PUBLICIDADE

Tragédia em Santa Maria

Delegada se diz decepcionada com o rumo do processo da Kiss

Luisa Souza, que trabalhou na força-tarefa da Polícia Civil, lamenta que algumas pessoas, indiciadas no inquérito, acabaram não responsabilizadas pelo MP

22 jan 2014 - 15h08
(atualizado em 23/1/2014 às 11h49)
Compartilhar
Exibir comentários
Delegada Luiza Souza trabalha ainda em dois inquéritos relacionados com a Boate Kiss
Delegada Luiza Souza trabalha ainda em dois inquéritos relacionados com a Boate Kiss
Foto: Daniel Favero / Terra

Após dois meses de investigação, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul indiciou 16 pessoas, incluindo servidores públicos, pelo incêndio na Boate Kiss, que matou 242 pessoas na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. Entretanto, na hora de encaminhar à Justiça, o Ministério Público denunciou ao todo oito pessoas. A decisão de deixar isentar essas pessoas do processo foi frustrante para a polícia, mais especificamente para a delegada Luiza Souza, uma das policiais que esteve envolvida nas investigações.  Atualmente, outros dois inquéritos apuram a possibilidade de irregularidades na concessão de alvarás da prefeitura e de crime ambiental na Kiss. As investigações já apontaram que, desde sua abertura, a boate não funcionou nenhum dia com toda documentação regular.

A tragédia da Boate Kiss em números
Veja como a inalação de fumaça pode levar à morte
Veja relatos de sobreviventes e familiares após incêndio no RS
Veja a lista com os nomes das vítimas do incêndio da Boate Kiss

“É a minha opinião pessoal, mesmo, mas não tem como te dizer que eu não fiquei frustrada, porque a gente vivenciou aquela tragédia de perto. Fui lá na boate no dia, e aquilo é uma coisa surreal... uma coisa horrível, que eu nuca vou esquecer na minha vida, e aquele incêndio ocorreu por conta de várias negligências, e não foram uma, nem duas mortes, foram 242, e acabou com pouca gente responsabilizada, embora a gente tenha indicado outras”, desabafa a Luiza.

Segundo ela, apesar da pressão de conduzir uma investigação naquelas circunstâncias – com intenso assédio da mídia e da população – a polícia conseguiu realizar um trabalho com independência, conduzindo as investigações pelos rumos que julgasse corretos.

“A gente trabalhou com total independência. Éramos cinco delegados e fizemos o que nos entendemos que deveríamos fazer. Sem pressão, as pessoas que achamos que deveriam ser responsabilizadas... a gente fez... e até hoje, por parte dos familiares, e das pessoas afetadas, só recebemos elogios, eles ficaram muito satisfeitos com o trabalho da polícia, disseram que a polícia deu as respostas que eles esperavam”, conta.

Novas investigações

O primeiro inquérito elaborado pela polícia indiciou 16 pessoas, mas apenas oito foram processadas pela Justiça, e atualmente o processo está na fase de oitiva de testemunhas. Entretanto, no final do ano passado, a polícia recebeu denúncias anônimas e deu início a outras duas investigações referentes à Kiss. Uma apura a possibilidade de fraude na realização de uma consulta pública – que é das exigências do alvará de localização -, pelos proprietários.  A outra investiga crime ambiental.

A frente da Boate Kiss virou um verdadeiro santuário em homenagem às vítimas
A frente da Boate Kiss virou um verdadeiro santuário em homenagem às vítimas
Foto: Daniel Favero / Terra

“Conseguimos constatar que existem grande indícios de que ela (a consulta) foi fraudada, pois tem assinaturas em duplicidade. É um abaixo assinado no qual as pessoas dizem se são a favor ou contra. Tem que fazer essa consulta em uma área de 100 metros do empreendimento e a grande maioria da consulta foi feita fora dessa área que a lei determina”, explica a delegada, dizendo que ainda que foram coletadas assinaturas de  supermercados e lojas, que não seriam afetados pelo funcionamento da Kiss durante a noite. “Os vizinhos, que seriam os principais afetados não foram consultados”, completa, dizendo que isso teria sido conduzido pelos antigos sócios da boate.

Com isso, a polícia começou a passar um pente fino em todas as licenças obtidas pela Kiss, “e nisso a gente pode constatar que houve várias irregularidades, inclusive a boate em nenhum dia funcionou com todas as licenças vigentes, sempre faltava uma ou outra, e quando tinha, muitas delas foram concedidas de forma irregular”, conta a delegada, dizendo, no entanto, que ainda não foi possível averiguar quem foi o responsável por essas irregularidades.

Baseada na legislação municipal e estadual, a prefeitura de Santa Maria se exime de responsabilidade pela documentação apresentada. A alegação é de que os proprietários apresentam cinco diferentes documentos com veracidade de conteúdo assegurado por responsáveis técnicos, incluindo a aprovação do Corpo de Bombeiros, para depois emitir o alvará de localização. De forma resumida, a prefeitura simplesmente junta a documentação, e emite o alvará final, sem se responsabilizar pelas informações que constam nos documentos apresentados.

Equipe do Terra lembra a tragédia de Santa Maria:

O segundo inquérito é referente a crime ambiental, praticado em 2010, quando a Patrulha Ambiental da Brigada Militar (PM gaúcha), atendendo a um pedido do Ministério Público, constatou, por meio de medições sonoras, em duas ocasiões, que a boate operava acima dos limites máximos. “Têm dezenas de depoimentos dos vizinhos relatando que quando a boate Kiss funcionava ninguém dormia, a música era muita alta, as paredes e as louças tremiam. Inclusive a boate era vizinha de parede de apartamentos residenciais, e durante esse período que funcionou, os vizinhos viveram um total estresse, sem poder descansar nos finais de semana”, explica Luiza.

Nessa época, foi instaurado um inquérito civil, pelo Ministério Público, que gerou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), no qual os proprietários se comprometeram a realizar mudanças para diminuir os impactos, “realmente foi feita a reforma, foi colocado o gesso acartonado, mas mesmo assim foi insuficiente, e posteriormente, por conta dessas informações, eles botaram a espuma. Tudo em razão da poluição sonora, que nunca acabou porque aquele lugar não era apropriado para aquele tipo de funcionamento”, explica Luiza.

Os dois inquéritos já somam 14 volumes e quase quatro mil páginas e devem ser concluídos em fevereiro. Mesmo não tendo sido apurado um eventual crime, funcionários públicos podem ser indiciados por improbidade administrativa, mas é uma avaliação que será feita pelo Ministério Público após o recebimento do inquérito policial.

Segundo a delegada, o prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer não está entre os investigados e não tem relação com essa investigação. “O prefeito não foi ouvido nem como testemunha, nem como suspeito desse inquérito, e nem será, ele não tem nenhuma relação”, justificou a delegada, após reportagens publicadas no começo do mês atribuírem à ela justamente o contrário.

Incêndio na Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos

Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

 

 

Fonte: Terra
Compartilhar
Publicidade
Publicidade