Ódio contra mulheres reúne 220 mil no Telegram e é ponte para grupos conspiracionistas e neonazistas
LEVANTAMENTO DA FGV MOSTRA COMO COMUNIDADES SE ARTICULAM NA PLATAFORMA E LUCRAM A PARTIR DE CONTEÚDOS OFENSIVOS E VIOLENTOS
"Uma mulher que já teve filhos deve ser solenemente ignorada, como um fantasma, um ser invisível". Este é o trecho menos extremo de uma mensagem publicada no Telegram e cujo conteúdo completo inclui misoginia, racismo e etarismo.
A mensagem foi identificada em uma pesquisa do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop), da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Os pesquisadores trouxeram à tona um ecossistema existente na plataforma com mais de 220 mil usuários brasileiros. Eles estão distribuídos em 85 comunidades voltadas ao ódio e violência contra mulheres.
São grupos que combinam radicalização misógina, monetização e conexões com movimentos conspiracionistas e até neonazistas. Os pesquisadores contabilizaram 7 milhões de conteúdos dessa natureza circulando na rede ao longo de 10 anos.
Os dados foram coletados entre setembro de 2015 e novembro de 2025 e embasam o estudo Redes de ódio e violência contra mulheres: mapeamento da machosfera brasileira no Telegram e modelos de monetização, publicado na terça-feira, 25. "Machosfera" é um termo que tem sido utilizado por pesquisadores para denominar redes de ódio e violência contra mulheres.
A rede "se vende" como um espaço para tratar de dificuldades enfrentadas por homens em áreas como relacionamentos amorosos, boa forma física ou paternidade. Mas as comunidades promovem conselhos e atitudes nocivas, com a narrativa de que os homens são "vítimas" do cenário social e político.
Cada categoria apresenta características próprias:
Identidades masculinistas: é o núcleo ideológico mais consolidado e abrange as principais correntes doutrinárias da rede, como red pill, black pill e MGTOW ( Men Going Their Own Way, que significa "homens seguindo seu próprio caminho"). Red pill é um movimento que promove ideologias misóginas e defende um "despertar" dos homens em relação a um suposto domínio feminino. Black pill é mais radicalizado: os integrantes enfatizam determinismos biológicos extremos sobre relacionamentos e hierarquias sociais. MGTOW promove um afastamento total das mulheres para a "libertação" masculina. A construção identitária desses grupos gira em torno de comparações, ressentimentos e disputas simbólicas entre gêneros. São comuns os discursos autodepreciativos, que vitimizam os homens. Essa postura tem intersecções com racismo e classismo. Por exemplo, homens brancos são apresentados como "vítimas" de uma suposta preferência feminina por homens negros e elas são retratadas como interesseiras. Nesse meio, foi identificada a ala mais radical de usuários, que se conecta fortemente com o pensamento de extrema-direita e compartilha, por exemplo, pacotes de figurinhas nazistas. Desenvolvimento pessoal masculinista: comunidades com duas vertentes principais. Uma é de grupos focados no movimento NoFap, que incentiva a abstinência da masturbação e do consumo de pornografia. A outra é dedicada ao desenvolvimento da "masculinidade alpha". Ambas são baseadas em pseudociência. Esses grupos normalizam conceitos centrais da ideologia misógina, como a classificação hierárquica de masculinidades, por meio de uma linguagem aparentemente neutra de autoajuda. Isso facilita, segundo os pesquisadores, a progressão dos usuários para conteúdos mais extremistas. Guerra cultural: é uma das vertentes mais politizadas, caracterizada pela articulação explícita entre misoginia e agendas políticas de combate ao feminismo e aos direitos das mulheres e de promoção de discursos anti-LGBTQIA+. As publicações misóginas são apresentadas dentro de um contexto mais amplo de "defesa cultural". Esses grupos têm presença significativa de conteúdo transfóbico e homofóbico, contribuindo para a normalização de violência contra grupos historicamente marginalizados. Misoginia: é o núcleo mais explicitamente violento, concentrando apenas quatro comunidades, mas com volume impressionante de 2,9 milhões de conteúdos. Nessas comunidades, o catalisador é o discurso de ódio contra as mulheres, normalmente em formato de "humor". Criptos e investimentos: essa categoria revela uma interseção curiosa e estratégica entre a rede e o universo das criptomoedas. As postagens evidenciam como o discurso financeiro é instrumentalizado para promover um "empoderamento" masculino. A ideia vendida é de que o domínio do sistema financeiro e das criptomoedas representa uma forma de escapar da "corrupção" do sistema tradicional, alinhando-se ao ideal de "macho alpha" provedor e financeiramente independente. Como esses grupos interagem com conspiracionismo?
Os grupos relacionados à guerra cultural são o principal polo de articulação entre a rede de misoginia e comunidades que promovem teorias da conspiração. Os usuários são direcionados a outros grupos temáticos, como os de anti-woke, terraplanismo, antivacina e de negacionismo das mudanças climáticas. Anti-woke é um movimento que se opõe à cultura "woke", descrita como preocupada com questões sociais, como injustiça racial e desigualdade de gênero.
Outra categoria que serve como porta de entrada para comunidades conspiracionistas é a de grupos masculinistas. As frustrações de gênero são frequentemente convertidas em macroconspirações, relacionadas a teorias conspiratórias sobre globalismo e antivacinas.
Segundo a pesquisadora Julie Ricard, do DesinfoPop/FGV, existe uma lógica de discurso semelhante entre grupos de diferentes temas. Um exemplo são as comunidades antivacinas, que se apoiam em teorias de que os imunizantes são desenvolvidos por uma elite para controle da população, ideia também defendida em grupos sobre globalização.
Nas comunidades de ódio às mulheres, segundo ela, uma lógica parecida se desenvolve. "Analisando os discursos desses homens, a gente observa que eles se sentem rejeitados pela sociedade, pelas mulheres, e transformam isso em ressentimento e ódio", explicou.
O estudo identificou que, a partir de grupos de identidades masculinistas e de misoginia, onde circula mais conteúdo extremo, usuários passaram a integrar comunidades de neonazismo. Isso mostra como discursos supremacistas se ancoram no sentimento de hostilidade às mulheres.
De acordo com Ricard, há aproximadamente 35 mil usuários em comunidades neonazistas que compartilham convites na rede de ódio às mulheres. "Nessas comunidades, os usuários acabam chegando após acompanharem grupos voltados ao ódio às mulheres, combinado com ressentimento de classe e racismo. Isso leva a uma abertura maior a discursos neofascistas", disse.
Pandemia foi porta de entrada para muitos usuários
O número de conteúdos compartilhados na rede de grupos de ódio cresceu aproximadamente 600 vezes (59.643,51%) entre 2019 e 2025. Os pesquisadores perceberam ter ocorrido uma ruptura na tendência histórica a partir de 2020 e 2021. O aumento aparece especialmente concentrado nas comunidades de identidades masculinistas.
Após o pico de 2021, houve um refluxo em 2022, mas sem retorno aos níveis pré-pandemia. Em 2023, o ecossistema voltou a crescer de forma expressiva e a tendência de expansão continua. Em 2023, foram contabilizadas 282.036 mensagens; em 2024 o número subiu para 396.431; agora, até novembro de 2025, o volume alcança 354.816 publicações.
Ricard diz que os pesquisadores têm algumas hipóteses para o fenômeno, incluindo o fato de as pessoas passarem mais tempo online durante o período pandêmico. Comunidades conspiracionistas também cresceram nesse período.
Outro ponto, segundo a pesquisadora, é que aumentou também a violência doméstica contra a mulher no período da pandemia.
Ódio que gera lucro
Conforme os pesquisadores, usuários desses grupos transformam o ódio contra as mulheres em fonte de renda. Foram identificadas mais de 20 mil referências comerciais.
Nesses ambientes são vendidas mentorias, consultorias, e-books e até encaminhamentos para cursos e comunidades pagas, além de captação para cripto e educação financeira.
Os produtos "educacionais" são o principal vetor de monetização. Eles funcionam como porta de entrada para a venda de pacotes de autoaperfeiçoamento, masculinidade e transformação pessoal.
Para os pesquisadores, a oferta de pacotes exclusivos, mentorias privadas e produtos premium camufla processos de radicalização sob a linguagem aparentemente neutra do desenvolvimento pessoal, da produtividade e da ascensão individual.
O que pode ser feito?
Ricard diz que não existe um estudo apresentando soluções, mas que o levantamento apresentado pelo grupo pode apresentar pontos de reflexão.
O primeiro é a necessidade de uma moderação de conteúdos mais eficiente. Segundo ela, os pesquisadores se depararam com imagens explícitas de violência, o que é proibido pela política de moderação da maior parte das plataformas.
A pesquisadora sugere, ainda, a adoção de estratégias para dialogar com o público que participa de comunidades masculinistas.
"A gente vê muitas frustrações, muitos ressentimentos que federam esses grupos", disse. "Acho que isso pode ser conectado a muitas questões estruturais, desde socioeconômicas a isolamento progressivo da sociedade. São temas que parecem individuais, mas precisam ser tratados como problemas coletivos".
Além de Julie Ricard, conduziram o estudo Ergon Cugler de Moraes Silva, vinculado ao DesinfoPop; Mario Aquino Alves, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV EAESP; Guilherme Celestino, doutor em Estudos Portugueses e Brasileiros pelo King's College London; e Gabriel Rocha e Stefanny Vitória, graduandos em Administração Pública na FGV EAESP.