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'Plano Diretor exclui principais demandas de urbanismo das favelas'; leia artigo

Arquiteta Ester Carro afirma que planejamento urbano desempenha papel crucial no combate ao racismo estrutural e que centros das favelas precisam ser vistos como áreas estratégicas

17 out 2023 - 20h10
(atualizado em 18/10/2023 às 16h51)
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São Paulo é plural, diversa, por décadas, projetos são elaborados, espaços são edificados e alterados, grande parte visando os interesses de uma classe populacional específica. O resultado disso é notório: quando se anda pelas ruas da capital paulista o contraste da paisagem urbana é gritante, de um lado as favelas; do outro, os "bairros" separados por muros e fronteiras invisíveis próximas uma da outra, mas distantes do acesso à educação, à infraestrutura básica, à moradia digna, ao saneamento.

É necessário que estes espaços sejam mais utilizados e democratizados com diferentes atividades que atendam às diferentes idades, dizem os grandes pensadores, sobre os espaços públicos. Mas o que fazemos quando o abandono, a sujeira, a falta de mobiliário, como bancos e luminárias, permeiam os poucos espaços livres das favelas? O que fazemos quando sabemos que mais de 60% das moradias nesses territórios não possui um quintal? O que fazemos quando, por falta de zeladoria pública, esses espaços são frequentados por consumidores de drogas e atividades ilícitas?

Muitas moradias em favelas foram construídas no regime de autoconstrução com materiais improvisados, sem auxílio técnico resultando em estruturas instáveis que são vulneráveis a desastres naturais e acidentes. A ausência de posse adequada da terra agrava ainda mais a insegurança da habitação nas favelas, tornando os moradores vulneráveis a despejos forçados. Esforços para melhorar as condições de habitação nas favelas têm sido feitos nos últimos anos, principalmente por organizações sociais, mas permanecem os desafios significativos na garantia de habitação segura, acessível e digna para todos.

O Plano Diretor, que norteia as principais decisões do planejamento urbano das cidades brasileiras, passou recentemente por um processo de revisão e, mais uma vez, excluiu as principais demandas das favelas. É o planejamento urbano que desempenha um papel crucial na abordagem das desigualdades e no combate ao racismo estrutural nas cidades. Ao adotar estratégias intencionais, o planejamento urbano pode contribuir para a criação de comunidades mais equitativas e inclusivas, como se verá a seguir.

Na revisão, o Plano Diretor reconhece a urgência de abordar o déficit acumulado e as futuras necessidades de habitação social. Como parte da sua estratégia, o plano visa reservar lotes e terrenos em áreas equipadas com infraestrutura urbana e transporte público nas áreas centrais. Ao localizar estrategicamente estas áreas, os moradores terão melhor acesso a serviços essenciais e opções de transporte.

Entretanto a população da periferia possui vínculos territoriais e familiares e está cansada de ter que percorrer longas distâncias em busca de serviços, oportunidades e comodidades básicas. Os centros das favelas também precisam ser enxergados como áreas estratégicas e de alternativas para o planejamento urbano. Antes mesmo de existir a fachada ativa (corresponde à ocupação da fachada localizada no alinhamento de passeios públicos por uso não residencial com acesso aberto à população e abertura para o logradouro), os moradores das favelas já traziam soluções como meio de sobrevivência com a parte comercial no térreo e habitação nos demais andares, fomentando a geração de renda local.

A construção de habitação social nas proximidades das favelas pode ajudar a prevenir o deslocamento das comunidades existentes, além de reduzir as desigualdades, proporcionar qualidade de vida e fortalecer o senso de comunidade.

Poucas foram as discussões relacionadas à recuperação ambiental. As propostas não podem ficar apenas na promoção de mais áreas verdes, sugeridas na revisão do Plano Diretor. É urgente falarmos de zeladoria de forma minuciosa em cada favela, a ausência de serviços de manutenção resulta na deterioração das condições de vida e em ambientes inseguros. As favelas muitas vezes não têm acesso a reparos essenciais, como o conserto de infraestruturas quebradas, problemas de encanamento ou manutenção de áreas comuns. Quando os serviços básicos não são prestados adequadamente, reforça a marginalização vivida pelos moradores.

Seguindo nesta linha de uma leitura mais precisa dos diferentes territórios, são necessárias a realização de ações rápidas nas áreas de risco em favelas e encostas para evitar os deslizamentos de terra, inundações ou instabilidade estrutural, reforçando uma fiscalização efetiva e contínua com soluções de curto prazo, além de mitigar os riscos com melhorias na infraestrutura, sistemas de drenagem eficazes e construção de novas moradias.

Também é importante o envolvimento comunitário para aumentar a conscientização sobre os riscos e promover a participação da comunidade nos esforços de redução de riscos, desde incentivá-los a comunicar potenciais perigos e envolvê-los no desenvolvimento e implementação de estratégias.

A participação popular nas tomadas de decisões e nas ações que são realizadas é de extrema importância para que se possa conciliar as demandas e desejos da sociedade com as necessidades de interesse público, favorecendo, inclusive, a transparência e a disponibilização de informações. A participação popular, na forma mencionada acima, diminui o risco de bons projetos públicos e privados serem destruídos ao longo dos anos e serem objeto de reprovação por parte dos moradores pela falta de pertencimento.

A história das nossas cidades precisa ser preservada e resgatada, seja nas favelas, vilas e/ou em bairros históricos, com ações que visem intervir adequando os padrões urbanísticos existentes, considerando os valores socialmente construídos, muitas vezes há décadas. Principalmente, porque são esses valores, historicamente traçados, que desvendam caminhos para as intervenções evitando-se a importação de ideias da "cidade do mercado" ou a criação de uma "beleza" que pode não ser reconhecida pelos diferentes grupos sociais.

Ter uma lei de zoneamento que determine o uso do solo em diferentes áreas é apenas uma peça do quebra-cabeças quando se trata de planejamento e desenvolvimento urbano. Embora as leis de zoneamento possam ser úteis na organização e orientação do uso da terra, elas são ineficazes sem ações e projetos integrados que apoiem a sua implementação e trabalhem de forma colaborativa em direção a uma visão comum. Nosso tecido urbano precisa ser visto e analisado de maneira holística, não apenas por categorias, sem considerar as características únicas e o contexto das favelas.

Oportunidades podem quebrar ciclo de violência nas áreas periféricas

Uma análise integrada incorpora o contexto local, incluindo o patrimônio histórico, o significado cultural, as características naturais e as preferências da comunidade, permite uma compreensão mais matizada do tecido urbano e garante que as intervenções de desenvolvimento sejam sensíveis à identidade e ao caráter local, reconhecendo a importância da inclusão e da diversidade na criação de favelas vibrantes e coesas.

Ninguém quer morar em favelas, mas querem ditar as regras, querem escondê-las com muros. A favela deveria ter o poder legítimo da palavra para a condução de políticas no Brasil; a solução, o conhecimento, a experiência e a vivência estão aqui!

Por fim, as favelas são parte integrante das áreas urbanas e o seu desenvolvimento não pode ser negligenciado. Elas precisam ser um item de destaque no Plano Diretor, na agenda dos formuladores de políticas públicas e da sociedade como um todo. Ao investir no desenvolvimento social e proporcionar oportunidades, o ciclo de violência pode ser quebrado, as vozes dos moradores serão reconhecidas dando destaque à sua resiliência, força e cultura.

* Ester Carro é arquiteta, ativista, mestre em planejamento urbano, especialista em urbanismo social e habitação e cidade e presidente do Instituto Fazendinhando

Estadão
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