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Morte na USP faz 20 anos. E mãe pede justiça

Professora Yen ainda busca respostas para morte do filho, que se afogou durante trote

23 fev 2019 - 03h10
(atualizado em 27/2/2019 às 08h19)
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Eram 8h20 de 23 de fevereiro de 1999 quando a polícia chegou ao local. "Condições climáticas: clima seco, temperatura amena, cerca de 25 graus", tomou notas um perito. Ele continuou a descrição: "O cadáver encontrava-se imobilizado sobre piso cimentado na margem de uma piscina localizada no fundo do Clube Osvaldo Cruz. Foi retirado da água pelo Corpo de Bombeiros. Vestimentas: compunha-se de calça de moletom vinho/cinza e cueca branca."

Cabelos pretos e lisos, oriental, cerca de 1,75 metro, compleição física mediana, descreveu o perito. O cadáver em questão era de Edison Tsung Chi Hsueh, então com 22 anos, calouro do curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que durante o trote e afogou na piscina da Atlética. A polícia recolheu um relógio de pulso da marca G-Shock, com mostrador digital e pulseira preta, que a vítima usava.

Duas décadas após a morte de Hsueh, com o processo arquivado na Justiça, a mãe e professora Yen Yin Hwa Hsueh, de 74 anos, ainda sonha com justiça e pede a reabertura do caso. Em 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que não havia provas suficientes para punição dos quatro acusados, então estudantes, hoje médicos. Com a decisão, que manteve o mesmo entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), eles foram absolvidos.

"Vinte anos depois e ainda não sei o que aconteceu com o meu filho. Depois de tanto tempo, eu só queria as fitas das filmagens que sumiram e nos prometeram", diz a mãe. "Precisamos de justiça. Abafaram o caso."

O Estado localizou Yen Yin Hwa em uma espremida loja de presentes no Alto da Boa Vista, zona sul de São Paulo. Arranjos artificiais de flores, sombrinhas, brinquedos, tapetes : vende-se de tudo ali. Ela é a dona e única funcionária do estabelecimento, que não tem placa, apenas numeração. No alto da porta de entrada, papéis A4 com os dizeres "Aluga-se". Ela está tentando alugar há 10 anos.

A princípio, relutou em conversar pessoalmente. Por telefone, disse: "Quero ficar quieta. Se eu falar, vou ficar com a cabeça ruim. É muito triste". Mas ontem topou conversar e por uma hora desabafou. "É bom tirar do coração o que está preso. Precisava falar".

Yen Yin Hwa mora sozinha em Santo Amaro e não tem com quem conversar. O filho do meio, Emílio Hsueh, é engenheiro e mora em Jundiaí. O mais velho mora nos Estados Unidos, com a esposa e a filha, neta de Yen Yin.

O pai do calouro faleceu em 2008. "Ele já não comia. Ficou magro e doente. E morreu de depressão. Tudo por causa do meu filho que já foi", diz ela. "O pai vinha no Ministério Público quase todo dia. Não se conformava", conta a promotora responsável pela denúncia, Eliana Passarelli.

Para a mãe, parece que Edison foi só fazer uma viagem e logo volta. "Fico pensando que meu filho caçula está viajando para longe. Quando qualquer coisa quebrava, ele consertava para mim. Ele era muito carinhoso com a gente. Não precisa levar para a escola porque ele próprio ia. Se meu filho tivesse vivo, a família estaria saudável, diz Yen Yin Hwa.

Ela conta que sente raiva da Justiça e da USP. E considera injusto nunca ter recebido indenização. "O dinheiro não seria para mim. Eu queria indenização para poder fazer alguma coisa para ajudar pessoas a não sofrerem."

'Desumanos'

Uma das promotoras que atuaram no caso, Eliana Passarelli, diz ter sido ameaçada, inclusive de morte, na época que investigava o caso. Segundo ela, os filhos à época com 12 e 14 anos receberam ameaças de sequestro na escola. Ela não sabe, no entanto, os autores das ameaças. E diz que nunca denunciou por considerar que não valeria a pena, embora afirme ter notificado a Casa Militar do MPSP e o procurador geral do Estadao da época. "Era uma forma de me fazer perder o foco do trabalho", diz.

"Eu não confiaria a minha vida a essas pessoas. Na época, eu brincava e falava que se passasse mal no Fórum ninguém me levasse para o Hospital das Clínicas. Porque todos os médicos queriam me ver morta", conta. A postura da comunidade médica, afirma Eliana, foi "totalmente corporativista" no caso.

"Professores deram declarações e depois se desdisseram totalmente. Eles chegaram a fazer passeata na porta do Fórum porque foram contra a gente ter feito a denúncia. Chegou a ser até ridículo e desumano". Eliana acredita ainda que houve lentidão da Justiça na investigação do caso. "Foram dois anos para a gente oferecer a denúncia. Eu achava as provas mais do que suficientes. O que houve foi falta de vontade de julgar", afirma.

'Sombra'

Na denúncia oferecida pelo MPE à Justiça foram acusados quatro veteranos, hoje médicos: Frederico Carlos Jaña Neto (o Ceará), Ary de Azevedo Marques Neto, Guilherme Novita Garcia e Luís Eduardo Passarelli, o Tirico. Ceará foi o único estudante preso, por cinco dias, em 1999. O mandado de prisão ocorreu após a gravação de um vídeo em que dizia, em tom de brincadeira: "Eu sou o assassino do calouro da USP. Eu matei o japonês afogado".

José Roberto Batochio, advogado de Jaña Neto e Marques Neto, disse que o processo foi "justamente arquivado". "Foi um acidente igual ao que acontece mensalmente em clubes do Brasil e piscinas residenciais", afirma ele.

Tirico é hoje médico do esporte e ortopedista, com clínica no Itaim Bibi, zona sul de São Paulo. Novita Garcia é especialista em mastologia e atende em uma clínica na Bela Vista, no centro. Jaña Neto é ortopedista e atende na região de Higienópolis. Marques Neto é cirurgião plástico e tem clínica com seu nome, no Jardim América. Chegou a ser nomeado médico preceptor da Disciplina de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da USP.

Procurado, o delegado do Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) que investigou o caso, Marcelo Damas, não quis falar. A presidência da atual Atlética não respondeu. O Estado também procurou Luís Passarelli, mas não obteve retorno. O advogado Aloíso Lacerda Medeiros, que atuou na defesa de Novita Garcia, não foi localizado.

Universidade decidiu proibir trote em todos os campi

A Universidade de São Paulo (USP), em nota, destacou que desde o episódio do calouro morto na piscina, a instituição proíbe trotes em quaisquer câmpus universitários. Um Disque -Trote foi criado um ano após a morte do estudante para receber denúncias de trotes violentos. Neste ano, duas décadas após a tragédia, a instituição lançou também um aplicativo.

A sindicância feita pela Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) concluiu que não houve responsáveis diretos pela morte de Hsueh. Em nota, a faculdade informou que em dezembro de 2014 reforçou, por meio de três portarias, o veto ao "trote ou qualquer atividade que atente contra a integridade física e moral, além da proibição do comércio e consumo de álcool em quaisquer atividades relacionadas à recepção dos calouros, interna e externa do câmpus".

Além disso, informa a faculdade, "todas as atividades de recepção aos calouros são organizadas e têm proposta detalhada aprovada pela Comissão de Integração da FMUSP".

Segundo a faculdade, também foram criados espaços que dispõem de serviços e programas voltados para o suporte dos alunos. "É uma rede interligada para o acolhimento, providências e acompanhamento, visando ao bem-estar e à integridade de todos que fazem parte da instituição", informa.

Estupros

Nos últimos anos, a Faculdade de Medicina da USP se viu envolvida em nova polêmica, desta vez relacionada a abusos sexuais em festas universitárias. Em 2014, alunas da unidade denunciaram terem sido estupradas em festas promovidas por estudantes da instituição. As denúncias motivaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa e investigação do Ministério Público Estadual.

Estadão
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