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Política

Especialista contesta satélite de R$ 145 mi que Defesa quer

Gilberto Câmara diz que sistema tem o efeito de 'cloroquina espacial', ou seja, não traz nenhuma evidência de que executa sua função

25 ago 2020 - 13h22
(atualizado às 13h35)
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O sistema de monitoramento por satélite que o Ministério da Defesa pretende contratar para o monitoramento da Amazônia, ao custo de R$ 145 milhões, tem o efeito de uma "cloroquina espacial", ou seja, não traz nenhuma evidência de que executa sua função de forma eficiente. Além disso, há tecnologias gratuitas de monitoramento por satélite com melhor desempenho. A afirmação é de um dos maiores especialistas em monitoramento por satélites do País, o diretor do secretariado do Grupo de Observações da Terra (GEO), Gilberto Câmara. O órgão é vinculado às Nações Unidas.

Árvore derrubada em trecho desmatado da floresta amazônica perto de Porto Velho
Árvore derrubada em trecho desmatado da floresta amazônica perto de Porto Velho
Foto: Ueslei Marcelino / Reuters

O ministério, por sua vez, alega que apesar de restrições técnicas, a tecnologia que pretende adquirir "é capaz de enxergar o terreno, mesmo que ele esteja sob nuvens" e que, mesmo na época de fortes chuvas na Amazônia, que duram cerca de oito meses, o radar consegue melhor monitoramento.

Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas (Inpe) de 2006 a 2013, Câmara disse, em entrevista ao Estadão, que não há nenhuma justifica técnica que aponte a necessidade dessa contratação e que existem sistemas gratuitos de satélites que desempenham, inclusive, um resultado mais satisfatório do que a tecnologia que os militares pretendem adquirir.

"Ao mesmo tempo em que pretendem gastar R$ 145 milhões numa compra de uma cloroquina espacial, o orçamento de pesquisa do Inpe foi zerado para 2021. A única explicação possível é que os militares querem substituir o monitoramento do Inpe pelo do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) e produzir um número cujos dados não serão transparentes para a sociedade", afirmou.

A tecnologia que a Defesa pretende contratar é conhecida como sistema de micro satélites da constelação Iceye. Como o próprio nome em inglês aponta, trata-se de um satélite para "olhar gelo", o que faz sentido, considerando que foi desenvolvido na Finlândia.

A questão é técnica. Gilberto Câmara explica que o satélite Iceye tem uma capacidade de cobertura de grandes áreas muito limitada. "Basta dividir a largura da Amazônia, de 2.000 km, pela largura de faixa dele, 30 km por dia. Isso dá 66 dias. Ou seja, ele demora mais de dois meses para cobrir a Amazônia toda", comenta o especialista. "Compare com os três dias da combinação feita a partir da tecnologia que usamos hoje".

O especialista explica ainda que o sistema que os militares pretendem comprar usa um recurso de coleta de dado que não tem capacidade de penetrar abaixo da copa das árvores. A tecnologia do satélite Iceye, diz ele, não possui capacidade de distinguir com qualidade árvores altas de arbustos ou árvores cortadas, por exemplo. Além disso, por serem satélites mais leves, os equipamentos da Iceye tem um sistema de controle limitado, sem giroscópios. "Em consequência, o satélite não mantém a órbita fixa, mas viaja ao sabor do vento solar e do atrito. Isso acontece com todos os satélites de menos de 100 quilos", afirma Câmara.

O resultado é que, na literatura científica, não há registro de metodologias eficientes de uso da tecnologia que os militares querem adquirir para fazer monitoramento de florestas tropicais. "Em resumo, não há qualquer evidência científica publicada na literatura que indique que satélites como Iceye possam monitorar desmatamento, ainda mais em tempo real. Não há justificativa técnica para a compra do sistema para monitorar a Amazonia", diz o especialista.

Segundo Gilberto Câmara, existem satélite melhores que o Iceye e que são gratuitos para monitoramento da Amazônia. Ele menciona os satélites Sentinel-1 e 1A, da Europa, que estão disponíveis gratuitamente na internet. "As imagens são muito melhores que as do Iceye e mais úteis para monitorar o desmatamento. É um absurdo comprar um satélite que não serve para monitorar a Amazônia, considerando que já existem satélites SAR disponíveis gratuitamente", afirma.

No orçamento deste ano, o Inpe recebeu, como um todo, R$ 118,2 milhões para tocar suas operações. A proposta em análise para o ano que vem prevê R$ 79,7 milhões. A Agência Espacial Brasileira zerou, de fato, o orçamento de pesquisa, desenvolvimento e capital humano do Inpe previsto para 2021.

O Grupo de Observações da Terra (GEO), cujo secretariado é dirigido por Câmara, é vinculado às Nações Unidas e é hoje a principal instituição internacional para monitoramento e observação da Terra. Câmara é membro sênior da Association for Computing Machinery (ACM), doutor honoris causa pela Universidade de Muenster (Alemanha). Já orientou 31 mestrados e 23 doutorados. Em 2012, recebeu o Global Citizen Award da Global Spatial Data Infrastructure Association o Pecora Award, da Nasa. Ele participou da criação do sistema Deter, a plataforma do Inpe de informações que emite os alertas sobre desmate na Amazônia.

O especialista Dalton Valeriano, servidor do Inpe desde 1982 e coordenador do programa de monitoramento de 2003 a 2018, afirma que, de fato, a tecnologia de "banda x" de transmissão usada pelo sistema que os militares pretendem comprar não é adequada para a Amazônia. "A banda x não tem muita profundidade em floresta. É muito limitada para perceber uma área", afirmou ele.

Complemento

Por meio de nota, o Ministério da Defesa informou que o processo de aquisição "cumprirá todos os requisitos legais" e será realizado por meio de uma licitação internacional. "O processo licitatório ainda está em andamento e poderá estar concluído até o final deste ano, com previsão para entrar em operação até o final de 2021", declarou.

Segundo a pasta, "não haverá sobreposição de funções do Inpe, mas sim complementaridade".

A respeito do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia, o ministério declarou que o órgão, criado em 2002, tem a missão de "promover a proteção e o desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal" e que, para cumprir esse trabalho, "utiliza dados gerados por meio de uma infraestrutura tecnológica, composta por sensoriamento remoto, radares meteorológicos e coleta de dados na região amazônica".

Apesar das restrições técnicas comentadas por Gilberto Câmara e Dalton Valeriano, a Defesa afirma que a tecnologia que pretende adquirir "é capaz de enxergar o terreno, mesmo que ele esteja sob nuvens" e que, mesmo na época de fortes chuvas na Amazônia, que duram cerca de oito meses, o radar consegue melhor monitoramento. Segundo a pasta, "não haverá sobreposição de funções do Inpe, mas sim complementaridade".

"Embora planejado para monitorar a região amazônica, o satélite terá a capacidade de ser empregado no monitoramento de outras regiões estratégicas do País. Como exemplo dessa aplicação, o equipamento poderá ser utilizado no monitoramento da Amazônia Azul, constituindo importante ferramenta ambiental durante eventos como as manchas de óleo detectadas no litoral brasileiro, em 2019", informou o ministério, acrescentando que "a possível aquisição contribui também, diretamente, para a soberania espacial, cumprindo objetivos da Estratégia Nacional de Defesa, por meio do Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE), que elencou diversas carências no segmento aeroespacial brasileiro, entre elas a ausência de um satélite com sensor radar operado pelo Brasil".

Plano antigo

Desde o início do governo Bolsonaro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmava que pretendia comprar um novo sistema para monitorar a Amazônia, colocando em xeque a veracidades dos dados registrados anualmente pelo Inpe, apesar de o órgão ser reconhecimento internacionalmente pela qualidade das informações que oferece.

Em agosto do ano passado, o MMA chegou a formar um grupo que ficaria responsável por fazer a aquisição de um sistema, então orçado em cerca de R$ 7 milhões. O negócio não foi para frente. Agora, a intenção migrou para a Defesa, que também tem assumido o protagonismo nas ações na Amazônia, comandadas pelo vice-presidente Hamilton Mourão.

Estadão
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