Especialista alerta para atos de vingança de torcedores no futebol
Heloísa Reis, que estuda a violência das torcidas de futebol, diz que adotar torcida única em jogos não inibe as brigas
Professora titular de Sociologia do Esporte da Unicamp, Heloísa Reis tem vasto conhecimento sobre temas relacionados à violência entre torcidas de futebol. Nesta entrevista ao Terra, ela fala sobre as medidas que atenuariam o problema e critica a ideia de extinção das torcidas organizadas.
A partir de dados que reúne há 22 anos, a professora revela uma realidade alarmante: as torcidas se vingam de colegas de grupo assassinados em confrontos com rivais.
Heloísa está na Alemanha, participando de uma pesquisa sobre prevenção à violência no futebol e projetos sócio-educativos em curso na Europa, voltados para torcedores que se envolvem em distúrbios.
Autora de dois livros – ‘Futebol e Sociedade’ (2006), pela Liber Livros, e ‘Futebol e Violência’ (2006), pela Editora Autores Associados/FAPESP -, Heloísa Reis atuou por 12 anos assessorando os Ministérios da Justiça e do Esporte (de 2003 a 2015) para tratar do assunto e pôr em prática algumas ações que apontavam novos caminhos para o problema. Confira abaixo a entrevista:
O MP-RJ entrou com ação na Justiça pedindo que os clássicos no Rio sejam disputados com torcida única. Isso foi feito após jogo recente entre Flamengo e Botafogo, no Engenhão, no qual um torcedor morreu e outros ficaram feridos em distúrbios fora do estádio. Como a senhora analisa essa medida?
HELOÍSA – O Brasil parece o país da piada pronta. Não vai resolver nada. Os que provocam os distúrbios vão continuar agindo, talvez um pouco mais distante dos locais dos jogos. E não menos grave é a reação que essas brigas desencadeiam. O grupo que saiu derrotado, vai querer se vingar.
Então é possível que a morte de um botafoguense naquele dia seja vingada?
HELOÍSA – Muito provável. O histórico dos casos de morte em conflitos de torcidas no futebol brasileiro demonstra que a vingança ocorre. O que pode ser feito, no exemplo citado, é um trabalho sério de prevenção, durante anos, quando dos jogos entre Flamengo e Botafogo.
Que medidas poderiam evitar, ou atenuar, os confrontos entre torcedores rivais?
HELOÍSA – Trabalhar com a juventude, investir em prevenção, desenvolver com esses grupos projetos sócio-educativos financiados pelo governo brasileiro e dirigidos pelas universidades. São jovens abandonados há muito tempo. Não existem, por exemplo, políticas voltadas para o lazer que os atendam. Claro que também é preciso a repressão, se o caso exigir, nos dias de grandes jogos, mas com agentes públicos preparados para lidar com torcidas.
A senhora é a favor do fim das torcidas organizadas?
HELOÍSA – Também não resolve. Ao contrário, piora. Quando não se tem grupos uniformizados, fica mais difícil a identificação. Essas torcidas têm estrutura física, sede própria e é um direito de todo cidadão se organizar.
A liberação de bebida alcoólica nos estádios agrava os conflitos entre torcedores?
HELOÍSA – Desenvolvi uma pesquisa que mostra que o consumo do torcedor de futebol no Brasil é abusivo, bem acima da média dos que costumam ingerir bebida alcoólica. É uma situação de risco, uma epidemia. Acho que deveria ser mantida a proibição por mais tempo. Temos de pensar na saúde dessas pessoas. A bebida é uma droga lícita com potencial para criar graves problemas sociais.
Mesmo quando havia a proibição, os torcedores só entravam no estádio na hora do jogo. Ficavam consumindo do lado de fora...
HELOÍSA – Isso também por causa dos preços abusivos de bebida e comida dentro dos estádios. Mas é uma tradição no Brasil que as torcidas organizadas só entrem quando faltam cerca de 10 minutos para o início da partida
O caso em que torcedores do Corinthians foram presos em outubro, no Rio, por causa de uma briga num jogo com o Flamengo, no Maracanã, pode servir de exemplo para quem provoca atos de violência no futebol?
HELOÍSA – Aquilo foi uma abuso. Prenderam os envolvidos nas brigas e alguns inocentes, que perderam o trabalho e deixaram suas famílias desorientadas. Essas reações geram mais ódio e descrença no Estado. Eu li a declaração atribuída a um juiz, na qual se dizia que se os torcedores fossem soltos, a Justiça ficaria desacreditada. Os detidos ficaram expostos como se estivessem num campo de concentração. As câmeras teriam de identificar um a um. E a Polícia teria de ser questionada também, pela forma como agiu. Tudo aquilo é combustível para novas brigas. Os atingidos vão querer se vingar. São relações eternas de ódio e vingança.
Qual é o perfil desses torcedores que se envolvem em distúrbios com frequência?
HELOÍSA – Não existe um estudo disso no Brasil. Eu proponho isso há anos. Costumo denominar os mais violentos como hooligans, que guardam semelhanças com o que faziam e fazem os hooligans na Inglaterra
Por que eles vão aos jogos para brigar?
HELOÍSA – Porque isso lhes dá prazer. Como dizem alguns – “dá um barato”. Nas ações, eles têm uma descarga de adrenalina semelhante à do consumo de droga pesada. Há um traço comum entre eles, que é um modelo de masculinidade que se afirma dessa forma. Para muitos, esses atos de violência são mais prazerosos que o sexo e essa questão já foi abordada por pesquisadores britânicos. Além do mais, o medo de ser preso ou de apanhar dos rivais funciona como atrativo.
Como foi sua experiência como assessora especial dos Ministérios da Justiça e do Esporte para lidar com a questão da violência entre torcidas?
HELOÍSA – Foi um período importante, com avanços. Trabalhamos pontualmente com três metas - dialogar com líderes de torcidas organizadas, conscientizá-los de que os confrontos feriam a legitimidade e que era necessário que eles trabalhassem em conjunto com o Estado para reduzir essa violência. Posso assegurar que as lideranças dessas torcidas não têm comprometimento com os casos de agressões que ocorrem dentro e fora dos estádios. Em geral, eles não têm controle sobre o grupo que comandam.