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Jair Bolsonaro: os caminhos e as promessas do novo presidente

Eleito com mais de 57,7 milhões de votos, Jair Messias Bolsonaro, de 63 anos, assume a Presidência do Brasil. Mas como ele chegou aqui, e para onde guiará o país?

1 jan 2019 - 11h43
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Eleito com mais de 57,7 milhões de votos, Jair Messias Bolsonaro, de 63 anos, assume a Presidência do Brasil com muitas promessas: atacar a corrupção, combater a escalada do crime, reanimar a economia e lutar contra os vícios do sistema político.

Seu mandato começa com grande esperança de seus apoiadores e com muito temor por parte de seus críticos - ciosos de posicionamentos polêmicos do ex-deputado e capitão reformado, conhecido por declarações que consideram antidemocráticas e preconceituosas contra minorias.

Bolsonaro ascendeu do baixo clero da Câmara dos Deputados ao cargo máximo do país defendendo uma agenda liberal no campo econômico e conservadora em relação à segurança e aos costumes - e prometendo um governo diferente de "tudo isso que está aí".

Mas como ele chegou aqui e para onde guiará o país?

A escolha

Em 1970, tropas do Exército chegaram ao Vale do Ribeira, no sudoeste de São Paulo, em uma missão de caça. Estavam à procura de Carlos Lamarca, que, no ano anterior, desertara de seu posto de capitão no Exército para se juntar à luta armada contra a ditadura militar.

Bolsonaro tinha 15 anos quando os soldados apareceram em Eldorado, cidade onde vivia com a família. Lamarca queria estabelecer um centro para treinar guerrilheiros na região. Iniciada com o golpe de 1964, a ditadura havia endurecido com o Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, institucionalizando a repressão, a vigilância e a censura por parte do Estado - e a luta armada se organizou e se acirrou.

"Ele (o Lamarca) passou por lá, feriu seis soldados, fez o tenente Alberto Mendes Junior de refém e depois o matou a coronhadas, covardemente", relatou Bolsonaro em 2017, em entrevista à revista Piauí.

Com a disputa entre militares e guerrilheiros de repente à sua porta, o adolescente escolheu o seu lado - e colaborou com os primeiros. "Eu conhecia tudo daquela mata e passava informações para os soldados sobre as características do lugar", explicou.

Lamarca conseguiu escapar, mas acabou sendo morto um ano depois, no interior da Bahia. Já o jovem Bolsonaro decidiu se juntar aos militares. Aos 18 anos, se inscreveu na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas (SP).

Jair Messias Bolsonaro nasceu em 21 de março de 1955 em Glicério, no interior de São Paulo, mas foi registrado em Campinas e cresceu em Eldorado, para onde os pais se mudaram com os seis filhos quando ele era criança. É o terceiro da família de três meninos e três meninas. O sobrenome é a versão abrasileirada do nome de família do bisavô, Vittorio Bolzonaro, que saiu em 1888 do Vêneto, na Itália, para o porto de Santos.

Em Eldorado, a família Bolsonaro morava em uma casa simples à margem do rio Ribeira do Iguape. O menino ganhava dinheiro da pesca e da extração de palmito silvestre e gostava de caçar passarinhos com espingarda de chumbinho. Convivia com o apelido de "palmito" por ser comprido e branquelo. Ajudava o pai, o único dentista da cidade, a fazer dentaduras e próteses, e se aventurava como garimpeiro na cidade, que em 1948 foi batizada de Eldorado por causa do ciclo do ouro.

Hoje, não há quem não conheça os Bolsonaro na cidade. O agricultor aposentado Celso Luiz Leite, de 63 anos, cuja irmã se casou com um dos irmãos de Bolsonaro, diz se lembrar dele como um menino sério, que estudava e pescava. "Ele não era de festa. Gostava de pescaria e de praticar esporte".

"O amigo dele, Gilmar, me contou que Jair sempre falava que queria ser presidente do Brasil", diz Celso Luiz Leite.

A família ainda vive na região, dona de comércios de móveis e material de construção. Atualmente, Eldorado tem 15 mil habitantes e vive sobretudo das plantações de bananas e de um turismo modesto.

Apoiadores do antigo vizinho ilustre esperam que ele não esqueça suas origens, agora que subiu ao poder. "Estamos animados", diz o engenheiro agrônomo aposentado Antonio Carlos de Melo Cunha, de 64 anos, que conviveu com Bolsonaro na infância, como colega de turma na escola.

"Só quebrar essa roubalheira já é um ponto importante. Os valores da família também estavam indo por água abaixo. Temos boas expectativas com ele. Acredito que alguma coisa ele vai fazer pela nossa região", espera Cunha.

O capitão

Aos 18 anos, Bolsonaro chegou à Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), cidade a três horas do Rio, iniciando o período de quatro anos de estudo em regime de internato. A frase em letras maiúsculas alta em uma das fachadas do campus resume a filosofia ensinada na escola: "CADETE! IDES COMANDAR, APRENDEI A OBEDECER".

O jovem cadete logo se destacou na prática de esportes, integrando a equipe de pentatlo militar. Então instrutor da Aman, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira costumava auxiliar na seção de educação física e conheceu o cadete primeiro como atleta. "O apelido dele era Cavalão, porque era grande e muito forte", lembra o general, que mais tarde se aproximou de Bolsonaro e é o chefe do Gabinete de Segurança Institucional de seu novo governo.

Bolsonaro se formou na turma de 1977, continuou sua formação na Escola de Educação Física do Exército e depois na Brigada Paraquedista, no Rio de Janeiro, onde se estabeleceu.

O deputado e coronel da reserva da PM Alberto Fraga (DEM-DF), que se formou com Bolsonaro em Educação Física em 1983, disse que ele era um colega de turma "muito parceiro" e generoso. Fraga e outros tenentes estavam recém-chegados da Polícia Militar. "Ele deu muito apoio para a gente que estava chegando a uma corporação estranha, e ajudou a gente a estudar para provas de matérias que não tínhamos tido antes", lembra o deputado.

Bolsonaro foi subindo de patente até se tornar capitão. Mas então fez algo contrário aos pilares de disciplina e hierarquia que regem o espírito militar.

Em 1986, publicou um artigo na revista Veja intitulado O salário está baixo. Argumentou que oficiais estavam abandonando a carreira por causa dos salários e que tornava público seu depoimento para que o povo brasileiro soubesse "a verdade sobre o que está ocorrendo", mesmo ciente do risco de ver sua "carreira de devoto militar ser seriamente ameaçada". "Não consigo sonhar com as necessidades mínimas que uma pessoa do meu nível cultural e social poderia almejar", escreveu, encerrando: "Brasil acima de tudo".

Sua ousadia foi punida com prisão por 15 dias por "transgressão grave". Segundo o arquivo secreto sobre Bolsonaro elaborado à época pelo regime militar, o Superior Tribunal Militar (STM) julgou que ele havia sido "indiscreto na abordagem de assuntos de caráter oficial, comprometendo a disciplina", ferindo "a ética, gerando clima de inquietação no âmbito da organização militar".

A situação se agravou no ano seguinte, quando reportagens na mesma Veja revelaram que Bolsonaro e outro militar, Flavio Passos, teriam elaborado um plano para colocar bombas em unidades militares do Rio, como forma de pressão pelos aumentos salariais. Bolsonaro negou o plano - e a revista procedeu então a publicar um croqui atribuído ao capitão indicando onde as bombas seriam colocadas, na reportagem "De próprio punho".

O capitão foi submetido a um inquérito pelo Conselho de Justificação do Exército, que convocou a repórter responsável pela matéria para testemunhar. Segundo a ficha militar de Bolsonaro, no inquérito, a repórter afirmou "ter recebido uma ameaça de morte do referido capitão, momentos antes de iniciar seu depoimento".

O conselho o julgou culpado, mas o processo passou ao Superior Tribunal Militar - que decidiu absolver Bolsonaro. O estrago para sua carreira militar, porém, estava feito, e sua relação com a imprensa não começara bem.

"Ele perdeu espaço nas Forças Armadas por falácias na imprensa", diz Waldir Luiz Ferraz, que atua a seu lado desde 1988 como seu assessor de imprensa. "Foi aconselhado a entrar na política, porque já não tinha mais chances de fazer carreira nas Forças Armadas"

O político

Em 1988, quando o Brasil promulgou a Constituição "cidadã" da era da redemocratização, Bolsonaro se candidatou a seu primeiro cargo eletivo: uma vaga na Câmara dos Vereadores do Rio pelo Partido Democrata Cristão (PDC).

Como lembra Ferraz, eles "ralaram muito" fazendo campanha em vilas militares, deixando panfletos debaixo das portas das casas de madrugada e distribuindo santinhos.

A ousadia de cobrar salários mais "dignos" lhe rendera fama na comunidade militar, e Bolsonaro foi eleito pelo grupo que manteria como sua principal base eleitoral. Foi então que passou para a reserva remunerada do Exército, conforme lei que obriga a medida após a diplomação de militares para cargo eletivo.

Antes de terminar o primeiro mandato, se candidatou a deputado federal, também pelo PDC. "Ele entrou forte com defesa das Forças Armadas e as bandeiras da segurança pública. Antes da gente entrar, não tinha ninguém que defendia", diz Alberto Fraga (DEM-DF), deputado desde 1999 e líder da chamada bancada da bala no Congresso.

Especulava-se se o amigo de longa data de Bolsonaro teria um papel em seu governo. Em setembro de 2018, Fraga foi condenado em primeira instância por usar o cargo público para cobrar propinas sobre contratos de transporte no Distrito Federal, acusação que ele nega.

Fraga o descreve como uma figura brincalhona e popular na Câmara dos Deputados, onde vivia atendendo pedidos para tirar selfies e almoçava sempre no bandejão, exemplo de um estilo de vida sem firulas e pouco afeito a luxos.

Já o deputado federal e professor de História Chico Alencar tem impressão muito diferente de sua atuação parlamentar. Alencar teve trajetórias paralelas a Bolsonaro na política, mas sempre à esquerda, inicialmente no PT e hoje no PSOL.

"Desde o início, ele apareceu como um saudosista da ditadura militar e defensor dos interesses da corporação. Ele sempre foi um pouco monotemático e combatente do que ele chama de subversivos de esquerda", diz Alencar.

O Brasil ainda buscava digerir o fim do regime autoritário que terminou em 1985 quando, em junho de 1993, Bolsonaro subiu ao pódio da Câmara dos Deputados para proclamar-se "a favor da ditadura militar" e exigir o fechamento do Congresso.

"Nunca resolveremos os problemas sérios deste país com essa democracia irresponsável", afirmou, levando o jornal O Globo a estampar na capa uma charge do cartunista Aroeira retratando-o como um dinossauro de botas, e a legenda: "Estupidossauro Bolsonarus: a maior besta que já caminhou sobre a face da terra".

O episódio foi captado pelo jornal americano The New York Times (NYT), que foi entrevistar o polêmico deputado para uma reportagem sobre o "soldado que virou político e quer devolver o Brasil ao regime militar": "Onde quer que eu vá, as pessoas me recebem como um herói nacional", Bolsonaro afirmou ao NYT à época. "As pessoas veem a possibilidade de a disciplina militar tirar o Brasil da lama", justificou.

"Se havia uma pessoa que eu diria que jamais chegaria a Presidente da República do Brasil, era o Bolsonaro. Era mais fácil o Tiririca chegar lá do que ele", diz Chico Alencar.

"Ele sempre foi muito estrito, sectário. Todo mundo o via como uma figura exótica, rude, autoritária, sempre repetindo as mesmas coisas, e pouco afeita ao debate. Ele defendia a chamada moralidade pública, mas levou sua família toda para dentro da política, a começar por sua esposa."

O capitão reformado foi casado duas vezes antes de sua união atual à primeira-dama Michelle Bolsonaro. Sua primeira mulher, Rogéria, foi eleita vereadora no Rio pouco depois que ele foi para o Congresso. Sua segunda mulher, Ana Cristina Valle, se candidatou a deputada federal em 2018, mas não se elegeu.

Ana Cristina esteve no centro de um dos escândalos revelados durante a campanha eleitoral, quando uma reportagem da Folha de S.Paulo reproduziu telegramas do Itamaraty informando que ela relatara sofrer ameaças de morte do ex-marido na época em que disputava a guarda do filho deles, Renan, com Bolsonaro. Ela negou as informações.

Os três filhos do casamento com Rogéria seguiram o caminho do pai, transformando o sobrenome Bolsonaro em um clã político. Carlos foi o primeiro, vereador no Rio desde 2001, quando tinha apenas 17 anos. Já Flávio e Eduardo tiveram suas candidaturas impulsionadas pela popularidade do pai em 2018: Flávio, deputado estadual no Rio desde 2003, se elegeu para o Senado; e Eduardo, deputado federal por São Paulo desde 2015, se reelegeu com 1,8 milhão de votos, um recorde histórico.

"Ele costumava brincar comigo que um dia os Bolsonaros seriam maiores que o PSOL", lembra Alencar. "Acho que uma de suas maiores conquistas foi conseguir consolidar a imagem de ser contra o sistema, mesmo sendo parte integral dele."

O polemista

Ao longo de sua trajetória política, Bolsonaro se notabilizou por uma extensa lista de declarações polêmicas proferidas como homem público.

Em entrevistas, programas de TV e em discursos no plenário, defendeu a ditadura militar e disse ser favorável à tortura; afirmou se orgulhar de ser homofóbico e que preferia ver um filho seu morrer do que aparecer "com um bigodudo por aí"; disse que não pagaria o mesmo salário a homens e mulheres se fosse empresário, "porque elas engravidam"; e declarou que o país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente, incluindo o então presidente Fernando Henrique Cardoso, que deveria ter sido "fuzilado".

Em alguns dos episódios mais polêmicos de sua trajetória, ele disse à deputada Maria do Rosário (PT-RS) que ela "não merecia ser estuprada", afirmando que ela o teria chamado de estuprador; e homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem se referiu como "o terror de Dilma Rousseff", ao proferir seu voto em favor do impeachment da ex-presidente em 2016.

Ustra comandou o DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura onde Dilma e outros 500 presos políticos foram torturados, segundo a Comissão Nacional da Verdade. É de autoria do coronel Ustra o livro que Bolsonaro cita como seu livro de cabeceira: A verdade sufocada - A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça (Editora Ser, 2006).

Durante a campanha presidencial, a extensa lista de falas polêmicas foi evocada à exaustão por seus opositores, que a viam como argumentos incontornáveis para estimular o voto contra Bolsonaro.

Afinal, questionavam, como eleger um presidente que havia feito comentários misóginos, homofóbicos e racistas e atacado a democracia e os direitos humanos?

O que para muitos era inaceitável, para outros pareceu secundário ou mesmo contou pontos positivos, transmitindo uma imagem de franqueza e dialogando com valores de uma sociedade conservadora no que se refere a desigualdades históricas de raça, gênero e classe, como observa a socióloga Esther Solano.

"Bolsonaro conseguiu captar um sentimento social que estava aí", afirma ela, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e organizadora do livro O ódio como política - A reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).

"Quando faz uma piada racista ou homofóbica, sabe que vai gerar polêmica, mas que muita gente no fundo vai aprovar", diz.

Para Solano, a eleição de um presidente com o histórico polêmico de Bolsonaro talvez não tivesse sido possível alguns anos atrás. Mas a entrada em cena do presidente americano Donald Trump inaugurou um novo caminho político, com ênfase no "politicamente incorreto e na polêmica como forma de fazer campanha". "Trump deixa a porta aberta para outros políticos seguirem o seu caminho", diz a socióloga.

As comparações ao estilo incendiário do presidente dos Estados Unidos renderam a Bolsonaro o apelido de "Trump dos Trópicos". Mas o cientista político Timothy Power está convencido de que, "diferentemente de Trump", as tiradas polêmicas de Bolsonaro são baseadas em "crenças sinceras".

"Trump diz qualquer coisa que quiser como parte de sua estratégia de ganhar votos", considera Power, professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e diretor do Programa de Estudos Brasileiros da instituição britânica.

"Já Bolsonaro realmente acredita nas coisas que ele diz. Ele não acredita que o Brasil teve uma ditadura, ele não acredita que mulheres deveriam estar fazendo trabalho de homens, ele realmente acredita que coisas como a pena de morte ou armar a população vão ajudar a reduzir o crime."

Nas fases finais da corrida presidencial, ataques contra mulheres e pessoas LGBT foram vistos como um sinal de que a retórica agressiva do candidato do PSL poderia avalizar crimes de ódio. A equipe de campanha de Bolsonaro reagiu dizendo que os números de ataques registrados estavam dentro das estatísticas históricas do país e que não tinha ocorrido um aumento fora da curva.

Com o mote #EleNão, grupos feministas organizaram uma campanha contra Bolsonaro, levando manifestantes para as ruas de mais de cem cidades brasileiras na semana antes do primeiro turno. O que estimulou, por outro lado, atos favoráveis ao então candidato em várias delas.

Para seus aliados, Bolsonaro é um "cão que ladra, mas não morde" - e sua imagem é "deturpada", prejudicada "pelo recorte que a mídia dá". "Eu achava que ele falava demais, se excedia em algumas frases", diz a jornalista Joice Hasselmann, que mudou de opinião após entrevistá-lo em 2014 e ver se estabelecer ali uma "empatia imediata".

Foi o começo de uma amizade e parceria política. Hasselmann diz que Bolsonaro a "intimou" a se candidatar pelo PSL. Ela acabou se tornando a deputada federal mais votada em São Paulo.

O amigo de longa data Alberto Fraga diz que as polêmicas "são exagero". "Ele é um grande homem com um coração de menino. É doce, afável, brincalhão. Bem diferente do que a gente imagina vendo as reportagens", descreve, sempre referindo-se a Bolsonaro pelo primeiro nome. "O Jair não é comunicador. De vez em quando ele se atropela nas palavras."

"As posições do Bolsonaro sempre foram muito claras. Eu nunca vi ele ser homofóbico. Mas sempre reagiu ao 'kit gay' que queriam impor. Ele falava: 'Você quer queimar rosca, então queima rosca, mas não pode chegar na escola e querer mostrar isso como uma coisa normal'. Essa sempre foi a posição dele", diz Fraga.

Em outubro, no auge da campanha eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu Bolsonaro de divulgar vídeos associando seu adversário Fernando Haddad (PT) ao "kit gay", apelido dado por opositores a um material contra homofobia que estava sendo elaborado quando Haddad era ministro da Educação. A cartilha, no entanto, nunca chegou a ser enviada a professores ou escolas.

O enfrentamento entre Bolsonaro e Maria do Rosário ocorreu em 2003, no Salão Verde da Câmara, quando a deputada reagiu ao escutar uma entrevista de Bolsonaro defendendo a redução da maioridade penal para casos de crimes hediondos. Segundo o relato da deputada, ela interveio, afirmando que seu discurso violento poderia acabar promovendo mais violência, como o estupro. Ele reagiu dizendo que ela estava acusando-o de estuprador:

"Eu sou um estuprador?", esbravejou. "Jamais ia estuprar você porque você não merece." Ela respondeu que lhe daria uma bofetada se ele tentasse algo parecido. "Dá que eu te dou outra!", disse Bolsonaro sete vezes, empurrando a deputada e chamando-a de "vagabunda", em cena gravada em vídeos disponíveis na internet.

O deputado Alberto Fraga diz ter presenciado a cena. "Foi ela que o chamou de estuprador. Foi ela que ameaçou bater nele. Ele falou que ia bater de volta."

"Ele é que nem cobra. Quando é atacado, ele ataca", diz seu assessor Waldir Luiz Ferraz. "Se nunca for atacado, vai ficar tranquilo a vida inteira."

A deputada rebate a versão e afirma que nunca o chamou de estuprador e que é atacada até hoje por seguidores de Bolsonaro na internet pelo episódio. "A atitude de Jair Bolsonaro nesse episódio é como a do homem que acusa a mulher a bota e culpa nela. 'Eu agredi porque ela mereceu.' Eu não estou disposta a aceitar isso."

Rosário decidiu processá-lo depois que ele relembrou o episódio em um discurso no plenário, em 2014, voltando a dizer que ela não merecia ser estuprada. Em entrevista ao jornal Zero Hora, ele ainda acrescentou a justificativa de que a deputada seria "muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria". Bolsonaro foi condenado por danos morais no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e é réu de duas ações criminais no STF pelo mesmo episódio.

O 'outsider' político

Quando Jair Bolsonaro foi eleito para seu sétimo mandato como deputado federal, em 2014, confidenciou ao deputado Alberto Fraga que estava "cansado" de tantos anos no cargo - havia resolvido arriscar voos mais altos.

"Vou tentar a Presidência", disse ao amigo no plenário da Câmara dos Deputados. Ele havia sido reeleito com 464 mil votos no Rio, o recorde no Estado, e o bom resultado o inspirou. "Se eu conseguir 10% dos votos, estou satisfeito", afirmou, segundo o relato de Fraga.

"Ele começou com uma expectativa muito tímida. Todo mundo dizia que ele tinha um teto, que não ia crescer mais. Ele calou a boca de todo mundo que não acreditou", diz Alberto Fraga

A descrença se baseava em sua trajetória pouco expressiva como deputado do baixo clero no Congresso. Em 27 anos, Bolsonaro transitou por oito partidos e só conseguiu emplacar dois projetos de lei. Além disso, com suas posições polêmicas, não era visto como um candidato que pudesse obter ampla adesão.

Até que determinada constelação de fatores fez isso mudar, considera o cientista político Timothy Power. "A democracia brasileira abriu uma série de portas, e Bolsonaro conseguiu entrar", resume o professor da Universidade de Oxford, um dos primeiros a considerar que Bolsonaro tinha chances reais de vencer, já em 2016. Para ele, o capitão reformado demonstrou ter "instintos políticos muito fortes".

"Ele sabia que esse era o ano. Sua base de apoio era muito estreita, mas ele farejou o sangue na água depois do impeachment", diz Power.

Movimentos de direita que começaram a despontar já nos protestos de junho de 2013 ganharam força e maior organização, com os protestos exigindo o impeachment de Dilma Rousseff, realizados entre 2015 e 2016.

Além do impeachment, os fatores que prepararam o terreno para a eleição de Bolsonaro incluíram a escalada do crime no Brasil - com 63 mil mortes violentas no país em 2017 -, a lenta recuperação da recessão econômica em que o país mergulhou durante o governo Dilma e os escândalos de corrupção revelados pela Lava Jato.

"Como a Lava Jato foi muito forte, acabou passando para a população a ideia de que todo o sistema político era corrupto", diz a socióloga Esther Solano, da Unifesp. Isso prejudicou o desempenho de outros candidatos de centro-direita, como Geraldo Alckmin (PSDB) e Henrique Meirelles (MDB), que poderiam ter despontado como alternativas a Bolsonaro no voto conservador.

Já Fernando Haddad, que foi oficializado como substituto de Lula menos de um mês antes do primeiro turno, teve um rápido crescimento nos primeiros dias - mas logo esbarrou na grande rejeição ao PT. Apesar de ter passado para o segundo turno, Haddad não superou Bolsonaro na rodada final.

"O sistema político estava vulnerável a um populista esperto que conseguisse criar uma mensagem antissistema e antipetista eficiente", diz Timothy Power. "Bolsonaro conseguiu agradar a estes dois segmentos."

Bolsonaro assumiu a dianteira da corrida eleitoral após a prisão em abril do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - até então o primeiro colocado nas pesquisas de opinião -, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro.

Sua candidatura foi impulsionada por promessas de tolerância zero com o crime e a corrupção, de colocar a economia nos trilhos, governar sem o toma-lá-dá-cá de Brasília, de enxugar a máquina administrativa - e expurgar o PT do poder.

"Bolsonaro se apresenta como representante da ética e da moralidade, como o herói que vai salvar o Brasil da corrupção. E nessa narrativa o PT é o grande símbolo, tachado de culpado pela crise econômica e partido mais corrupto do país", descreve Solano.

O candidato apelou ao forte sentimento antipetista com ataques verbais violentos durante a campanha - falando, por exemplo, em "fuzilar a petralhada", em um comício em setembro, e prometendo que "esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria", em discurso ao vivo pelo celular a uma semana do segundo turno.

"Tem que mudar tudo isso que está aí" foi bordão de uma campanha nada convencional, feita com orçamento reduzido, tempo de TV ínfimo e sem contar com as poderosas máquinas partidárias do PT, PSDB ou MDB.

Bolsonaro explorou o poder das redes sociais para se comunicar diretamente com seus eleitores em uma linguagem simples e direta - mais uma semelhança com o presidente americano Donald Trump.

Conquistou uma base fiel de seguidores com postagens sem filtro sobre quase tudo, como bastidores da campanha, críticas à imprensa e cenas do dia a dia - como a foto que postou tomando café da manhã em uma mesa cheia de migalhas, vestindo a camisa do Palmeiras e usando leite condensado para passar no pão francês.

"Em um período de rejeição a políticos à esquerda e à direita, ele ganhou alguns pontos por transmitir autenticidade e por ter mensagens simples: contra a corrupção, contra o sistema político, contra crime, drogas e facções criminosas. Essas coisas reverberam com o público", diz Power.

Mas as redes sociais - e acima de tudo o aplicativo de mensagens WhatsApp - estiveram nos holofotes durante a corrida presidencial por causa do tsunami de notícias falsas espalhando rumores e inverdades sobre candidatos.

Dez dias antes do segundo turno, reportagem do jornal Folha de S.Paulo denunciou um esquema de envio em massa de mensagens contra Haddad, bancado por um grupo de empresários favoráveis a Bolsonaro.

A prática seria ilegal, pois configuraria doação de campanha feita por empresas. O PT chegou a pedir cassação de sua candidatura por crime eleitoral, o que foi negado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro refutou qualquer irregularidade.

No dia 6 de setembro, Bolsonaro sofreu uma tentativa de assassinato durante comício em Juiz de Fora, enquanto era erguido sobre os ombros de apoiadores na Rua Halfeld, a principal via comercial da cidade.

A facada desferida por Adélio Bispo de Oliveira perfurou seu intestino, causando uma grave hemorragia que poderia ter lhe custado a vida, e manteve Bolsonaro no hospital por três semanas. "Acabaram de eleger o presidente", seu filho Flávio Bolsonaro afirmou no Twitter após o ataque.

A um mês do primeiro turno, o atentado impôs mudanças à corrida eleitoral. Bolsonaro deixou de comparecer a debates e eventos de campanha, e sua recuperação recebeu cobertura extensa na TV. Até então, a coligação Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos, que o PSL formou com o PRTB, só tinha oito segundos de campanha pelo horário eleitoral.

O pastor evangélico e aliado Silas Malafaia, da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, lembra a visita que lhe fez no hospital, ainda com tubos entrando pelas veias e pelo nariz. Disse-lhe que, depois da facada, seus adversários estavam reclamando que "só dava mídia para Bolsonaro". E estavam "morrendo de inveja":

"Olha que santa facada foi essa aí. Mudou tudo. Só falam de você aí fora", afirma ter dito a Bolsonaro na ocasião. Ele começou a rir, mas então se conteve - os pontos da cirurgia ainda doíam.

Malafaia celebrou o casamento de Bolsonaro e Michelle, que costumava frequentar sua igreja no Rio, em 2013. Jair Bolsonaro é católico, mas, em 2017, foi batizado simbolicamente pelo pastor Everaldo Dias Pereira, presidente do PSC, no rio Jordão, em Israel.

A bancada evangélica foi parte do tripé que sustentou sua candidatura. Ele subiu com o apoio das bancadas "BBB" no Congresso - representando a "bala", os defensores do acesso às armas, "boi", o agronegócio, e "Bíblia", os evangélicos.

Em 28 outubro de 2018, Bolsonaro foi eleito presidente com 55,13% dos votos, contra os 44,87% de Fernando Haddad, do PT. Depois do resultado, Malafaia visitou-o novamente, agora em sua casa na Barra da Tijuca, no Rio.

"Ele falou para mim: 'Eu sou o Fusca que entrou na corrida de Fórmula 1 e ganhou. O improvável do improvável'", relata o pastor. "Ele é muito humilde, tremendamente simples. Não é besta, não é nariz empinado. Sabe das suas limitações."

O presidente

Ao longo das últimas semanas, a população assistiu às primeiras medidas de Bolsonaro como presidente eleito, enquanto se reunia com o gabinete de transição e escolhia seus ministros, anunciando-os, um a um, pelo Twitter.

Bolsonaro reduziu o número de pastas das 29 mantidas pelo governo Michel Temer para 22 - inicialmente havia prometido apenas 15, mas os cortes não chegaram a tanto. Ainda assim, é o menor número de ministérios desde o governo Fernando Collor, que em 1990 começou seu mandato com 12 pastas e tinha 14 ministérios quando sofreu impeachment, em 1992. O número de ministérios pulou para 28 com Itamar Franco, ficou entre 24 e 26 nos anos FHC, subiu para 34 no primeiro governo Lula e chegou a 39 no segundo governo Dilma Rousseff.

O ministério que Bolsonaro construiu ao seu redor reflete suas raízes militares, a agenda conservadora no âmbito dos costumes, acenos à bancadas evangélicas, da bala e ruralistas e o alinhamento ideológico à direita, com dois nomes indicados pelo filósofo Olavo de Carvalho, um "guru" do pensamento conservador emergente no país.

As "estrelas" do ministério de Bolsonaro são o juiz Sérgio Moro, que deixou o protagonismo à frente das ações da Lava Jato em Curitiba para se juntar ao governo, e seu outro guru, o economista liberal Paulo Guedes, apelidado pelo presidente eleito de "Posto Ipiranga" para assuntos econômicos do novo governo, e que foi o fiador da candidatura do PSL junto ao mercado.

Nomes menos conhecidos incluem Damares Alves, escolhida para chefiar o recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que passará a controlar também a Fundação Nacional do Índio (Funai); e o novo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que chefiava o departamento responsável pelas relações com os Estados Unidos e Canadá no Itamaraty e mantém um blog com elogios a Bolsonaro e críticas ao PT e à "ideologia globalista" no mundo.

Sete de seus ministros são militares, o que equivale a 35% do primeiro escalão - isso sem contar o próprio presidente e seu vice, o general da reserva Hamilton Mourão. É a maior participação que as Forças Armadas têm em um governo desde a redemocratização.

Assim que a sua vitória no segundo turno foi confirmada, a primeira medida de Bolsonaro foi fazer uma transmissão ao vivo no Facebook. A comunicação direta com seus seguidores nas redes sociais tem sido mantida para além da campanha, em mais uma semelhança com o estilo de Donald Trump.

Na relação com a grande imprensa, Bolsonaro também parece ter se inspirado na "cartilha" de Trump, considera o brasilianista Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly e especialista em América Latina do centro de pesquisas Council of the Americas, em Washington.

Ao longo da campanha, ele adotou tom belicoso contra a mídia, disseminando a ideia de que veículos tradicionais propagam "fake news" e ameaçando cortar verba publicitária federal para veículos críticos.

"Se ele conseguir condicionar o público a duvidar de tudo que lê e escuta na mídia tradicional, e usar sua posição para apresentar a sua própria narrativa - e muitas vezes seus próprios fatos, como o Trump tem feito - isso será uma ferramenta muito poderosa", afirma Winter.

Bolsonaro assume o governo com enormes desafios, como o de dar fôlego à economia - que deverá ter crescimento de 1,3% em 2018, segundo a última projeção do Banco Central - e reduzir o rombo nas contas públicas, que deve ficar em torno de R$ 140 bilhões neste ano.

A reforma da Previdência é vista como uma missão primordial, mas sua aprovação dependerá da capacidade do governo de construir uma maioria no Congresso. E a governabilidade pode ser dificultada pela maneira como Bolsonaro construiu seu ministério, sem distribuir cargos em troca de apoio partidário, aponta o cientista político Timothy Power.

"Ele vai ter que encontrar outras formas de satisfazer o Congresso para aprovar as políticas propostas por Paulo Guedes. Por outro lado, as pessoas que escolheu para fazer a interlocução com os parlamentares, como Onyx Lorenzoni (DEM-RS), não são muito influentes", considera o professor da Universidade de Oxford.

O nome de Lorenzoni exemplifica outro desafio do novo presidente: provar que a bandeira anticorrupção não era apenas promessa de campanha.

Bolsonaro enfrentou as primeiras celeumas neste quesito antes mesmo da posse, ao apontar Lorenzoni como ministro-chefe da Casa Civil apesar de ter sido citado na delação premiada da JBS como receptor de caixa dois; e com as suspeitas surgidas em dezembro em torno de movimentações bancárias de um ex-assessor de Flávio Bolsonaro, o ex-policial militar Fabrício José Carlos de Queiroz, velho amigo do presidente.

Depois de faltar a dois depoimentos convocados pelo Ministério Público do Rio sob a justificativa de problemas de saúde, Queiroz falou sobre o caso pela primeira vez em 26 de dezembro, em entrevista ao SBT, afirmando que as transações que levantaram suspeitas - de R$ 1,2 milhão ao longo de um ano - ocorreram porque ele é "um cara de negócios" e investiu na compra e revenda de bens.

Ao discursar na noite de sua vitória, em 28 de outubro, Bolsonaro procurou adotar um tom conciliador, prometendo "defender a Constituição, a democracia e a liberdade", e afirmando que o Brasil é um país "de diversas opiniões, cores e orientações".

O início do governo do capitão reformado inspira confiança a muitos brasileiros, mas gera temor e preocupação em muitos outros - sobretudo em áreas como a proteção dos direitos humanos, a defesa do meio ambiente e de povos indígenas e a liberdade de imprensa, de expressão e de ensino no ambiente escolar e acadêmico.

"Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil", declarou Bolsonaro logo após o primeiro turno, levando mais de 4 mil organizações da sociedade civil e movimentos sociais a se pronunciarem contra o que viram como uma ameaça à sua liberdade de atuação.

Movimentos feministas, negros e LGBT temem ver seus direitos cerceados no governo de um presidente que, durante a campanha, disse que as minorias teriam que "se curvar à maioria" - ou então "desaparecer".

"Campanha é campanha", diz o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro. "É importante que haja um pensamento positivo diante da situação que o Brasil está vivendo. O país foi colocado à beira do abismo, seja do ponto de vista econômico, político ou social. Precisamos reconstruir o Brasil dentro dos padrões que se imagina para uma das maiores economias do mundo", considera.

"Eu faço votos para que Bolsonaro surpreenda a parcela da população que não votou nele", diz o general Heleno.

*Colaborou Ingrid Fagundez, da BBC News Brasil em São Paulo

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