'Todos os dias, aquele avião cai para nós': mãe relata a dor de perder a filha no voo Voepass 2283
No primeiro aniversário da queda do voo 2283, mãe de uma das vítimas relata a dor permanente e a luta por justiça
Era um dia como qualquer outro quando, há exatamente um ano, o voo 2283 da Voepass caiu no céu de Vinhedo (SP), silenciando para sempre as vozes de todos que estavam a bordo. Entre as vítimas, estava Arianne Risso, uma jovem médica de 34 anos, filha de Fátima Albuquerque, que hoje revive a dor, que ela mesma define de forma simples:
"Todos os dias, aquele avião cai para nós".
A frase evidencia um sofrimento infinito. A mãe não viu apenas um acidente aéreo na televisão -- viu a morte de sua filha. O dia da tragédia é fresco na memória de Fátima. Na noite anterior, Arianne falou com a mãe, mas a viagem não foi assunto.
"Ela não sabia que ia viajar naquele dia porque não tinha sido dispensada para poder viajar para o congresso". A despedida foi como sempre, com a mãe insistindo para que a filha descansasse. "Ela nunca desligava o telefone, ela nunca dizia um 'tchau'. Era sempre eu forçando ela a dormir".
No dia seguinte, foi uma manhã normal. Fátima voltou do trabalho e viu, na televisão, a queda do avião que partiu de Cascavel, onde a filha morava. Só quando recebeu ligação do genro que entendeu que a filha estava entre os passageiros.
"Eu deixava ele falar. Só queria saber se ela estava naquele avião. Aí, eu só gritava. Só gritava e gritava".
"O que a mãe faz? Vendo uma cena grotesca de uma filha sendo queimada ao vivo. Uma mãe grita".
A passagem do tempo não afetou Fátima. Não diminuiu a dor e nem afastou aquela memória. "Eu descrevo o luto como uma condição permanente de dor. Não tem processo, não tem reparação, não tem tempo. Só piora. Você aprende a viver naquela condição de sofrimento".
Mesmo assim, o amor persiste em gestos simples, em memórias que aquecem o coração. "Eu converso com ela a todo momento, passo pela foto dela, dou bom dia, boa tarde, 'minha filha, tudo bem? Ajuda aí a mãe, porque a mãe está aperreada'", conta Fátima.
O sonho de ser médica
Desde os nove anos, Arianne já sabia que seria médica. "Ela era uma menina nerd, que só estudava. Ela estudava música, tocava sete instrumentos, mas desde os nove anos só pesquisava sobre medicina porque queria trabalhar com pacientes dentro de UTI, pacientes de tratamento, cuidados paliativos". A dedicação era total: "Eu digo que ela já nasceu médica. A segunda pele dela era o pijama hospitalar. Era o que ela mais gostava, era o mundo dela, era a medicina".
A escolha por trabalhar em UTI foi pensada. Ela queria ajudar as pessoas que estavam em seus momentos finais da vida. "Queria ser a salvação das pessoas, apresentar a palavra de Jesus no momento mais difícil da vida delas".
Formada em 2015, Arianne logo se especializou em geriatria, passou em concursos públicos e chegou a coordenar um posto de saúde, com mais de dez médicos sob sua responsabilidade. Mas a paixão não parava por aí. Ela sonhava com a oncologia -- motivo pelo qual embarcou no voo 2283. "Ela estava indo a um congresso de oncologia em Curitiba, naquele dia estava voando para se aperfeiçoar ainda mais, porque era a vida dela estudar e servir ao próximo".
Busca por justiça
Para a mãe, a tragédia que tirou a vida de Arianne -- e de outros 61 passageiros -- não foi um acidente. Fátima acredita que a queda do voo 2283 foi uma tragédia anunciada. Ela aponta diretamente para as falhas da empresa e para a negligência da fiscalização. "Tudo aquilo poderia ter sido evitado. A empresa praticava vários crimes: fraude com peças, troca de peças quebradas, falsificação de documentos para enganar a Anac".
"Eles já tinham muitas provas, mas nada foi feito. A sensação é de dor, mas também de muita revolta".
Conforme o advogado que atua na representação das famílias, Luciano Katarinhuk, uma sucessão de fatores levaram à queda do avião. "Até escutamos de pilotos: o ATR (modelo da aeronave) não cai, derrubam ele".
Com isso, Katarinhuk ressalta que as famílias têm três demandas claras: que os responsáveis sejam identificados, denunciados e devidamente punidos, e que "isso nunca mais aconteça na aviação brasileira".
Em nota, a Voepass lamentou o acidente e afirmou que tem atuado de forma transparente junto às autoridades. Confira o posicionamento na íntegra:
"No dia 9 de agosto de 2024, vivemos o episódio mais difícil de nossa história. A queda do voo 2283, na região de Vinhedo (SP), resultou em perdas irreparáveis. Um ano depois, seguimos solidários às famílias das vítimas, compartilhando uma dor que permanece presente em nossa memória. Em mais de 30 anos de operações na aviação brasileira, jamais havíamos enfrentado um acidente.
A tragédia nos impactou profundamente e mobilizou toda a nossa estrutura, humana e institucional, para garantir apoio integral às famílias, nossa prioridade. Nas primeiras horas após o acidente, formamos um comitê de gestão de crise e trouxemos profissionais especializados — psicólogos, equipes de atendimento humanizado, autoridades públicas, seguradoras, além de suporte funerário e logístico.
Temos atuado de forma transparente junto às autoridades públicas e seguimos fortemente dedicados a resolução das questões indenizatórias o quanto antes, neste aspecto com estágio bastante avançado das indenizações restantes. Mantemos o suporte psicológico ativo e continuamos apoiando homenagens realizadas pelas famílias ao longo deste ano. Nos solidarizamos com toda a forma de homenagem às vítimas do acidente.
Sobre a apuração das causas do acidente, reiteramos nossa confiança no trabalho do CENIPA, com o qual temos colaborado desde o início das apurações, e reforçamos que a investigação de um acidente aéreo é um processo complexo, que envolve múltiplos fatores e requer tempo para ser conduzida de forma adequada. Somente o relatório final do CENIPA poderá apontar, de forma conclusiva, as causas do ocorrido. Cabe lembrar que o relatório preliminar divulgado pelo órgão em setembro de 2024 confirmou que a aeronave do voo 2283 estava com o Certificado de Verificação de Aeronavegabilidade (CVA) válido, e com todos os sistemas requeridos em funcionamento. A atuação da empresa esteve sempre pautada em padrões de segurança internacionais, contando inclusive com a certificação IOSA, um requisito de excelência operacional emitido apenas para empresas auditadas IATA, além de ter o acompanhamento periódico da ANAC como agência reguladora. Em três décadas de atuação, em um setor altamente regulado, a segurança dos passageiros e da tripulação sempre foi a prioridade máxima da companhia.
Agimos sempre com responsabilidade, humanidade e empatia. Nossa solidariedade permanece firme e com respeito e sensibilidade a dor dos familiares das vítimas, e com toda a sociedade brasileira."
Homenagem às vidas perdidas
Neste sábado, 9, quando a queda completa um ano, as famílias farão homenagem àqueles que se foram e a inauguração de um memorial em Vinhedo.
No avião, estavam Adriana Maria Santos, Adriano Daluca Bueno, Adrielle Costa, Alípio Camilo dos Santos, Ana Caroline Redivo, André Michel, Antônio Deoclides Zini Júnior, Adrianne Risso, Constantino Thé Maia, Daniela Schulz Fodra, Danilo Santos Romano, Débora Soper Ávila, Denilda Acordi, Deonir Secco, Diogo Boreira Ávila, Edilson Hobold, Eliane Andrade Freire, Gracinda Marina Castelo da Silva, Hadassa Maria da Silva, Hiales Fodra, Humberto de Campos Alencar, Isabella Pozzuoli, José Roberto Leonel Ferreira, José Carlos Copetti, José Cloves Arruda, Josgleidys Gonzalez, Joslan Perez, Kharine Gavlik Pessoa Zini, Laiana Vasatta, Leonardo Henrique da Silva, Liz Ibba dos Santos, Lucas Felipe Costa Camargo, Luciani Cavalcante, Luciano Trindade Alves, Maria Auxiliadora Vaz de Arruda, Maria Parra, Maria Valdete Bartnik, Mariana Comarian Belim, Mauro Bedin, Mauro Junior Zeczkowski Sguarizi, Miguel Arcanjo Rodrigues Júnior, Nélvio José Hubner, Paulo Henrqie Silva Alves, Pedro Gusson do Nascimento, Rafael Alves, Raphael Bohne, Rafael Fernando dos Santos, Raquel Ribeiro Moreira, Regiclaudio Freitas, Renato Brtinik, Renato Lima, Ronaldo Cavaliere, Rosana Santos Xavier, Rosangela Maria de Oliveira, Rosangela Souza, Rubia Silva de Lima, Sarah Sella Langer, Silvia Cristina Osaki, Simone Mirian Rizental, Thiago Almeida Paula, Tiago Azevedo e Wlisses Oliveira.