Postagem distorce artigos científicos e desinforma sobre vacina contra gripe
MÉDICO PUBLICOU CONCLUSÕES ENGANOSAS SOBRE TRÊS ESTUDOS; ELE FOI PROCURADO, MAS NÃO RESPONDEU
O que estão compartilhando: postagem em que médico afirma que a vacina da gripe "sempre teve baixíssima eficácia". Para embasar a alegação, ele compartilha três estudos diferentes. Em um deles, o autor da postagem analisa que a vacina pode levar a uma resposta imunológica inadequada à reinfecção ou à vacinação. O segundo artigo, de acordo com o médico, afirmaria que o imunizante da gripe estaria ligado a um aumento de 27% no risco de contrair a doença. O último, por fim, defenderia que adultos saudáveis que receberam a vacina contra a gripe tiveram apenas 1% de proteção.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Especialistas consultados pela reportagem ressaltam que a vacina contra a gripe previne formas graves da doença e é importante para proteção da população. O autor da publicação faz leituras distorcidas dos três estudos compartilhados. Um dos artigos divulgados, por exemplo, foi realizado apenas com profissionais de saúde - contexto omitido na publicação. Conforme já explicado pelo Comprova, coalizão da qual o Verifica faz parte, os próprios autores informaram que o estudo não conclui que a vacina aumenta o risco de gripe.
O médico responsável pela postagem foi procurado, mas não enviou um posicionamento.
Estudo sobre fenômeno ADE é artigo de revisão
O primeiro artigo compartilhado é intitulado Measles and antibody-dependent enhancement (ADE): history and mechanisms (em português, Amplificação Dependente de Anticorpos (ADE): história e mecanismos). Para compreender o fenômeno, é importante entender como um anticorpo pode funcionar contra uma infecção viral.
A doutora em Imunologia Denise Morais da Fonseca, professora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), explica que, na maior parte das vezes, "o anticorpo liga-se fortemente ao vírus em porções da partícula viral que serão utilizadas pelo vírus para infectar o indivíduo". Esse fenômeno é conhecido como neutralização, conforme a especialista.
Em outros casos, de acordo com Denise, os anticorpos "podem recobrir a partícula viral de forma que outras células do sistema imunológico, como os macrófagos, passam a enxergá-lo". Essas células são capazes de englobar o vírus e eliminá-lo do corpo. O processo descrito é conhecido como opsonização.
Denise explica que alguns vírus podem apresentar vários sorotipos - formas do vírus geneticamente distintas, mas que estão relacionadas. "Vírus que tem vários sorotipos e infectam preferencialmente certas células do sistema imune, como os macrófagos e monócitos, podem induzir anticorpos defeituosos que não se ligam com muita força (ou seja, não possuem muita afinidade) aos vírus e se ligam aos lugares errados do vírus (têm baixa especificidade)", descreveu.
Esses anticorpos defeituosos não são bons para neutralizar e também não são bons para opsonizar o vírus. Na verdade, segundo Denise, eles facilitam a entrada do vírus, justamente nas células que são alvo daquele agente infeccioso. Neste caso, o anticorpo, que deveria proteger, acaba aumentando a infecção.
O médico Jorge Kalil, professor titular de Imunologia Clínica da Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), explica que o fenômeno ADE ficou bem demonstrado em relação à dengue. No caso da gripe, o pesquisador explica que não há demonstração clara da ADE.
Denise ressalta que a ADE é uma das principais preocupações no desenvolvimento das vacinas. Por isso, ela é exaustivamente testada nos ensaios pré-clínicos e clínicos. Segundo a especialista, nenhuma vacina de gripe presente hoje no mercado induz à ADE, porque todas são testadas para esse efeito.
Em relação ao estudo usado na postagem, a professora explica que trata-se de um artigo de revisão. Isso significa que a autora estudou vários artigos sobre o assunto e propôs uma discussão em relação ao conhecimento vigente.
"Neste artigo de revisão, a autora discute a possibilidade de ADE em casos atípicos de sarampo, mas ela não faz um estudo experimental ou clínico para provar que de fato é isso que ocorre nos casos atípicos de sarampo, que são muito raros", explicou.
Estudo não afirma que vacina contra gripe aumenta risco de contrair a doença
O segundo artigo compartilhado, conforme o autor da publicação, comprovaria que "anticorpos induzidos pela vacina aumentam o risco de doença grave em pessoas sem exposição anterior ao vírus". O médico alega que o estudo sob o título Effectiveness of the Influenza Vaccine During the 2024-2025 Respiratory Viral Season (Eficácia da vacina contra a gripe durante a temporada viral respiratória de 2024-2025) demonstra que a vacina contra a gripe aumentaria em 27% o risco de contrair a doença. Mas isso não é verdade.
Uma afirmação semelhante com base no mesmo estudo já foi desmentida pelo Comprova em abril deste ano. À coalizão de checagem, os autores do estudo explicaram que "os resultados não sugerem que a vacinação aumenta o risco de gripe". Na realidade, segundo eles, o estudo indica que a eficácia da vacina desta temporada na prevenção da gripe pode ter sido limitada em profissionais de saúde relativamente saudáveis.
Vídeo distorce informações de estudo sobre vacina combinada para gripe e covid-19
Estudo com erros apontados em checagem do 'Verifica' é retratado de publicação
O estudo foi realizado em um centro médico e se limitou a profissionais de saúde, em sua maioria jovens e saudáveis. A conclusão foi que, no grupo restrito analisado, a eficácia do imunizante foi de -26,9%, com uma margem de erro entre -55,0% e -6,6%. O artigo avaliou a incidência de gripe, e não a gravidade ou nível de hospitalização pela doença.
Postagem distorce artigo para afirmar que vacina oferece apenas 1% de proteção
O último estudo citado pelo médico foi publicado na Cochrane Library, coleção de bases de dados. Ele é intitulado Vaccines for preventing influenza in healthy adults (Vacinas para prevenir a gripe em adultos saudáveis).
Segundo o estudo, "as vacinas inativadas contra a gripe provavelmente reduzem a gripe em adultos saudáveis ??de 2,3% sem vacinação para 0,9%". Denise explica que, neste caso, pouco mais de 2% das pessoas não vacinadas tiveram gripe, enquanto 0,9% das pessoas vacinadas contraíram a doença. Isso representa uma redução de mais de 50% de casos da doença.
Da mesma forma, Kalil ressalta que o estudo indica que foi registrado, pelo menos, metade do número de casos. "Se diminuir esse número em 50%, é importante porque diminui também a transmissão. Por isso, nós temos um programa que é muito importante de vacina de gripe no Brasil, porque protege", defendeu.
Vacinas contra gripe sempre tiveram 'baixíssima' eficácia?
Não há evidências que isso seja verdade. Denise explica que, na realidade, a eficácia das vacinas contra a gripe pode ser variável. Da mesma forma, Kalil destaca a efetividade do imunizante.
"A eficácia é quando você testa uma vacina num estudo controlado, enquanto a efetividade é quando você vê como é isso funciona na população. Se nós formos olhar a efetividade da vacina da gripe na população, ela é muito variável", destacou o médico.
Essa variabilidade ocorre porque, segundo os especialistas, o vírus da gripe sofre mutações frequentes, o que faz com que existam várias cepas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que a variação pode ocorrer por "incompatibilidade de cepas, variação no desenho do estudo e imunidade de diferentes grupos".
Segundo Denise, os imunizantes contra a gripe precisam ficar prontos antes da "temporada" de circulação do vírus. Por este motivo, a OMS se reúne com cientistas que fazem uma espécie de "predição" das cepas que irão circular, com base em estudos de vigilância epidemiológica no mundo inteiro.
Apesar das variáveis, Kalil destaca que a vacina é importante para proteger, por exemplo, de complicações da doença. Ele explica que o imunizante é essencial para idosos, crianças, gestantes ou pessoas com comorbidades, que são mais suscetíveis a problemas maiores relacionados à doença, como uma pneumonia bacteriana.
Médico vende curso antivacina
O médico responsável pelo conteúdo oferece, no final da postagem, um curso sobre "as verdades ocultas sobre a vacinação infantil". O preço oferecido é de R$ 47 na promoção, originalmente disponibilizado por R$ 197.
Em outras postagens que divulga o curso, ele tenta relacionar as vacinas de covid-19 a casos de câncer. A associação já foi desmentida pelo Verifica em novembro do ano passado.