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Em Brasília, os novos guerreiros indígenas em formação

Crianças e jovens passaram os últimos 11 dias na capital federal, para protestar pelos direitos dos povos originários

14 abr 2022 - 15h50
(atualizado às 16h32)
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BRASÍLIA - Ao lado de um grande balão azul, um planeta Terra inflado de ar e marcado por mãos de barro, Kirixi Bimpõm Munduruku, de 17 anos, se concentra para ouvir a liderança indígena que fala à multidão, sob a tenda do Acampamento Terra Livre (ATL), estendida no eixo central de Brasília. "Nossos direitos estão ameaçados, a nossa terra", diz ela, tímida. "É importante pra gente estar aqui, com nossos parentes."

Ao lado da menina indígena, Jdejdkô Xikrin, um garoto de 15 anos, com o rosto tomado por sorriso e espinhas, também quer acompanhar o discurso em silêncio. "Estamos aprendendo. Muita coisa está entrando na nossa mente", diz ele.

Jdejdkô Xikrin, 15 anos, acompanha as palestras no Acampamento Terra Livre, em Brasília
Jdejdkô Xikrin, 15 anos, acompanha as palestras no Acampamento Terra Livre, em Brasília
Foto: ANDRE BORGES/ESTADAO

Kirixi viajou quatro dias de ônibus com os pais para cruzar os 3 mil quilômetros que separam o Distrito Federal da aldeia onde vive, nas margens do rio Tapajós, em Jacareacanga, (PA). Jdejdkô partiu de Marabá (PA) com a família. Depois de 1.500 quilômetros de estrada, o ônibus estacionou no "eixo monumental", a via que dá acesso à Esplanada dos Ministérios. Como Kirixi e Jdejdkô, milhares de crianças e jovens passaram os últimos 11 dias em Brasília, para protestar pelos direitos dos povos originários. É a nova geração indígena, mais atenta do que nunca sobre seu próprio futuro.

Nas últimas semanas, mais de 8 mil pessoas de 200 povos indígenas deixaram suas casas para participarem do ATL, que aconteceu entre os dias 4 a 14 de abril. Reconhecida como a maior Assembleia dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil, a manifestação acontece anualmente desde 2004. Naquele ano, nasceu como uma cobrança dos povos originários pela demarcação de seus territórios. Hoje, essa bandeira segue como principal luta, mas outras prioridades passaram a fazer parte das cobranças indígenas, dada a crescente ameaça aos seus direitos.

O Projeto de Lei 191/2020, do governo Jair Bolsonaro, que abre as terras indígenas para exploração em grande escala de mineração, hidrelétricas e projetos de infraestrutura, esteve no centro dos debates. O texto tramita no Congresso e já passou pela Câmara. Já o Projeto de Lei 490/2007, que impõe o chamado marco temporal, quer revisar terras indígenas e determinar que são terras indígenas apenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988.

Em paralelo, correm ainda agendas com impacto direto na vida dos indígenas, como o PL 6.299/2002, que libera mais agrotóxicos, e o PL 3.729/2004, que flexibiliza os processos de licenciamento ambiental. Ainda tramitam no Congresso outras duas propostas - PL 2.633/2020 e PL 510/2021 - que tratam de regulação fundiária e podem favorecer a regularização de grandes áreas que foram alvo de processos de grilagem.

Consciência

A necessidade impõe aos adolescentes indígenas que todos esses números e letras do mundo político e distante de Brasília deixem de ser meras burocracias criadas pelos não índios. "Temos que tomar essa consciência o mais cedo possível", diz Moya Guarani, de 21 anos, que saiu de Santa Catarina para participar do Acampamento Terra Livre, pela segunda vez. "Essa é uma manifestação de todos os povos. E nós somos a futura geração que está chegando."

Alice Pataxó, 20 anos, da Bahia, participa dos atos em Brasília desde 14 anos, com os pais
Alice Pataxó, 20 anos, da Bahia, participa dos atos em Brasília desde 14 anos, com os pais
Foto: ANDRE BORGES/ESTADAO

Na luta política travada pelos povos indígenas, Alice Pataxó frequenta o ATL desde os seus 14 anos de idade. Vinha aos encontros com os pais. Cresceu ouvindo as manifestações, fazendo as passeatas pela Esplanada. Hoje, com 23 anos, deixou a terra indígena Barra Velha, na região de Porto Seguro (BA), para participar de mais uma edição do ato. "É mais um capítulo que estamos escrevendo nesta história. Esse movimento também é a expressão da nossa juventude indígena, que deve ser cada vez mais presente."

Frutos plantados pela mobilização são colhidos até hoje. Foi do ATL que saiu a atitude para que fosse formalmente criada, por exemplo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em novembro de 2005. Tudo se deu após deliberação política tomada durante o evento realizado naquele ano.

Das marchas e manifestações brotaram outras iniciativas, como a criação do Conselho Nacional da Política Indigenista (CNPI), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). O movimento levou ainda à criação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas (PNGATI), com participação de representantes dos povos indígenas. Hoje, muitas destas conquistas estão sob ameaça constante.

Elisa Munduruku, 23, e Kirixi Bipõm, 17, saíram de Jacareacanga (PA), para participar do ato em Brasília
Elisa Munduruku, 23, e Kirixi Bipõm, 17, saíram de Jacareacanga (PA), para participar do ato em Brasília
Foto: ANDRE BORGES/ESTADAO

Neste último dia de manifestações, os povos tradicionais começam a se mobilizar para voltarem para casa. Ao lado da amiga Kirixi Bipõm, Elisa Munduruku, de 23 anos, não esconde a saudade que está sentindo de voltar para sua aldeia, em Jacareacanga (PA). "Não vejo a hora. São quatro dias de viagem pela frente. Vamos demorar pra chegar, mas logo estaremos em casa", diz ela, que promete regressar a Brasília no ano que vem.

Sotcha Veríssimo Guajajara, no colo da mãe Maria Guajajara, em seu primeiro acampanhamento em Brasília
Sotcha Veríssimo Guajajara, no colo da mãe Maria Guajajara, em seu primeiro acampanhamento em Brasília
Foto: ANDRE BORGES/ESTADAO

O retorno à capital federal em 2023 também está nos planos de Maria Guajajara, que carrega no colo o pequeno Sotcha Veríssimo Guajajara. O bebê de quatro meses sorri no colo da mãe. Ele ainda não sabe, mas já é mais um pequeno guerreiro em formação.

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Estadão
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