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'Justiceiros online' afetam vidas e mudam comportamentos na China

Milhares se unem coletando informações a fim de fazer 'justiça': políticos já perderam cargo e mulher pensou em suicídio

6 fev 2014 - 15h11
(atualizado às 15h33)
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 Yin, com cartaz em que protesta sua inocência
Yin, com cartaz em que protesta sua inocência
Foto: arquivo pessoal/Yin Feng

A vida do taxista chinês Yin Feng mudou em 21 de março de 2013.

Logo após as 14h, Yin começou a receber centenas de ligações no seu celular, de pessoas que gritavam obscenidades e o acusavam de se comportar como um animal.

Demorou um pouco até que Yin, perplexo, entendesse o que estava acontecendo.

"Um cidadão sensato me contou uma história que ele tinha ouvido no rádio, ou na internet, a meu respeito", lembra o taxista.

Naquele dia, pela manhã, um motorista em Urumqi (noroeste chinês) havia baixado o vidro do carro para cuspir em um sem-teto idoso que estava deitado na calçada. Testemunhas gravaram os primeiros números da placa do carro e a informação foi rapidamente transmitida por uma estação de rádio local.

Milhares de internautas se juntaram para procurar o responsável.

"Motorista com a placa A36D62, você envergonha a humanidade", escreveu um deles. "Por favor, compartilhem esta mensagem e vamos ver a cara feia que ele tem. Vamos acabar com ele. Morra! Que desgraça. Não sabemos nem de onde ele é. Saia fora de Urumqi!", dizia o internauta.

Horas mais tarde, a massa anônima chegou a Yin - cuja placa tinha alguns dígitos em comum - e o número do seu celular foi divulgado na internet.

Os justiceiros cibernéticos estavam errados, diz Yin. Ele diz que tentou se defender, explicar a quem estivesse disposto a ouvir que ele não tinha cuspido em ninguém.

Mas assim que ele terminava de falar com uma pessoa, o telefone tocava novamente. E de novo. E de novo. Milhares de vezes.

"Todos os meus dados pessoais foram publicados na rede. O número da minha identidade, meu nome, telefone, endereço, até o telefone da minha sogra foi divulgado", conta Yin. "Cheguei a receber ameaças, fui chantageado, disseram que iam queimar minha casa se eu não pagasse" (o equivalente a US$ 33 mil).

'Ilegal e imoral'

Yin foi alvo de um fenômeno cada vez mais comum na China: o assédio cibernético em escala gigantesca, que chega a envolver centenas de milhares de internautas anônimos que se agrupam em gangues contra um indivíduo - por exemplo, um suspeito de adultério ou alguém que teria abusado de animais.

Os primeiros casos desse tipo a chamar a atenção no país aconteceram em 2006, quando a internet se tornou a principal fonte de entretenimento para muitos chineses.

Houve o caso da enfermeira que participou de um vídeo anônimo onde ela era vista esmagando a cabeça de um gatinho com o salto do seu estileto. Ela foi identificada, suspensa do trabalho, alvo de ameaças de morte e chegou a pensar em suicídio, segundo a TV estatal chinesa.

Centenas de histórias semelhantes se seguiram.

Há indícios, no entanto, de que os altos escalões do governo chinês tenham começado a notar o problema. Liu Zhengrong, funcionário do Partido Comunista responsável por vigilância cibernética, declarou que esse tipo de assédio é "ilegal e imoral".

A advertência de Liu foi repetida pela mídia estatal - segundo advogados, um sinal de que a atividade não será tolerada por tribunais do país. Há a expectativa de que legislação específica seja criada para tentar lidar com o problema.

Até o momento, no entanto, simplesmente qualquer pessoa pode acabar se vendo vítima dos "justiceiros cibernéticos". Inclusive as próprias autoridades.

O caso mais famoso de assédio contra um político foi a foto de um homem flagrado com um sorriso nos lábios no local onde acabara de acontecer um acidente fatal.

"Quem seria esse homem?", alguns se perguntaram.

Logo, os "justiceiros" descobriram que a pessoa na foto era Yang Dacai, o secretário de Saúde e Segurança da província de Shaanxi, centro da China.

Alguns também notaram que em cada fotografia oficial Yang usava um relógio diferente - relógios de marcas caras, muito mais caras do que o salário oficial de um funcionário na posição dele. Dias após seu rosto sorridente ter sido capturado naquela foto, Yang perdeu seu emprego.

Desde então, procurar relógios tornou-se um passatempo entre internautas chineses, e casos como o de Yang foram denunciados em todo o país. Algumas autoridades chamam a atenção do público quando marcas em seus pulsos revelam que a pessoa tirou o relógio antes de posar para a foto.

Na Mira do Povo

Ainda em pequena escala, os justiceiros cibernéticos estão obrigando membros do Partido Comunista a mudar seu comportamento, sugerem alguns.

Entre os defensores dessa teoria está Wu Zuolai, membro da Academia Chinesa das Artes, em Pequim. Ele diz que ao usar a internet para policiar o partido, cidadãos podem treinar seus próprios governantes para que obedeçam à Constituição.

"Eles são criticados todos os dias e isso vai virar rotina", diz Wu. "No passado, os líderes se trancavam em Zhongnanhai (a sede do governo chinês, em Pequim), pensando em formas de manter a população dentro de caixas fechadas, sem falar nem se movimentar em liberdade. Acredito que a era (do presidente Xi) Jinping vai ser mais aberta."

O tempo dirá se Wu tem ou não razão. Até porque, mesmo que leis sejam decretadas, a internet tem se mostrado um território difícil de controlar - até na China, onde censores com frequência apagam blogs e comentários tidos como "inaceitáveis" pelo governo.

E se a internet representa um desafio, Pequim ainda se verá às voltas com outro bicho indomável: o apetite do povo chinês por bisbilhotar - ou fiscalizar - a vida dos outros.

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