Canos e lajotas viram instrumentos em aulas de música na rede pública
A matéria-prima para os instrumentos é a sucata, por isso, cada colégio terá um centro de coleta de material reciclável
Antes das crianças chegarem para a aula, só se ouvem os pássaros na Escola Estadual de Ensino Fundamental Vicente da Fontoura, na zona rural de Porto Alegre (RS). Com trânsito raro de carros, parte dos estudantes chega a cavalo. Na manhã de 7 de junho, não foi só a gritaria natural das turmas que quebrava o silêncio da região. Sons de palmas, pés batendo no chão e panelas se chocando anunciavam uma das oficinas do projeto Reciclar é Show, iniciativa que une reciclagem e música e envolve mais de 50 mil alunos de 101 instituições da rede pública de ensino no Brasil.
A cerca de 20 quilômetros dali, no bairro Cidade Baixa, próximo ao centro da capital, a Escola Estadual de Ensino Fundamental Professora Leopolda Barnewitz também recebe a iniciativa - além de outros oito colégios de Porto Alegre. Lá, o monitor é Guilherme Sanches, músico-educador e professor de geografia. Frente ao olhar vidrado de 40 alunos, ele apresenta às crianças instrumentos inusitados, feitos de materiais desde lajotas e canetas a canos para revestimento de fios elétricos. As lajotas, enfileiradas sobre uma caixa, se transformam em uma "marimba" (“um primo do xilofone”, na definição do educador). Os canos, girados sobre a cabeça como se fossem um laço, imitam "o som do vento".
Para Leonardo Figueira, 9 anos, aluno da 4ª série, esse é o instrumento mais interessante. O pequeno estudante é exemplo da "cabeça aberta e livre de preconceitos" de que fala Sanches ao se referir ao público-alvo do projeto, que são crianças entre 8 e 12 anos - os gostos de Leonardo variam de Michael Jackson a Paula Fernandes. O garoto diz que está ansioso para aprender a criar e tocar novos artefatos sonoros.
Serão dez encontros semanais em cada instituição de ensino, orientados pelos 20 monitores pré-selecionados do projeto. Monitor do projeto na escola Vicente da Fontoura, Thiago Di Luca ensina que "tudo vira instrumento, até o corpo", e diz que a função do educador é ser provocador e despertar o interesse pela música nos alunos.
A matéria-prima para os instrumentos é a sucata, por isso, cada colégio terá um centro de coleta de material reciclável. No caso, um material específico: embalagens aluminizadas, como as de alguns salgadinhos e bolachas recheadas. Uma empresa paulista parceira do projeto fabrica uma resina que, misturada a esse material, vira matéria-prima para novos instrumentos musicais. Depois de prontos, eles serão distribuídos entre as escolas participantes e ONGs que trabalham a questão da musicalidade.
Após as oficinas, os alunos vão gravar um vídeo em que apresentarão uma música tocada com esses instrumentos reciclados e, em outubro, uma escola será declarada vencedora, a partir de critérios como harmonia e criatividade. Os alunos da instituição vencedora terão a chance de participar de um show conduzido pelo maestro João Carlos Martins, em São Paulo.
Projeto exalta a criatividade e o consumo consciente
Fernando Sardo, músico, artista plástico e educador, foi o idealizador dos instrumentos reciclados e responsável pela capacitação dos monitores. Com mais de 30 anos de experiência na área, ele frisa que o importante não é o prêmio, mas sim os valores agregados da iniciativa. Para Sardo, através da música, as crianças aprendem a ter concentração, disciplina, harmonia de grupo e respeito. “A arte chega (aos alunos) de maneira muito diferente que outras linguagens do conhecimento humano. Com uma metodologia de ensino que desperta o interesse da criança, o projeto se torna uma atividade muito enriquecedora”, afirma. A música, acrescenta, tem um caráter transdisciplinar, podendo se relacionar com temas de difícil compreensão da matemática, da física ou de qualquer outra área.
A questão da reciclagem serve para que a criança perceba o que e quanto ela consome. “Como são utilizados materiais próximos à criança, cresce a questão ambiental, do consumo e do reaproveitamento de materiais”, comenta Sardo. Maria Goretti Orth, professora na escola Vicente da Fontoura, revela que, logo após o primeiro encontro do Reciclar é Show, alunos já passaram a demonstrar uma visão mais crítica do consumo, questionando-se se um material é reciclável ou não e como ele poderia ser reutilizado. Para Sardo, o benefício de se utilizar esses instrumentos, além do lado ambiental, é a riqueza de timbres diferentes que eles permitem, possibilitando outras sonoridades.
Para Sardo ao unir o “fazer música” com o “como fazer”, deixando à disposição da criança os mais variados materiais que antes virariam lixo, o projeto valoriza a criatividade: “Vivemos em uma sociedade que boicota a criatividade. Mas ser criativo é natural a todos nós e precisamos resgatar isso”.