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'Colhíamos grama para minha mãe fritar com gordura', diz sobrevivente do Holocausto radicado no Brasil

Romeno Joshua Strul relembra à BBC Brasil vida em gueto com família durante 2ª Guerra Mundial.

27 jan 2018 - 13h32
(atualizado às 13h46)
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O romeno Joshua Strul tinha oito anos quando sua infância foi abreviada.

Em outubro de 1941, tropas aliadas aos nazistas chegaram à cidade de Moinești, na Romênia, onde ele, seus pais e seis irmãos ─ todos judeus ─ viviam.

Romeno radicado no Brasil, Joshua Strul relembra à BBC Brasil vida em gueto com família durante 2ª Guerra Mundial | Foto: Gui Christ
Romeno radicado no Brasil, Joshua Strul relembra à BBC Brasil vida em gueto com família durante 2ª Guerra Mundial | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

Em poucas horas, a família foi despojada de todos os seus bens.

"Até então, tinha uma infância feliz e tranquila. Estudávamos, íamos à sinagoga e brincávamos como todas as crianças. O convívio com os católicos era pacífico", recorda ele, atualmente com 85 anos, em entrevista por telefone à BBC Brasil.

"Meu pai tinha uma loja de cereais. Perdemos tudo. Nos tiraram o comércio e a nossa casa", diz Strul | Foto: Gui Christ
"Meu pai tinha uma loja de cereais. Perdemos tudo. Nos tiraram o comércio e a nossa casa", diz Strul | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

"Mas o nazismo ganhava força na Europa e, quando as tropas chegaram à cidade, não tardou para perdemos tudo", acrescenta.

Radicado em São Paulo desde a década de 1950, Strul é sobrevivente do Holocausto, como ficou conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus, bem como homossexuais, ciganos, Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante a 2ª Guerra Mundial, a partir de um programa de extermínio sistemático patrocinado pelo partido nazista.

Foi o maior genocídio do século 20 - uma ferida aberta que o tempo ainda não curou. Isso talvez explique a riqueza de detalhes com que Strul ainda relata sua experiência, pontuada por um sotaque ainda carregado, apesar da idade avançada.

Joshua conheceu Manuela em um baile de Carnaval no Rio, em 1969 | Foto: Gui Christ
Joshua conheceu Manuela em um baile de Carnaval no Rio, em 1969 | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

"Meu pai tinha uma loja de cereais. Perdemos tudo. Nos tiraram o comércio e a nossa casa. Minha família, assim como todos os judeus da cidade, foi levada a uma cidade próxima, Bacău, onde nos confinaram em um gueto", diz.

Joshua, seu pai, sua mãe e seis irmãos viviam em Moinești, na Romênia | Foto: Gui Christ
Joshua, seu pai, sua mãe e seis irmãos viviam em Moinești, na Romênia | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

Fome

Ali todos os judeus viviam em barracas de madeira - cobertas com folhas de zinco. Privados de sua liberdade, eram obrigados a ostentar uma estrela amarela nas roupas como identificação.

"No verão, era insuportavelmente quente. No inverno, um frio glacial", conta.

A fome também era uma constante.

Após ditadura comunista na Romênia, família emigrou para Israel | Foto: Gui Christ
Após ditadura comunista na Romênia, família emigrou para Israel | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

"A migalha de pão significava a vida ou a morte. Colhíamos grama para minha mãe fritar com gordura de ganso. Foi assim que sobrevivemos", diz.

"Meu irmão caçula, no entanto, não conseguiu enfrentar as condições adversas e morreu aos dois anos."

"A migalha de pão significava a vida ou a morte", diz Strul | Foto: Gui Christ
"A migalha de pão significava a vida ou a morte", diz Strul | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

'Providência divina'

Por uma "providência divina", como recorda Strul, a família não foi deportada para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, um dos principais locais de extermínio de judeus durante a guerra.

Em 1944, a Romênia foi libertada por tropas soviéticas, mas o pesadelo ainda não tinha terminado.

"Quando tentávamos recomeçar do zero, mais uma vez nos tiraram tudo", diz Strul, após fim da 2ª Guerra Mundial | Foto: Gui Christ
"Quando tentávamos recomeçar do zero, mais uma vez nos tiraram tudo", diz Strul, após fim da 2ª Guerra Mundial | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

"Voltamos à nossa cidade-natal e nossa casa estava completamente depenada. Tudo nos foi roubado", lamenta.

Com muito esforço, a família reconstruiu pouco a pouco a vida que tinha antes da guerra.

Mas em 1947 os comunistas chegaram ao poder na Romênia. Propriedades particulares foram nacionalizadas e, de patrão, o pai de Strul se tornou empregado.

"Quando tentávamos recomeçar do zero, mais uma vez nos tiraram tudo."

Em 1950, a família decidiu fazer as malas para um Estado recém-fundado, Israel, já que um dos irmãos de Strul havia emigrado para o país quatro anos antes e lutado na guerra de independência.

Strul morou em Israel entre 1950 e 1955 | Foto: Gui Christ
Strul morou em Israel entre 1950 e 1955 | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

Mudança para o Brasil

Mas o futuro parecia mais promissor fora do Oriente Médio.

Por meio de um conhecido da família, que já havia se estabelecido no Brasil, os Strul embarcaram em um navio rumo a uma terra então totalmente desconhecida.

"Foi uma viagem longa, na 3ª classe do navio, porque a 4ª não existia", brinca Strul. "Chegamos com uma mão na frente e outras atrás, não falávamos a língua e conhecíamos muito poucas pessoas."

O recomeço foi difícil. Sem educação formal, Strul começou a trabalhar como ambulante, vendendo roupas porta em porta.

Strul trabalhou como ambulante quando chegou ao Brasil | Foto: Gui Christ
Strul trabalhou como ambulante quando chegou ao Brasil | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

Anos depois, já estabelecido, abriu sua loja de móveis na Zona Norte de São Paulo, de onde tirou o sustento para criar seus quatro filhos ("todos com formação acadêmica", destaca). Strul também tem dez netos.

Hoje aposentado, vive com a esposa Manuela, de 74 anos (o casal se conheceu em um baile de Carnaval no Rio de Janeiro em 1969), vai à sinagoga pela manhã e dedica-se a manter viva a lembrança do Holocausto por meio de palestras em escolas e eventos.

Família se mudou para Israel após ditadura comunista na Romênia | Foto: Gui Christ
Família se mudou para Israel após ditadura comunista na Romênia | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

"Quero muito agradecer ao povo brasileiro por nos ter acolhido. Devo tudo a esse país. Amo este lugar."

Strul também diz ter tentado, por diversas maneiras, reaver a propriedade da família na Romênia, ainda sem sucesso.

"Há 20 anos, tento receber uma indenização, mas não consigo. Tenho até hoje a escritura da minha casa, mas minha casa continua confiscada".

Atualmente aposentado, Strul dedica-se a manter viva lembrança do Holocausto por meio de palestras em escolas e eventos | Foto: Gui Christ
Atualmente aposentado, Strul dedica-se a manter viva lembrança do Holocausto por meio de palestras em escolas e eventos | Foto: Gui Christ
Foto: BBC News Brasil

Memória

Todos os anos, no dia 27 de janeiro, a comunidade judaica celebra o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.

A data marca a libertação do maior campo de extermínio nazista, Auschwitz-Birkenau, por tropas soviéticas. No local, estima-se que mais de 1 milhão de pessoas, a maioria judeus, foram mortas.

No Brasil, a data será lembrada em evento promovido pela Confederação Israelita do Brasil (Conib), pela Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp) e pela Congregação Israelita Paulista (CIP), no domingo, 28 de janeiro, na Sinagoga Etz Chaim em São Paulo.

No hall, acontecerá a exposição " Além do Dever - Diplomatas reconhecidos como Justos entre as Nações", produzida pelo Yad Vashem (Museu do Holocausto de Israel).

O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto é celebrado desde 2005, após uma resolução da ONU.

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