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Futebol feminino

Mulheres têm risco duas vezes maior de concussão cerebral no futebol, alertam médicos

Neurologistas explicam diferenças fisiológicas e pedem mais pesquisas sobre o assunto

15 mar 2021 - 18h06
(atualizado às 18h06)
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A preocupação com concussões no futebol tem crescido, resultando em medidas como um novo protocolo da Fifa em 2019 e a permissão de uma substituição extra. No entanto, ainda há questões sobre o assunto a serem resolvidas, como o tamanho do problema nas atletas mulheres: estudos indicam que elas sofrem duas vezes mais concussões do que os homens.

Anair Lomba, jogadora do Espanyol, após choque de cabeça com duas adversárias do Eibar em jogo do Campeonato Espanhol feminino
Anair Lomba, jogadora do Espanyol, após choque de cabeça com duas adversárias do Eibar em jogo do Campeonato Espanhol feminino
Foto: Twitter | Espanyol / Estadão

Uma revisão de estudos do subcomitê de desenvolvimento de diretrizes da Academia Americana de Neurologia, publicada em 2013, aponta que, no ensino médio, há uma incidência de 0,59 casos de concussão entre garotos a cada mil jogos de competições; entre meninas, o número era 0,97. No futebol jogado na faculdade, o número para meninos era de 1,38, já para meninas, 1,80. No Reino Unido, um comitê do Parlamento ouviu números parecidos de especialistas que pesquisam o tema.

As razões disso seriam fisiológicas. "Em relação à própria estrutura corporal, a questão do equilíbrio, do centro de massa, fica diferente, então teoricamente elas têm, para alguns tipos de esporte, mais possibilidade de queda. A outra variação anatômica é a massa muscular. Mais importante até que a estrutura física, nos homens, a massa muscular é muito maior do que nas mulheres", relata Renato Anghinah, livre-docente em neurologia pela Faculdade de Medicina da USP e médico do Sindicato de Atletas de São Paulo (Sapesp).

"E isso, em certas áreas do corpo, é preponderante, principalmente na região do pescoço, dos ombros, essa estrutura de sustentação da cabeça. Quando você tem mais massa para absorver o impacto, esse impacto vai ser menor para o que está protegido dentro. No caso das mulheres, essa massa é menor, e por mais desenvolvida que ela venha a ser, não vai se comparar o tamanho do músculo, a grossura do músculo", complementa.

Um relatório da Sociedade Médica Americana para Medicina Esportiva, também de 2013, identificou a "pouca massa" no pescoço como responsável por uma aceleração maior da cabeça das atletas mulheres em traumas capazes de gerar concussões, o que seria um mecanismo que causa lesões mais sérias. É importante notar que não somente em choques de cabeça ocorrem concussões: 'chacoalhões' muito fortes em disputas ombro a ombro, por exemplo, também podem originá-las.

Além disso, as jogadoras também podem demorar mais para voltar a campo. "A recuperação da atleta mulher desse tipo de lesão leva um tempo ligeiramente maior do que no homem. Não temos uma certeza da razão disso, mas supomos que o hormônio feminino em períodos do ciclo menstrual que ela está ovulando, principalmente, parece que a mulher tem uma retenção de líquido maior e desenvolve um processo inflamatório maior. Tanto é que a mulher também tem os sintomas mais agravantes do que no homem", analisa Nemi Sabeh Jr., médico da seleção brasileira feminina de futebol.

"O sintoma inicial da concussão é a perda de consciência ou uma confusão mental simples, mas a atleta mulher fica com outros sintomas por mais tempo depois: dor de cabeça, fotofobia, ou seja, ela não consegue olhar para a luz facilmente, irritabilidade e alterações no sono. Isso eu consigo enxergar mesmo em quem não teve perda de consciência", comenta Sabeh.

Segundo ele, um caso do tipo aconteceu com a goleira Aline, ao levar uma bolada em forte chute de Cristiane em treino da seleção brasileira, precisou ficar sete dias fora das atividades, enquanto ainda apresentava os sintomas.

No protocolo da Fifa para casos de concussão, denominado 'Scat 5', o médico tem que preencher um relatório com diversas informações sobre o caso. O documento traz diversas 'bandeiras vermelhas', pelas quais o jogador tem que sair imediatamente, como em casos de dor no pescoço, visão duplicada, vômitos, dor de cabeça forte, convulsão e perda de consciência, entre outros. Depois, traz outros pontos que devem ser observados na hora, como os sinais que podem ser vistos a olho nu de confusão mental e questões para memória.

Posteriormente, o médico também precisa conhecer o histórico do(a) atleta, avaliar os sintomas, ter a certeza de que a memória imediata, a concentração, o equilíbrio e a movimentação do corpo, principalmente de pescoço e coluna, estão normais antes de liberá-lo para praticar as atividades normalmente.

No entanto, como foi reclamado pelos cientistas britânicos ao Parlamento do país europeu, as pesquisas sobre a concussão no esporte feminino ainda estão apenas começando. "Poucos estudos têm o público de atletas do sexo feminino como alvo, e isso gera preocupação, pois medidas adotadas para a proteção de homens esportistas podem não ser as melhores ou mais eficazes para proteger as mulheres esportistas. Com estudos bem elaborados e com respostas cientificamente comprovadas para as atletas do sexo feminino, talvez as regras dos esportes com maior contato, como futebol, rugby, e outros, possam ter de ser rediscutidas e modificadas, de forma a levar maior proteção às mulheres durante a prática esportiva", afirma Maria Elizabeth Ferraz, coordenadora do Departamento Científico de Traumatismo Cranioencefálico da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).

PREVENÇÃO

Em um ponto, os três médicos entrevistados pela reportagem concordam: a prevenção passa pelo poder do médico de determinar a saída de um jogador, queira ele seguir em campo ou não. "A primeira coisa é tirar o cara de campo. A segunda é não deixar voltar até a resolução dos sintomas. Por que, se for jogar bola se preocupando em não bater a cabeça, você não vai jogar bola. No futebol americano, o cara fica fora por sete dias, no mínimo, o que é uma média aceitável, a depender da evolução dos sintomas", opina Nemi Sabeh Jr.

"Tem de ter uma vontade política das entidades. Existe nos Estados Unidos um médico observador neurologista, que não é de nenhuma das duas equipes, é contratado diretamente pela NFL, que avalia eles em uma tenda para o protocolo de concussão, e ele que resolve se o jogador voltará ou não. Se tem um primeiro trauma, você vê que eles tiram do jogo e pronto, não pode retornar, porque existe uma coisa chamada Síndrome do Segundo Impacto. Se ele tiver um segundo trauma, pode ter uma lesão cerebral definitiva", diz o Anghinah.

Um caso na Copa do Mundo de 2014 é exemplo: nas oitavas de final, o lateral Álvaro Pereira, do Uruguai, ficou desacordado após ser atingido acidentalmente pelo joelho do atacante inglês Sterling, mas se recusou a sair e seguiu em campo. Na final daquele torneio, o meia alemão Kramer também teve um choque de cabeça com Garay, da Argentina, e ficou desorientado, sendo substituído aos 30 minutos do primeiro tempo - hoje, ele não se lembra de ter estado em campo naquele dia.

"A principal mensagem que deve ser enviada ao mundo esportivo é que em caso de dúvida, após evento traumático craniano, a atleta ou o atleta devem ser permanentemente retirados de campo, substituídos, e passar por avaliação clínica pertinente, além de manterem-se em seguimento médico posterior, e reavaliação médica antes de ser liberado novamente", reforça Maria Elizabeth Ferraz.

"Para o sucesso destas medidas, ações educativas que incluam a participação desde professores de educação física dos ensinos médio e fundamental, pais, médicos, entidades esportivas, entidades de juízes esportivos e entidades ligadas à saúde em geral. especificamente os médicos devem estar preparados para o diagnóstico e acompanhamento destes casos de concussão cerebral, não só à beira do campo, mas por todo o processo, que culminaria com a liberação ou não da atleta para voltar a jogar", pede a médica.

Esse tipo de atitude já é tomada nos Estados Unidos: segundo Anghinah, antes dos alunos do ensino médio se inscreverem em um esporte, os pais assistem palestras sobre os tipos de lesões mais comuns naquela prática em questão, medida que seria importante de ser realizada também na prática de esportes de forma amadora.

O médico também comenta outras ideias para casos do tipo que surgiram. "Ter um médico no VAR para poder determinar é uma ideia ruim, você não está tendo contato com o jogador para avaliar diretamente, e o jogador pode estar simulando. Outra sugestão, deixar o jogador fora por dez minutos, não funciona. Se tem uma concussão, tem que tirar. O que eu vejo com muito bons olhos é essa substituição a mais quando você constata que o indivíduo teve uma concussão. Isso eu sou totalmente a favor", opina Anghinah.

A substituição extra também é elogiada por Ferraz. "Nesta situação, medida muito bem vinda, e que esperamos que seja seguida por outras associações esportivas mundiais".

Estadão
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