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Porsche é um Porsche é um Porsche é um Porsche. Carro não tem culpa

OPINIÃO: No episódio em que o motorista de um Porsche bateu na traseira de um Renault, os carros são os menos culpados pela tragédia

4 abr 2024 - 19h58
(atualizado em 5/4/2024 às 15h55)
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Momento em que o carro conduzido por Fernando Sastre de Andrade Filho bate por trás no carro da vítima, Ornaldo da Silva Viana
Momento em que o carro conduzido por Fernando Sastre de Andrade Filho bate por trás no carro da vítima, Ornaldo da Silva Viana
Foto: Reprodução CET / Guia do Carro

Um Porsche 911 conduzido a mais de 130 km/h bateu na traseira de um Renault Sandero, numa via urbana de 50 km/h, em São Paulo, e provocou a violenta morte do motorista de aplicativo (99, Uber etc.) que trafegava na velocidade permitida. Foi chocante, pavoroso mesmo. De quem foi a culpa? Do motorista do Porsche, Fernando Sastre de Andrade Filho, 24 anos, empresário.

Num país em que a desigualdade social se aprofunda a cada ano, a violenta morte de Ornaldo da Silva Viana, 52 anos, motorista do Renault, provocou indignação e revolta. Houve até quem dissesse que o Porsche virou licença para rico matar pobre. Uma abordagem compreensível pelas nuances da tragédia, mas incorreta.

O Porsche não foi o culpado pela tragédia, assim como todos os outros donos de Porsche não podem ser pré-julgados porque compraram o carro esportivo alemão. Mas a ênfase no nome do carro esportivo chega ao ponto de o Renault ser considerado “o outro carro” em algumas reportagens, enquanto o nome Porsche é repetido à exaustão, talvez para fisgar algoritmos que proporcionam audiência.

Da mesma forma, não há nada de errado em desejar ter um Porsche; o que está errado é o sistema que obriga motoristas de aplicativo a cumprirem jornadas insanas e reduz a um minúsculo grupo de pessoas o acesso a carros como Porsche, Audi, BMW e Mercedes, para citarmos apenas as marcas de luxo alemãs. 

Do jeito que a tragédia tem sido abordada, parece que é a presença de um Porsche na rua que coloca todo mundo em perigo. Mas, vejam que irônico, a Porsche é a marca de luxo que mais oferece aos seus clientes a possibilidade de experimentar o alto desempenho de seus carros dentro de um circuito fechado (portanto fora das ruas e estradas), num ambiente controlado, por meio da Porsche Cup e de outras atividades ao longo do ano. É uma chance de extravasar o Senna ou o Verstappen que pode existir dentro de cada um.

O motorista culpado estava dentro de um Porsche 911, mas poderia estar num Volkswagen Polo, num Chevrolet Onix, num Fiat Strada, num Hyundai HB20 ou até mesmo num outro Renault Sandero. Afinal, 130 km/h é uma velocidade que qualquer um desses carros pode atingir. E atingem.

É muito mais comum ver carros mais populares, como Gol, Up e Golf, fazendo barbaridades nas ruas, tirando rachas em vias públicas, do que um Porsche 911 em alta velocidade. Sem contar as motos conduzidas por motoboys. O potencial criminoso pode estar dentro de qualquer carro, qualquer veículo, não é a marca que faz o motorista inconsequente, tampouco sua condição social.

Gertrud Stein, escritora, escreveu em seu célebre poema: "Rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa". Eu escrevo: "Porsche é um Porsche é um Porsche é um Porsche". Mas um motorista criminoso, inconsequente ou irresponsável é o que é. Com ou sem um Porsche.

O Porsche não é o sujeito da história, e sim o motorista que o conduzia de forma irresponsável, criminosa, por isso a abordagem sensacionalista, usando a marca famosa e desejada como sinônimo de licença para matar, apenas desinforma. Assim como o Porsche do rico, com certeza o Renault da classe média e a moto Honda do pobre também são objetos de desejo. 

O automóvel empodera, isso é fato. E se a mobilidade é uma necessidade, a velocidade é um prazer. Ou crime. Ou tragédia, como vimos na cena pavorosa. O homem que causou a morte do motorista de aplicativo poderia, por exemplo, ser o motorista de Al Capone, pois nos anos 1930, nos Estados Unidos, o famoso gangster usava potentes carros Ford V8 porque eram os mais rápidos para fugir da Polícia.

O problema era o Ford V8? Não. O problema era o próprio Al Capone, que seria bandido com ou sem o Ford V8. No caso do acidente que matou Ornaldo da Silva Viana, o problema não era seu o Renault nem o Porsche do motorista criminoso. O problema era Fernando Sastre de Andrade Filho. O carro que ele dirigia é menos importante do que saber por que ele dirigia de forma criminosa.

E pior: conversei com a Porsche do Brasil e obtive a informação de que a empresa não pode, por lei, impedir qualquer pessoa de comprar um carro seu, mesmo depois de uma tragédia como essa. Ela não pode colocar Fernando Sastre de Andrade Filho numa lista de clientes bloqueados. Se este cidadão não for punido, poderá comprar qualquer outro carro e sair dirigindo por aí como se nada tivesse acontecido. 

E pior, quantos outros como ele não estão a bordo de seus carros nas ruas? Quantos motoristas, em qualquer carro, não são potenciais Fernandos à beira de cometer uma tragédia no trânsito? O foco da tragédia, por isso, não deve ser o carro, e sim a pessoa.

Guia do Carro
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