Extravagância e miséria caminham juntas no país da Copa do Mundo
No Catar, shoppings de consumo de luxo se misturam a casas populares; enquanto mulheres árabes compram itens de grife, operários lutam para viver com salário mínimo
O Catar, como qualquer outro lugar, possui várias faces em sua sociedade e complexidades. Existe o lado tecnológico, dos arranha-céus em Doha e Lusail que brilham aos olhos pela criatividade da arquitetura e jogo de luzes. Há o do consumo de luxo, nos muitos shoppings que se espalham pelo país da Copa do Mundo e onde é possível ter acesso a lojas de grifes internacionais e produtos exclusivos. Em um deles, o Villagio, a cidade de Veneza é reproduzida. Inclusive, há um canal com gondolas navegando dentro dele. Este ano, foi inaugurado o Place Vendôme, centro de compras cuja estrutura é uma homenagem a Paris.
E existe o outro lado da moeda, como as duras condições que muitos trabalhadores migrantes enfrentam para se manter no país com maior renda per capta por habitante no mundo e com uma riqueza avaliada em U$ 180 bilhões. O salário mínimo do Catar, após a reforma trabalhista, em 2016, passou a ser de 1.000 rial (R$1.490).
Atrás do Museu Nacional do Catar, cujo prédio reproduz uma rosa do deserto e há uma bela vista do mar do Golfo, a Al Futan Street revela outro país bem menos turístico. Formada por casinhas germinadas com paredes brancas e portas azuis, a rua é um dos raros locais em Doha que a modernidade não pôs abaixo. Ali funcionava um antigo bairro de trabalhadores enquanto o país se desenvolvia, no século XX. Há até mesmo placas dizendo ser uma área tombada, em restauração e que não se pode entrar dentro das casas por isso. No entanto, ao se abrir as portas de madeira, o que se revela não são obras e sim, cortiços onde vivem operários vindo da Ásia e condições insalubres.
O chão é de terra batida, a lavanderia, improvisada e os homens, que saíram de locais como Nepal, Índia e Bangladesh, se espremem em poucos metros quadrados nas habitações. Os 30 graus de dia se misturam aos fortes cheiros que se sente na rua, inclusive de restos de comida guardados em sacos atrás de uma das portas. Alguns dos trabalhadores permitem a entrada do Estadão para conversar e mostrar as condições em que vivem, mas pedem para não fazer fotos ou escrever seus nomes na matéria, pois temem problemas com seus empregadores e o governo catariano.
Todos emigraram com a ideia de juntar dinheiro no Catar para um dia voltar aos países em que nasceram. O desafio é viver como assalariado em um país de padrão de vida elevado e ainda precisar enviar dinheiro para casa. Atrás da Al Futam, fica uma área chamada de velha Doha, onde há conjuntos de prédios populares, muito similares aos construídos no projeto Cingapura, em São Paulo, e que destoam dos arranha-céus que sobem incessantes pela orla e centro de Doha, além da cidade vizinha de Lusail, que começou a ser habitada recentemente e foi planejada para ter 250 mil habitantes com alto poder aquisitivo.
DIFERENTES PADRÕES DE CONSUMO E TRATAMENTO
Para quem possui pai catariano e nasceu no país, o governo oferece benéficos desde o início da vida de seus cidadãos, como a criação de uma poupança. Os catarianos têm acesso gratuito aos melhores serviços de saúde, educação e não pagam impostos, ao contrário dos 88% de estrangeiros que formam a mão de obra da nação, seja ela operária ou especializada.
No comércio, os vários Catares estão em exposição. Dentro dos shoppings frequentados pela elite, as mulheres que seguem o islamismo fazem compras vestindo abayas pretas, a roupa que elas devem usar ao sair de casa ou na presença de homens que não sejam da família. Os homens usam o thobe ou kandura, a túnica branca que vai até os pés.
Mas por debaixo das roupas tradicionais, outro mundo se revela. Os árabes adoram consumir e possuem roupas e itens de grife, como bolsas, óculos, joias, relógios e celulares de última geração e tecnologia. No Shopping Villagio, uma bolsa da marca italiana Prada custa 5.000 rial (R$7.450,00) por exemplo.
Dentro de casa, as mulheres podem vestir e exibir o que há de melhor em seus closets, assim como em festas privadas só para elas. Trajar luxo simboliza status e o quão rica e influente a família da mulher ou o homem árabe é.
Já nos mercados de imigrantes, como o que existe próximo ao turístico Souq Wakif, as lojas se dedicam a produtos populares, muitos falsificados, como roupas, tênis, abayas, cama, mesa e banho, além de eletrônicos. Os restaurantes procuram atender ao gosto de filipinos, indianos e de países africanos que vivem aqui, como nigerianos e sudaneses. Os mercados e açougues vendem carne de frango, muito consumida no Catar, assim como cortes de carneiro e frutas, legumes e especiarias da Ásia que servem de temperos para matar um pouco a saudade do país natal.
É um colorido, com música alta e calor, tanto humano quanto de temperatura. Bem distinto do ambiente silencioso, reservado e climatizado dos centros de consumo que os endinheirados do Catar frequentam em Doha, Lusail e Al-Rayyan.