Alice Ferraz: Luto
E por que falar do luto agora, Alice? Porque na última semana vi a palavra luto ser usada de forma deturpada e leviana por tantas tantas vezes que me revoltei
"Não tenho medo de morrer", disse uma grande amiga minha já aos 88 anos. "Tenho é pena, porque amo os sabores da vida", completou com sua habitual sabedoria. E, quando ela morreu, durante meses em meu luto diário, eu lembrava de suas palavras, de seu gosto pela vida, e dos gostos que ela me ensinou.
Nessa época, o luto e seus efeitos colaterais já me eram conhecidos. Primeiro sintoma, a anestesia completa de sentidos. A dor que se parece não existir, tamanho buraco deixado pela presença de quem se faz fisicamente ausente. Digo fisicamente, porque quem morre se faz por muito tempo ainda mais presente, seu olhar, seu cheiro, seu toque, sobrevivem por meses, anos décadas, às vezes pra sempre.
Trabalhar, falar comer, dormir sem sentir gostos, alegrias nem tristezas, existir sem sentido faz parte do luto. Vivi cada fase com a morte do meu pai e me recuperei de forma lenta. Hoje, mesmo tendo acontecido esse sentimento há 22 anos, posso reconhecer a sensação ao fechar os olhos.
Já senti também a perda de animais de estimação, uma dor que me durante anos não querer ais tê-los. Mudei de ideia por puro egoísmo sou refém do amor incondicional que sempre recebi dessas delicadas almas.
E por que falar do luto agora, Alice? Porque na última semana vi a palavra luto ser usada de forma deturpada e leviana por tantas tantas vezes que me revoltei. Sinto vergonha ao pensar que adultos que já perderam pessoas que acabam podem comparar a dor da perda da vida com a dor de uma derrota política.
Ficar triste, ficar bravo, indicando, bater o pé, expor seu momento de desilusão de forma às vezes torta, vá lá, mas dizer que está de luto, não. Como dizia o filósofo austríaco naturalizado inglês Wittgenstein, "o limite da nossa linguagem constrói o limite do nosso mundo e o uso da linguagem expande ou restringe quem somos".
O significado de uma palavra está em sua utilização e tem o poder de transformar o sentido da vida. O luto é um sentimento devastador, a perda de uma vida que amamos é uma coisa séria. Restringir o entendimento desses momentos é apequenar também a consciência do amor, da perda, da finitude da vida, do que nos faz humanos.