Alice Ferraz: Superando a insegurança vocal em uma jornada inspiradora
Talvez seja o caso de confiar nas transformações que a vida propõe, Alice
A professora Neusa chegou à sala ofegante, estávamos atrasados para o ensaio de final de ano do Colégio Porto Seguro. "Vamos todos para o pátio para que eu possa ouvir melhor vocês", falou ela. E, assim, os mais de 40 alunos seguiram em fila animados para o último ensaio de música antes da apresentação de fim de ano. Eu era a menor da classe e satisfeita em ser a primeira da fila. "Agora, quero ver o talento de vocês, vamos cantar alto", disse em voz de comando. Eu, feliz com tudo aquilo, cantei com todo o empenho, ao que ouço: "Alice, por favor, cante mais baixo". Intrigada, fiz cara de quem não entendeu. "Sua voz não está compondo no grupo, cante bem baixinho." Não lembro quantos anos tinha, entre 7 e 9 talvez, mas recordo da sensação de queda, uma tontura, uma vermelhidão subindo pelo corpo.
Eu bem sabia que minha voz não era bonita. Meu pai, militar a para quem tenho muito mais elogios do que críticas, sempre fez questão de dizer que eu soava "um pouco como uma taquara rachada". Coisas de pais sinceros demais da década de 1980. Mas até a dona Neusa? Percebi naquele momento que era oficial: minha voz era feia e nada poderia ser feito. Quando cheguei em casa chorei, não quis mais ir à aula de música e segui a vida.
No começo da minha carreira profissional, ainda com ecos da situação, procurei um fonoaudiólogo para me ajudar a melhorar meu tom de voz. Uma pessoa de comunicação não poderia ter uma voz desagradável a esse ponto, pensei. Tive cerca de dez aulas e, nesse processo, a professora insistia que a minha voz era normal, embora não conseguisse me convencer. A cada aula sentia uma melhora e achei que valeu a pena o esforço. Vinte anos se passaram até que, alguns meses atrás, recebi um convite inusitado de trabalho: "Alice, venha conhecer nosso espaço e fazer uma aula de canto!". Era a mensagem de uma cliente que também possui um ótimo estúdio de dança. Ecos do cmte. Ferraz e de dona Neusa gritaram novamente: "Não se atreva a dar esse passo". Cheguei a obedecer aos dois por algum tempo, mas decidi com valentia me dar uma terceira chance e ser, quem sabe, absolvida da maldição da voz da taquara rachada.
Chegando lá, conversei um pouco com o professor que, graças a Deus, não se parecia em nada com a dona Neusa e delicadamente sugeriu algumas músicas para nossa primeira aula. "Que tal irmos de Tempos Modernos, de Lulu Santos?", disparou ele. Fiquei atônita, ele não tinha mesmo noção do meu passado. Talvez o trabalho com a fonoaudióloga tivesse realmente feito efeito e, falando, minha voz não deveria parecer tão ruim. Mas daí para sair cantando Lulu era demais. Resolvi arriscar. De nota em nota, naveguei com cuidado pela poesia de Lulu e sua "vida melhor no futuro, clara, farta e repleta de satisfação". Pois é, talvez seja o caso de confiar nas transformações que a vida propõe e deixar Alice cantar. Ah, e meu professor, ainda alheio ao meu histórico antes de ler essa crônica, me deu 10 na primeira aula e disse para continuar, que eu tenho um "bom timbre".