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Violência invisível: a dor silenciosa das mulheres indígenas no Brasil

Falta de dados precisos e atualizados sobre a violência sofrida pelas mulheres indígenas impede a compreensão do problema e a formulação de

30 abr 2023 - 05h00
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Mulheres indígenas também enfrentam dificuldades para denunciar seus agressores
Mulheres indígenas também enfrentam dificuldades para denunciar seus agressores
Foto: Anna Shevchuk / Pexels

Embora a violência de gênero seja um tema amplamente discutido na sociedade, pouco se fala sobre as agressões vivenciadas pelas mulheres indígenas, dentro e fora das aldeias. Em meio às diversas desigualdades históricas enfrentadas por esses povos, a violência contra mulheres originárias é um problema urgente e alarmante. A presença do garimpo ilegal em terras indígenas e a negligência do Estado são apenas alguns dos fatores que agravam a situação. Mas o problema não para por aí. O apagamento dessas mulheres na sociedade e a falta de dados precisos e confiáveis sobre a violência que sofrem tornam essa realidade ainda mais invisível.

Mato Grosso do Sul à frente da violência

Assim como acontece com a maioria das mulheres em situação de violência doméstica, as mulheres indígenas também enfrentam dificuldades para denunciar seus agressores. Isso se deve ao medo, à vergonha, ao temor de represálias por parte da família ou à falta de recursos financeiros para manter o lar na ausência do homem. As ameaças são o tipo de crime mais comumente reportado pelas mulheres adultas, enquanto que os crimes sexuais afetam principalmente as adolescentes e jovens. De acordo com levantamento realizado em 2019 pela Subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres do Mato Grosso do Sul (MS), das 30 vítimas de feminicídio registradas, cinco eram mulheres indígenas. A chamada 'terra morena' abriga a segunda maior população indígena do país.

Com o objetivo de conscientizar as mulheres das etnias Guarani e Terena - que representam a maioria da população - sobre seus direitos e encorajá-las a denunciar a violência sofrida, a Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul, através do NUDEM (Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher), criou cartilhas contendo informações e orientações sobre a Lei Maria da Penha. A iniciativa tem como finalidade proporcionar maior conhecimento sobre a lei que protege as mulheres contra a violência doméstica e familiar, e assim, ajudá-las a reconhecer situações de violência e buscar ajuda. Porém, não existem registros de como a distribuição foi feita e se houve efetividade.

Um grupo de mulheres indígenas Guarani e Kaiowá, também do estado de Mato Grosso do Sul, realizou um mapeamento coletivo da violência contra mulheres em seus territórios, intitulado "Corpos silenciados, vozes presentes: A violência no olhar das Mulheres Kaiowá e Guarani". A ação é uma demanda da Grande Assembleia de Mulheres Kuñangue Aty Guasu, que visa trazer à tona a realidade vivida pelas mulheres indígenas em sua região. A equipe, formada por mulheres de diferentes partes do estado, realizou entrevistas e visitas in loco a áreas de retomadas e terras indígenas, de 2017 a 2020. Os resultados do mapeamento revelam diversas formas de violência física e psicológica, torturas, massacres, preconceitos, humilhações, violência patrimonial e ameaças, incluindo assassinatos de líderes mulheres. As instituições e pessoas responsáveis por essas violências incluem maridos, namorados, equipes do capitão, jagunços, polícia, instituições públicas e universidades.

A Kuñangue Aty Guasu, conselho formado por mulheres indígenas, realizou uma pesquisa com depoimentos de mulheres que sofreram abuso sexual dentro de suas próprias casas por familiares próximos, como pai, tio ou padrasto. Muitas delas carregam até hoje o trauma e o medo dos abusos, mas relatam dificuldades em falar sobre o assunto e denunciar, muitas vezes por estarem sozinhas e vulneráveis durante o abuso. Além disso, a violência sexual ainda é um tabu nas comunidades indígenas, o que faz com que muitas vítimas não denunciem por medo de serem mal faladas ou por receio das ameaças que sofrem. A pesquisa também destacou a importância de se ganhar a confiança das mães para que casos de abuso sexual possam ser denunciados e combatidos.

O depoimento de uma senhora da etnia Guarani-Ñandeva, que mora na Aldeia Bororó, mas não quis que o seu nome fosse divulgado, ilustra esse ponto: uma de suas sobrinhas foi abusada sexualmente e maltratada, recolhida pelo Conselho Tutelar e hoje vive em abrigo. Ela disse ter percebido que o comportamento da menina mudava quando ela olhava para o autor dos abusos. Ela baixava a cabeça, sentia tristeza. Quando certo dia a a menina contou, então a família procurou ajuda e a jovem ela foi recolhida: “Pessoa como esse homem que maltratou a minha sobrinha é um bicho para mim, ele aproveitou e chantageou uma menina indefesa. Que a mão de Deus faça justiça na vida desse homem”. 

Negligência constante

O relatório "Violência contra os povos indígenas do Brasil", publicado em 2021 pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), apontou um aumento significativo dos diversos tipos de violência contra os povos indígenas em todo o país. No entanto, os números da edição não estão atualizados, já que a pesquisa deveria ser realizada anualmente, mas não ocorre há dois anos. Os dados são alarmantes e mostram, revelando uma realidade de crueldade e desumanidade, como os casos de Raíssa, uma Guarani Kaiowá de apenas 11 anos, que foi alcoolizada, abusada sexualmente por cinco pessoas e atirada de um penhasco no Mato Grosso do Sul, e Daiane Kaingang, uma jovem de apenas 14 anos estuprada, assassinada e encontrada dilacerada dias depois na Terra Indígena Guarita, no Rio Grande do Sul.

Para Pietra Dolamita, primeira mestra indígena formada pela Universidade Federal de Pelotas, Estado deve ser responsabilizado
Para Pietra Dolamita, primeira mestra indígena formada pela Universidade Federal de Pelotas, Estado deve ser responsabilizado
Foto: Guiga Narciso/ Reprodução Instagram

Segundo Pietra Dolamita (Kowawa Apurinã), ativista indígena, antropóloga e arte educadora que atua em prol da demarcação das terras indígenas, o Estado é responsável pela violência sofrida pelas mulheres e crianças indígenas. "Não são somente os garimpeiros que estão estuprando e matando as crianças e as mulheres indígenas. É o Estado que está fazendo isso. É a mão do Estado que coloca todo esse peso sobre nós. Não há proteção legal para nossos corpos. Quando leis são criadas, elas não nos abrangem porque as mulheres indígenas sempre foram relegadas a uma posição precária diante de qualquer movimento feminista, igualitário ou social", afirma Pietra.

Abusadores garimpeiros

A invasão garimpeira tem tido um impacto devastador sobre as mulheres indígenas, levando a um aumento alarmante de casos de abuso sexual e violência. 

Segundo Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, a situação é devastadora e segue se agravando. "Os garimpeiros oferecem bebidas alcoólicas para jovens e as estupram, estão violentando mulheres e crianças aqui. Estamos sofrendo, vivendo em um ambiente completamente vulnerável, e eles estão trazendo vícios para dentro das nossas aldeias e se aproveitando da nossa inocência. É uma situação caótica e insustentável". 

No Pará, garimpeiros que atuam ilegalmente na Terra Indígena Munduruku atacaram a sede de uma associação de mulheres indígenas, fizeram ameaças de morte e chegaram a queimar a casa de uma delas. 

A busca por números e dados sobre violência contra mulheres indígenas é uma tarefa complexa, muitas vezes dificultada pela falta de registros oficiais e pela cultura do silêncio presente em muitas comunidades. No entanto, é fundamental que essa realidade seja transformada e que medidas efetivas sejam tomadas para proteger essas mulheres e garantir que seus direitos sejam respeitados. É preciso romper com o ciclo de violência e oferecer suporte emocional e jurídico para as vítimas, além de garantir que os agressores sejam responsabilizados pelos seus atos. 

A Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) expressou sua indignação diante da situação e pediu o fim da violência contra as mulheres indígenas. 

"Temos visto dia após dia o assassinato de indígenas, mas parece que não é suficiente matar. O requinte de crueldade é o que dilacera nossa alma. Esquartejam corpos jovens, de mulheres, de povos. Entendemos que os conjuntos de violência cometidas a nós, mulheres indígenas, desde a invasão do Brasil, é uma fria tentativa de nos exterminar, com crimes hediondos que sangram nossa alma. A desumanidade exposta em corpos femininos indígenas precisa parar", publicou a organização, em nota. 

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Fonte: Redação Nós
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