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A polêmica lei do Texas que vai permitir processar quem ajudar grávida a abortar

Gestantes não serão processadas, mas todos os outros envolvidos, como funcionários das clínicas, quem der carona para a grávida até o local do procedimento, contribuir com dinheiro para ajudar a cobrir os custos e ou de alguma maneira aconselhar ou ajudar a mulher a obter o aborto, estarão sujeitos a ação judicial.

14 jul 2021 - 10h46
(atualizado às 10h53)
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Foto de arquivo de mulher do Texas esperando para ser submetida a um procedimento de aborto numa clínica
Foto de arquivo de mulher do Texas esperando para ser submetida a um procedimento de aborto numa clínica
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Nos últimos anos, vários Estados americanos passaram a aprovar leis que proíbem abortos a partir do momento em que é possível detectar batimentos cardíacos no feto, o que ocorre em torno de seis semanas de gestação.

Até hoje, nenhuma dessas leis entrou em vigor. Todas foram derrubadas na Justiça por serem consideradas inconstitucionais, já que nos Estados Unidos o direito ao aborto é garantido até o ponto de viabilidade fetal (a partir do qual o feto pode sobreviver fora do útero), que geralmente ocorre em torno de 24 semanas de gestação.

Mas, em maio deste ano, o Texas aprovou uma lei semelhante que traz o que especialistas em Direito consideram uma inovação: a possibilidade de que qualquer pessoa no país, mesmo que não seja moradora do Estado e que nem mesmo conheça a grávida, possa processar na Justiça clínicas, médicos e qualquer pessoa que facilite a realização de um aborto após a detecção de batimentos cardíacos no feto.

As gestantes não serão processadas. Mas todos os outros envolvidos, como funcionários das clínicas, quem der carona para a grávida até o local do procedimento, contribuir com dinheiro para ajudar a cobrir os custos e ou de alguma maneira aconselhar ou ajudar a mulher a obter o aborto, estarão sujeitos a ação judicial.

A proibição, que deve entrar em vigor em 1º de setembro, inclui até mesmo abortos em caso de estupro ou incesto. A única exceção é para emergências médicas.

A legislação também prevê o pagamento de recompensa de pelo menos US$ 10 mil (cerca de R$ 51 mil), além dos custos do processo, para qualquer membro do público que tiver sucesso em sua ação judicial contra clínicas ou outras partes envolvidas em um aborto feito após o prazo máximo estabelecido na lei.

Assim, segundo opositores, a lei oferece um incentivo para que qualquer um que se oponha ao aborto, desde familiares da gestante até ativistas anti-aborto e completos desconhecidos, possa entrar com um processo judicial para impedir a realização do procedimento.

Em carta aberta quando a proposta ainda estava em debate, mais de 370 advogados texanos criticaram o projeto por permitir que qualquer um entre com um processo mesmo sem ter sofrido danos legais pessoalmente. Os signatários da carta descreveram a lei como "um abuso sem precedentes do litígio civil para avançar uma agenda política".

Nesta terça-feira (13/07) uma coalizão de clínicas, médicos, funcionários, pacientes e organizações que apoiam o direito ao aborto anunciou uma ação na Justiça para tentar impedir que a lei do Texas entre em vigor, alegando que é inconstitucional.

Desafio inédito na Justiça

Mas, enquanto outras das chamadas "leis de batimentos cardíacos" ao redor do país foram derrubadas na Justiça e impedidas de entrar em vigor, especialistas em Direito acreditam que a legislação do Texas, denominada SB 8, oferece um desafio inédito para os defensores do direito ao aborto que pretendem contestar as proibições na Justiça.

"A SB 8 é especificamente projetada para ser difícil de bloquear antes que entre em vigor", diz em nota a organização de direitos civis União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), uma das representantes dos autores do processo contra a lei.

Nas proibições semelhantes em outros Estados, cabia a funcionários do governo fazer cumprir a lei. Com isso, defensores do direito ao aborto podiam entrar na Justiça diretamente contra esses membros do governo e, assim, impedir que a lei entrasse em vigor.

Mas, no caso do Texas, não há uma autoridade do governo responsável pelo cumprimento da lei. Assim, os opositores não têm a quem processar antes que a lei entre em vigor.

Desde a decisão da Suprema Corte no caso Roe versus Wade, em 1973, o aborto é considerado um direito fundamental nos EUA
Desde a decisão da Suprema Corte no caso Roe versus Wade, em 1973, o aborto é considerado um direito fundamental nos EUA
Foto: Reuters / BBC News Brasil

"O Texas, ao contrário (dos outros Estados), criou um esquema de cumprimento da lei que envolve ações judiciais privadas, movidas pela população geral, em uma tentativa de evadir qualquer responsabilidade legal e impedir que os tribunais federais possam bloquear essa proibição inconstitucional antes de sua entrada em vigor", diz a ACLU.

A ACLU diz que sua ação tem como réus todos os juízes do Texas, os conselhos de Medicina, de Enfermagem e de Farmácia, o procurador-geral do Estado e o diretor da organização Right to Life East Texas (Direito à Vida Leste do Texas), "que já pediu abertamente que pessoas processem clínicas de aborto com base na lei".

O objetivo é tentar impedir que esses juízes façam cumprir a lei e também impedir que oficiais de justiça aceitem os processos dos membros do público. Mas é difícil saber se o esforço será bem-sucedido, diante dos obstáculos impostos pela legislação.

Em resposta ao anúncio da ação desta terça, a organização Texas Right to Life, que se opõe ao aborto e apoiou a elaboração e aprovação da lei, disse em nota que "é uma estratégia legalmente questionável, já que a lei não depende do procurador-geral, ou promotores, ou conselho médico, ou qualquer agência do governo do Texas para ser cumprida".

Um dos diretores da Texas Right to Life descreveu a ação como "uma medida desesperada de uma indústria (do aborto) que admitiu que não sabe como lutar contra uma lei pró-vida inovadora e única".

Uma das mais extremas do país

A nova lei do Texas é considerada por defensores do aborto uma das mais extremas do país e foi tratada como prioridade pelos legisladores republicanos do Estado, que votaram em massa por sua aprovação.

Na cerimônia de assinatura, em maio, o governador do Estado, o republicano Greg Abbott, disse que a lei "garante que a vida de cada criança não nascida que tenha batimentos cardíacos seja salva da devastação do aborto".

"Nosso criador nos concedeu o direito à vida, porém milhões de crianças perdem seu direito à vida todos os anos por causa do aborto", disse Abbott ao sancionar a lei.

Ativista anti-aborto reza em frente a clínica no Texas
Ativista anti-aborto reza em frente a clínica no Texas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O Estado já impõe várias limitações ao aborto, entre elas restrições à maioria dos procedimentos após 20 semanas e a exigência de receber aconselhamento prévio e, então, esperar pelo menos 24 horas até o procedimento.

Opositores temem que a nova lei possa representar na prática uma proibição total do aborto no Estado. Segundo a ACLU, entre 85% e 90% dos abortos no Texas são feitos em mulheres com pelo menos seis semanas de gestação.

Como o início da gravidez costuma ser considerado o primeiro dia do último período menstrual, seis semanas de gestação significam que a mulher está com apenas duas semanas de atraso em sua menstruação. Isso faz com que muitas ainda nem saibam que estão grávidas.

Críticos da medida dizem que as novas restrições farão com que somente quem tiver condições de viajar para outro Estado tenha acesso ao aborto, com impacto desproporcional sobre mulheres pobres.

Citam ainda o risco de que "ações judiciais intermináveis" consumam o tempo e os recursos dos provedores de aborto, fazendo com que acabem sendo forçados a fechar as portas.

"Se essa lei repressiva entrar em vigor, irá dizimar o acesso ao aborto no Texas, e é exatamente este seu objetivo", diz em nota a presidente e CEO do Center for Reproductive Rights (Centro de Direitos Reprodutivos), Nancy Northup.

Decisão na Suprema Corte

A nova lei do Texas chega em um momento de grande expectativa em relação a uma futura decisão da Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça americana, sobre o direito ao aborto.

Em maio, o tribunal aceitou analisar uma lei do Estado do Mississippi que proíbe o aborto a partir de 15 semanas de gestação. Este será o principal caso sobre o tema decidido pela corte desde a chegada da juíza conservadora, Amy Coney Barrett, nomeada no final do ano passado pelo então presidente Donald Trump.

Com Barrett, o tribunal tem atualmente seis juízes na chamada ala conservadora (nomeados por presidentes republicanos) e apenas três na ala liberal (nomeados por presidentes democratas).

Com isso, tanto defensores quanto opositores do aborto acreditam que a Corte poderá emitir uma decisão favorável à lei no Mississippi, abrindo caminho para restringir o direito ao aborto no resto do país.

Chegada da juíza Amy Coney Barrett, indicada por Donald Trump, mudou equilíbrio entre conservadores e liberais na Suprema Corte
Chegada da juíza Amy Coney Barrett, indicada por Donald Trump, mudou equilíbrio entre conservadores e liberais na Suprema Corte
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Nos Estados Unidos, o aborto é considerado um direito fundamental desde a decisão da Suprema Corte no caso Roe versus Wade, em 1973. Até o ponto de viabilidade fetal, nenhum Estado pode interferir nesse direito.

Mas, passado esse ponto, os Estados podem regular as circunstâncias em que o procedimento é feito, e muitos deles, especialmente os de maioria conservadora e governados por políticos do Partido Republicano, vêm adotando medidas cada vez mais restritivas.

A maioria das restrições não contraria frontalmente a decisão em Roe versus Wade, mas limita o acesso ao aborto. Entre elas estão a proibição do aborto a partir de determinado período de gestação, a exigência de receber aconselhamento prévio, períodos mínimos de espera entre a consulta inicial e o procedimento e várias outras medidas que dificultam o acesso para muitas mulheres, principalmente as mais pobres.

Mas outras leis, como as de "batimentos cardíacos", semelhantes à aprovada no Texas, são claramente inconstitucionais, e acabam sendo contestadas na Justiça e impedidas de entrar em vigor.

Agora, a decisão da Suprema Corte no caso do Mississippi deverá ter impacto sobre as restrições no resto do país e poderá sinalizar o quão longe essas leis estaduais podem ir ao limitar o acesso ao aborto.

Os argumentos começarão a ser ouvidos pelos nove juízes em outubro, e a decisão final deverá ser divulgada em meados de 2022.

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