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Sem banho quente durante menstruação e gravidez, mulheres presas sofrem violência de gênero

Mulheres encarceradas são proibidas de tomar banho quente até durante a menstruação. Ativista denuncia violência humana e de gênero.

16 set 2022 - 05h00
(atualizado às 10h35)
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Banheiro em cela na penitenciaria de Mogi Guaçu não tem chuveiro.
Banheiro em cela na penitenciaria de Mogi Guaçu não tem chuveiro.
Foto: Defensoria Pública/Divulgação

Karine Vieira, fundadora da ONG Responsa, esteve presa no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em São Paulo, numa cela com outras 24 mulheres. O ano era 2005 e as detentas não podiam tomar banho quente, salvo quando tinham um problema grave de saúde, atestado pela equipe médica. Nem mesmo quando estavam menstruadas era possível tomar banho aquecido. “Quem não estava doente, acabava ficando. O banho frio deixava a gente com cólica. Era uma situação desumana”, contou. A proibição de banhos quentes nas unidades prisionais paulistas virou tema de ação judicial apresentada pela Defensoria Pública de São Paulo, em trâmite desde 2013. Ou seja, desde o ingresso de Karine até hoje, foram 17 anos de milhares de mulheres sem acesso a banho em condições adequadas. Se levarmos em conta as milhares de mulheres que ingressaram no sistema antes disso, e as demais unidades prisionais Brasil afora, temos um ato de crueldade reproduzido em massa e de forma institucionalizada no País.

Rosilda Ribeiro, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária para a questão da Mulher Encarcerada, visita mulheres em unidades prisionais de todo o País
Rosilda Ribeiro, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária para a questão da Mulher Encarcerada, visita mulheres em unidades prisionais de todo o País
Foto: Rosilda Ribeiro/Pastoral Carcerária

No Estado de São Paulo, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) informou que atualmente todas as unidades prisionais, masculinas e femininas, contam com chuveiro quente para as pessoas encarceradas (confira nota na íntegra abaixo). Mas a adequação só aconteceu em 2021, depois da 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve decisão que obriga o governo de São Paulo a fornecer banhos quentes a todos os detentos do estado. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo mostrou no relatório “Inspeções em presídios durante a pandemia da Covid-19”, divulgado em abril deste ano que o que o Estado vem fazendo, na verdade, é colocar quatro chuveiros quentes nos pátios das unidades prisionais e não nos alojamentos, onde as pessoas “moram”. 

O banho quente e o acesso à água é um dos itens garantidos nas “Regras de Mandela”, as Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Presos. Segundo relatório em 70,4% das unidades prisionais inspecionadas, havia a prática ilegal de racionamento de água. Na época, com exceção da Penitenciária Feminina da Capital, nenhuma unidade feminina prisional oferecia banho quente para todas as presas. No CDP de Franco da Rocha, por exemplo, a equipe só encontrou um chuveiro único chuveiro quente, no setor da enfermaria. As presas relataram ficar até 7 dias sem acesso à água, o que impedia a higiene íntima, inclusive no período menstrual. 

Pastoral Carcerária para a questão da Mulher Encarcerada denuncia violência humana e de gênero em unidades prisionais do País
Pastoral Carcerária para a questão da Mulher Encarcerada denuncia violência humana e de gênero em unidades prisionais do País
Foto: Rosilda Ribeiro/ Arquivo Pessoal

“Na cela em que estive,chuveiro quente era proibido. O banho era gelado, inclusive no inverno. Uma vez eu fiquei muito doente, peguei friagem com os banhos gelados e por dormir no chão. Fiquei com febre por dias até piorar muito e as outras presas começaram a pedir para os funcionários me levarem ao hospital. Fui escoltada até lá, me colocaram de frente pra parede com as mãos algemadas para trás, com todo mundo olhando. Quando voltei pra cela, continuei não podendo tomar banho quente”, contou. 

Se em São Paulo, o maior PIB do País (IBGE, 2013) a população carcerária feminina era tratada dessa forma até ontem, o que se vê no resto do País é criminoso, afirma Rosilda Ribeiro, coordenadora da Pastoral Carcerária para a questão da Mulher Encarcerada. “Hoje, o que o governo brasileiro pratica contra as mulheres, em atos e omissões, é uma violência de gênero e de direito humano. Em muitos presídios femininos que visitamos, a água é racionada. As mulheres que conseguem um balde, guardam água para tomar banho frio, cozinhar ou tomar, ao longo do dia. Quem não tem fica sem água por longos períodos. Agora imagina o reflexo disso para a higiene. As mulheres, quando menstruam, costumam tomar mais banhos, a água quente auxilia no alívio da dor, mas no Brasil, isso não importa”, destacou. 

Absorventes

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo encontrou, na penitenciária Feminina da Capital, mulheres que usam pedaços de toalha, colchões e até miolo de pão para fazerem absorventes. Ainda de acordo com elas, o absorvente fornecido se assemelha a um protetor diário, que não é suficiente para conter o fluxo menstrual. “Eu nunca recebi absorvente do Estado enquanto estive presa. Minha família tinha que levar. Me lembro que as mulheres que recebiam, reclamavam que a qualidade era muito ruim e não vinham absorventes suficientes. Algumas detentas pediam mais, mas nem sempre eram atendidas”, detalhou Karine. Em nota, a SAP informou que “em média, cada reeducanda recebe dois pacotes de absorvente ao mês (contendo oito absorventes cada), podendo solicitar mais desse item se necessário. Somado a isso, as custodiadas podem adquirir absorventes pela folha de pecúlio, além de poder receber o produto pelos familiares cadastrados no rol e ainda de doações feitas por empresas e entidades às unidades prisionais”.

Mulher em cárcere no CDP de Franco da Rocha, em São Paulo, mostra absorvente oferecido pelo estado.
Mulher em cárcere no CDP de Franco da Rocha, em São Paulo, mostra absorvente oferecido pelo estado.
Foto: Defensoria Pública/Divulgação

“As unidades prisionais não levam em conta que cada mulher tem um ciclo menstrual único. São diferentes dias de duração, com diferentes fluxos. As medicações para alívio da dor também são negadas com frequência. No Ceará, para receber absorvente, o sangue precisava escorrer pelas pernas. É o sangue que ninguém vê. Uma violência que mal consigo mensurar”, apontou Rosilda. 

Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu
Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu
Foto: Defensoria Pública/ Divulgação

Maternidade

Na época das inspeções, a Penitenciária Feminina da Capital, abrigava 606. Haviam três mulheres grávidas, 22 lactantes, 22 crianças de até seis meses e nenhum médico pediatra, obstetra ou ginecologista à disposição.Nem mesmo as mulheres grávidas tem acesso à banho quente. No relatório da Defensoria que mostra a inspeção feita no Presídio Feminino de Mogi Guaçu, realizado em novembro de 2021,  a equipe colheu relato de uma detenta aos 7 meses de gravidez, tomando apenas banhos frios. Ela foi informada de que só poderia tomar banhos quentes "poucos dias antes do parto" já que "as gestantes só são transferidas para a ala de maternidade aos 8 meses e alguns dias". Apenas nessa sala e na enfermaria, há chuveiros quentes disponíveis. 

Sobre o pré-natal, a SAP informou que "busca rotineiramente a promoção e a proteção da saúde da mulher. No caso das gestantes, elas recebem acompanhamento permanente nas unidades por meio das equipes de saúde, pelo Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário ou externamente pelos programas de pré-natal realizados nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) ou em casos mais urgentes em hospitais locais."

O que diz a lei

As Regras Mínimas para Tratamento de Pessoas Reclusas da Organização das Nações Unidas (Regras de Mandela),  possuem um artigo que trata justamente do banho de detentos em condições adequadas, "de acordo com a estação do ano e a região geográfica". O argumento foi utilizado pelo STJ para garantir que devem ser fornecidas instalações adequadas para banho dos presos com temperatura apropriada ao clima.

Para o desembargador Marrey Uint, da 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo que manteve a decisão de obrigar o Estado a instalar chuveiros aquecidos nas unidades prisionais,  o excesso de presos e as condições desumanas dos presídios "envergonham o Estado de São Paulo, máquina motriz da economia do Brasil, com uma das maiores cidades do mundo": "A Carta de 1988, bem como a lei de execuções penais, trazem diversos dispositivos sobre os direitos dos presos (artigos 5º, XLIX e LXIII, da CF e 40, 41, 42 e 432 , da Lei de Execução Penal), mas, lamentavelmente, no sistema prisional paulista, o que se vê é um flagrante desrespeito a essas normas".

"Nós temos denunciado violações de direitos humanos, tortura e violência de gênero de forma sistemática, mas parede ser um trabalho invisível. Ninguém cuida das mulheres privadas de liberdade. Não há uma resposta única para o problema, precisamos nos mobilizar", disse Rosilda. 

Fonte: Redação Nós
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