para que os europeus paguem mais a conta da Otan, entrem com um apoio maior na questão da segurança internacional", diz o professor.

"Por isso, não podemos imaginar por parte do Trump uma resposta mais incisiva sobre a crise russa. Essa resposta, se vier, virá da União Europeia, principalmente da Alemanha, que vai tentar uma mediação, um diálogo maior com o governo Putin", diz ele.

Até agora a Casa Branca não informou se Trump vai tratar da recente crise no Mar de Azov na reunião bilateral que terá com Vladimir Putin na reunião de líderes do G-20, esta semana, na Argentina. A informação, até agora, é a de que o encontro está mantido.

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