"Como eu ia ser mãe se não me via como mulher?": pais trans celebram o amor e a diversidade
Pais trans assumem papéis desafiadores e ensinam que o amor nada tem a ver com gênero.
Pais trans assumem papéis desafiadores e ensinam aos filhos que a diversidade é saudável. Eles praticam normalmente as atividades principais de todo pai empenhado: amor sem limites e responsabilidade com o futuro.
Se os caminhos da paternidade são cada vez mais diversos, o ponto de chegada continua o mesmo: pai é quem cria, quem ama, quem quer registrar no documento — como dois pais trans paulistas: um assumiu o neto; o outro, as gêmeas da ex-namorada.
Cristiano Henrique, 41 anos, mora com a companheira e cria o neto na Cohab 2, em Itaquera, zona leste de São Paulo. Ele toca a Men´s Club Barbearia. Antes da transição e da maioridade, Cris teve uma filha, que foi mãe ainda jovem. Seu filho, Miguel, de seis anos, está legalmente sob a guarda do avô, que virou pai.
“O primeiro insight de transexualidade que eu tive foi vendo a Roberta Close na televisão. Mas a transição não passava pela minha cabeça, não tinha nenhum conhecimento, achava que estava ficando maluco. Nunca me entendi como uma mulher” – Cristiano Henrique, 41 anos, pai trans
Em Santo André, na Grande São Paulo, Danillo Simões, 36 anos, é outro pai trans, registrado, das gêmeas da ex-namorada. A gravidez ocorreu durante um período em que o casal estava separado. O pai biológico não assumiu a responsabilidade, o relacionamento foi retomado, e Danillo decidiu bancar a paternidade.
Ele tem a guarda compartilhada das filhas Sophia e Isadora, com quase quatro anos. Trabalha com informática e está concluindo pós-graduação em Engenharia de Software, na USP. Virou pai antes da transição – diferente de Cris, que assumiu o neto como filho durante a transição, e posteriormente virou avô de mais duas netas, criadas pela mãe.
Neto chama avô de pai, e sua companheira, de mãe
Com 16 anos, Cristiano estudava, jogava futebol, estava crescendo no esporte e vivia conflitos de gênero. No segundo ano do ensino médio, engravidou. “A gente tenta ser normal, mas não tem instrução, não tem acompanhamento nenhum."
"Como eu ia ser mãe se não me via como mulher?" – Cristiano Henrique
Veio a filha, mas a transição só viria anos depois. A virada de chave foi a novela A Força do Querer, em que a personagem Ivana transicionou para Ivan. A história também encorajou o outro personagem trans desta reportagem, além da coincidência temporal: a transição dos dois começou após os 30 anos de idade.
“A coisa que mais me incomodava eram os seios. A cirurgia é uma liberdade, parece que você ficou na cadeia por trinta anos usando o corpo que você detesta. Foi libertador” – Cristiano Henrique, pai e avô de Miguel
Cris relata que, com a novela, começou "a ver uma luz, a pesquisar, a coisa foi ficando cada vez mais forte. Foi quando sentei com minha esposa, conversei, e caí de cabeça na transição”. O neto, Miguel, que o avô assumiu como filho, chegou com ele transicionando.
“Hoje ele me chama de pai, minha companheira de mãe. Moramos com mais três gatos. Não tem nada de anormal, a gente não faz nada de anormal, a gente naturaliza. Minha filha está tranquila que o filho dela, meu neto, esteja sendo criado por mim, como filho. Não há problema”, relata Cris.
Sophia e Isadora começam e entender o mundo do pai
Aos 36 anos, Danillo faz questão de lembrar que ultrapassou a média de vida de pessoas trans no Brasil, de 35 anos, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Antes da transição, teve relações lésbicas e, com a gravidez de uma ex-namorada, realizou o sonho de ser pai. “Sempre quis”, diz ele.
Danillo reafirmou a opção pela paternidade várias vezes, sobretudo quando o ultrassom indicou que a gravidez era dupla. Depois, quando se separou da namorada: ele continuou sendo pai das meninas. A guarda compartilhada garante a presença das filhas nos finais de semana e datas especiais, como o Dia dos Pais.
“Daqui dez anos, vou contar que minhas filhas estão entendendo as nossas lutas, que são filhas de um homem trans que ajuda pessoas, que quitou seu apartamento, que tem independência financeira. Mas o processo de transição não termina nunca” – Danillo Simões, pai de Sophia e Isadora.
Este Dia dos Pais será desafiador. "A fase é de explicar que existem duas casas, do papai e da mamãe, que elas têm que voltar após as visitas, essas coisas práticas”. Danillo vai passear com as meninas e a mãe delas. As filhas se parecem muito com o pai. “Uma vez, no shopping, uma senhora falou que não tinha como não serem minhas filhas. Mal sabia ela que, biologicamente, não eram”, diverte-se.
Mas, afinal, o que é ser pai?
Quando perguntamos aos pais Danillo e Cristiano o que é a paternidade, as respostas não deixam dúvidas sobre a vocação comum. “Ser pai é descobrir o que é amor. Quando eu era mais novo, com todos os conflitos psicológicos, eu não amava a vida. Hoje, não; quero ver minhas filhas crescerem”, diz Danillo.
Como todo pai praticante, as preocupações materiais não ficam de fora. “Tem que ter condições para criar. Tenho só um filho porque quero garantir o futuro dele, proporcionar escola e suprir as necessidades. O afeto é o mais importante, mas não resolve tudo”, diz Cris.
“Minha companheira tem uma relação maravilhosa com minhas filhas, são muito amigas. Elas agora falam, entendem melhor as coisas. Vai ser o primeiro Dia dos Pais com um certo entendimento por parte delas” – Danillo Simões, pai de gêmeas
No caso de Cristiano, seus clientes da barbearia brincam, meio a sério, que ele é “bravo”. Mas provavelmente é a expressão forte das certezas. “Tem que se educar como cidadão de verdade, se colocar no seu lugar de verdade, como uma pessoa decente de verdade."
No país que mais mata pessoas trans no mundo, Danillo expressa a preocupação da luta pela vida, literalmente. “Eu tenho que lutar para estar vivo para elas. É a coisa mais importante”, resume o pai, que antes da entrevista terminar, esclarece: “Sempre quis ter gêmeas.”
