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Assalto em Araçatuba tem traços do 'novo cangaço' e mostra sofisticação dos bandidos; leia análise

O cangaço tinha demandas sociais e uma relação com a população, que muitas vezes os acobertavam. No modo atual, a população só sai prejudicada

30 ago 2021 - 19h36
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O ataque a três agências bancárias de Araçatuba na madrugada desta segunda-feira, 30, tem traços do novo cangaço, termo criado por delegados de Polícia da região Nordeste entre o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. A denominação faz referência a ocorrências marcadas pelo enfrentamento direto a instituições de segurança pública. O roubo também guarda semelhanças com os assaltos a instituições financeiras registrados em Criciúma (Santa Catarina) e Cametá (Pará), no final do ano passado.

Os crimes relacionados ao novo cangaço geralmente acontecem em cidades de pequeno e médio porte e surgiram pela primeira vez no Nordeste. Eles são praticados em grandes grupos de assaltantes a bordo de quatro ou mais veículos que chegam ao município durante a madrugada. Há uma divisão de tarefas da equipe: uma parte vai para as bases das forças de segurança pública, como delegacias e quartéis, e sitiam os profissionais; outra parte se dirige à região da cidade onde estão concentradas as agências bancárias.

A principal característica é essa audácia no enfrentamento a instituições de segurança. Em outras modalidades de crime, o mais recorrente é a tentativa de evitar confrontos e fugir da polícia. No novo cangaço, há uma atitude no sentido de render quartéis e obstruir a entrada da cidade, impedindo a chegada de reforço policial.

Essas ações são assim denominadas porque não se via esse enfrentamento à polícia desde a época dos bandos de cangaceiros que atuavam no Nordeste e no norte de Minas Gerais nas primeiras décadas do século 20. Há, de fato, pontos em comum entre esse tipo de assalto e o antigo cangaço, mas também existem discrepâncias.

O cangaço tinha demandas sociais e uma relação com a população, que muitas vezes os acobertavam. No modo atual, a população só sai prejudicada. O único gesto favorável à população nesse tipo de crime foi visto em Criciúma, quando os bandidos deixaram um malote de dinheiro nas ruas. O movimento serviu para atrapalhar o trabalho dos policiais e causar tumulto.

Outra característica do roubo em Araçatuba é a sofisticação das técnicas e o aumento da sensação de terror. Nos anos 2000, grandes assaltos eram realizados a partir de abordagens mais silenciosas e que evitavam o confronto. As ações consistiam no sequestro das famílias dos gerentes e tesoureiros das instituições financeiras. As quadrilhas entravam nas agências antes da abertura para o atendimento ao público e sacavam todo o dinheiro.

Amarrados em carros, reféns foram feitos de 'escudo humano' para impedir ataques da polícia contra os criminosos.  
Amarrados em carros, reféns foram feitos de 'escudo humano' para impedir ataques da polícia contra os criminosos.
Foto: Reprodução/Twitter / Estadão

A partir disso, os bancos passaram a adotar uma série de medidas como o treinamento de seus seguranças e a formulação de ações estratégicas. Hoje, os cofres só abrem em determinado horário, que varia a cada dia. Por isso, os criminosos só conseguem acessar o dinheiro usando explosivos. Ficou mais difícil realizar assaltos com abordagens mais discretas e até burlescas como as das décadas de 1990 e 2000.

No roubo desta segunda-feira, foram usadas técnicas que causam terror e prejuízos materiais e psicológicos ao município e aos moradores. Eles transformaram a cidade em uma espécie de campo minado. É uma evolução tecnológica que busca, sobretudo, evitar a chegada da polícia. Um crime visivelmente planejado a cada passo, por pessoas que têm visão estratégica, e que vai se aperfeiçoando a cada nova ocorrência.

Além da distribuição de explosivos pela cidade, outra novidade desse ataque foi o uso de reféns como escudo no capô dos carros e não apenas em volta dos bandidos ou dentro dos veículos. Isso foi feito para evitar os disparos que poderiam vir de prédios ou de helicópteros. A estratégia do escudo humano passa a ser tridimensional.

Não podemos afirmar que essas características vão se manter em ocorrências futuras, mas percebemos que o contexto e o local de uso dos explosivos têm se estendido cada vez mais. Os assaltos estão se tornando cada vez mais arriscados e potencialmente letais aos habitantes da cidade. E se mostra cada vez menos recomendável a interferência e a reação imediata da polícia ou de civis armados.

*Antropóloga, professora da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do Novo Cangaço

Estadão
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