A doutrina de 200 anos que Trump usa para aplicar pressão militar sobre América Latina
A nova estratégia de segurança dos EUA resgata um princípio do século 19 para orientar ações militares e diplomáticas no hemisfério
Quando a Casa Branca divulgou, na sexta-feira, a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos (National Security Strategy), um detalhe chamou a atenção de diplomatas e especialistas em relações internacionais: o documento cita nominalmente a Doutrina Monroe, formulada há mais de dois séculos, e diz que Washington deve "retomar" seus princípios no relacionamento com a América Latina.
A referência reacende uma das ideias mais antigas — e controversas — da política externa americana.
Criada em 1823, a Doutrina Monroe afirmava que qualquer intervenção de potências europeias no hemisfério ocidental seria vista pelos EUA como uma ameaça direta à sua segurança.
Ao mesmo tempo, estabelecia a região como uma esfera prioritária de interesse estratégico dos Estados Unidos.
Dias antes da divulgação da estratégia, o presidente Donald Trump publicou uma mensagem oficial marcando o aniversário da Doutrina Monroe.
No texto, ele descreveu o princípio criado no século 19 como "fundamental" para a história dos EUA e disse que sua administração está comprometida com a proteção do hemisfério ocidental.
A coincidência entre a mensagem presidencial e a publicação da estratégia nacional reforçou a leitura de que Washington deseja recolocar a América Latina no centro de sua política externa.
Por que a menção à Doutrina Monroe agora?
Segundo o documento divulgado na sexta, o governo Trump considera que ameaças externas na América Latina — especialmente a influência econômica e tecnológica da China e a presença de redes criminosas transnacionais — exigem uma postura mais ativa de Washington.
O texto menciona que os EUA "devem recuperar a clareza estratégica" da Doutrina Monroe para garantir estabilidade regional e impedir que "adversários" fortaleçam presença militar ou econômica em países do hemisfério.
A nova estratégia também descreve a América Latina como um "front central" na disputa geopolítica contemporânea, justificando o reposicionamento de recursos militares, diplomáticos e de inteligência.
O documento afirma que alianças hemisféricas devem ser reforçadas e que Washington "não aceitará interferências hostis" na região.
O que foi a Doutrina Monroe
A Doutrina Monroe surgiu em um contexto de disputa imperial. Em 1823, os Estados Unidos buscavam evitar que potências europeias - especialmente Espanha, França e Grã-Bretanha - retomassem influência sobre territórios recém-independentes na América Latina.
O presidente James Monroe apresentou então uma política baseada em dois pilares: a oposição a qualquer tentativa europeia de recolonização ou intervenção no continente, que seria interpretada como ameaça à segurança dos EUA, e o compromisso de que Washington não se envolveria em conflitos internos da Europa, preservando seu próprio espaço geopolítico.
Com o passar das décadas, no entanto, a doutrina deixou de ser apenas uma declaração de princípios defensivos. Especialmente a partir do fim do século 19, ela passou a ser reinterpretada por diferentes governos dos Estados Unidos como justificativa para intervenções diretas ou indiretas no Caribe e na América Central.
O chamado Corolário Roosevelt, de 1904, ampliou a ideia original ao afirmar que os EUA poderiam intervir em países da região para "estabilizar" governos considerados incapazes de cumprir obrigações internacionais.
Esse histórico faz com que a doutrina seja vista, por muitos países latino-americanos, como um símbolo do intervencionismo americano no hemisfério.
Por que a reaproximação com a doutrina gera preocupação
Duzentos anos após sua formulação, a referência no texto de segurança nacional não significa, necessariamente, a adoção de uma política idêntica à da virada do século 19 para o 20 — mas indica que Washington pretende reforçar a lógica hemisférica como base para decisões estratégicas.
Para governos latino-americanos, especialistas e diplomatas, o desafio agora será interpretar até que ponto essa menção representa uma mudança concreta de postura dos EUA — e o que isso pode significar para o equilíbrio político e militar na região nos próximos anos.
Em reportagem publicada pela Reuters em 5 de dezembro, correspondentes internacionais e analistas consultados pelo veículo afirmam que a citação explícita à Doutrina Monroe — em vez de referências indiretas — marca uma mudança de tom na política externa norte-americana.
Ainda segundo a Reuters, o documento descreve a visão do governo Trump como uma forma de "realismo flexível" e argumenta que os EUA devem "reviver" a doutrina do século 19, que considerava o hemisfério ocidental como uma zona de influência de Washington.
A referência explícita à Doutrina Monroe também provocou reações na Europa. Segundo a mesma reportagem da Reuters, o documento critica aliados europeus por apresentarem "coordenação estratégica insuficiente" e alerta que o continente enfrenta o risco de "civilizational erasure" ('apagamento civilizacional'), expressão usada no texto oficial.
Diplomatas europeus consultados pela agência expressaram preocupação de que essa formulação possa sinalizar um afastamento da cooperação transatlântica em temas de segurança.
Dentro dos Estados Unidos, a Reuters relata que a retomada da doutrina divide acadêmicos e antigos formuladores de política externa.
Alguns entrevistados pela agência consideram a referência histórica sobretudo simbólica, enquanto outros alertam que associar a política atual à Doutrina Monroe pode reforçar percepções negativas sobre o papel dos EUA na América Latina, especialmente à luz de intervenções ocorridas ao longo do século 20.
Por que isso importa agora para a América Latina
A divulgação da nova Estratégia de Segurança Nacional ocorre em um momento em que diversos países latino-americanos enfrentam instabilidade política, pressões econômicas e desafios de segurança que afetam diretamente a relação da região com os Estados Unidos.
O documento divulgado pelo governo Trump menciona explicitamente preocupações com tráfico transnacional de drogas e armas, fluxos migratórios em direção ao território americano, operações de inteligência de potências rivais e vulnerabilidades em infraestruturas críticas — especialmente em redes energéticas e digitais.
Para Washington, enfrentar esses problemas exige maior cooperação militar e de segurança com governos locais, algo que, na interpretação apresentada pela Casa Branca, se encaixa na lógica de "proteção hemisférica" vinculada historicamente à Doutrina Monroe.
A nova estratégia também ganha relevância porque coincide com uma escalada de tensões entre os Estados Unidos e a Venezuela.
Nas últimas semanas, o governo Trump intensificou a pressão sobre o presidente Nicolás Maduro, ampliando o valor da recompensa oferecida por informações que levem à sua captura e reforçando a posição de que a eleição presidencial venezuelana de 2024 foi ilegítima.
A crise política interna venezuelana — marcada pela disputa entre Maduro e a oposição, pelo controle de instituições e por denúncias de fraude eleitoral — segue como um dos principais focos de atrito entre Washington e Caracas.
Paralelamente, os EUA mobilizaram um contingente militar sem precedentes recentes na região. Cerca de 15 mil militares, além de porta-aviões, destróieres e navios de assalto anfíbio, foram enviados ao Caribe para compor uma operação classificada por Washington como destinada a combater o tráfico internacional de drogas.
Desde setembro, forças norte-americanas realizaram mais de 20 ataques contra embarcações em águas internacionais que, segundo o governo dos EUA, transportavam drogas em direção ao país. Mais de 80 pessoas morreram nessas ações.
Autoridades americanas descrevem os alvos como integrantes de organizações criminosas transnacionais envolvidos em "guerra irregular" contra os Estados Unidos — uma caracterização que tem gerado debate jurídico sobre a legalidade das operações.
O tema migratório também atravessa a relação bilateral. O governo Trump vincula o aumento da migração venezuelana à permanência de Maduro no poder e afirma que a crise econômica, a repressão política e o colapso de serviços essenciais no país contribuem para o deslocamento de milhões de pessoas pelo continente.
Quase oito milhões de venezuelanos deixaram o país na última década, muitos deles tentando chegar aos EUA após percorrer rotas terrestres pela América Central.
Enquanto isso, autoridades dos EUA afirmam que grupos criminosos venezuelanos, como o Tren de Aragua e o chamado Cartel de los Soles, estariam envolvidos no tráfico internacional e teriam ligações com altos funcionários do governo Maduro, alegação negada por Caracas.
Especialistas independentes observam que o Cartel de los Soles não funciona como uma organização centralizada, mas como um termo usado para descrever redes de corrupção que facilitam o trânsito de drogas pelo país.
Ao mesmo tempo, a Venezuela não aparece entre os principais produtores de cocaína ou fentanil; no caso deste último, dados oficiais norte-americanos apontam o México como principal origem da substância que entra nos EUA.