Poder do Campo: Do laboratório ao campo, a ciência por trás da supersafra
Em vídeo e reportagem, especialistas explicam como pesquisa, tecnologia e manejo sustentável estão transformando o futuro do agro brasileiro
Na Fazenda Renascer, em Diamantino (MT), o produtor Gilson Antunes de Melo colhe os resultados do sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF). O manejo adotado permite manter a pastagem verde mesmo após 60 dias de seca. "Quando você planta o milho junto com a braquiária, o solo fica coberto pela palha, o que ajuda a conservar a umidade. Assim, em outubro, quando chega a época de plantar, a semente encontra uma temperatura mais baixa e mais água disponível. O resultado é uma implantação muito melhor da lavoura", afirma. "E, se ocorrer algum veranico ou uma chuva muito pesada, essa palha protege."
Os benefícios não surgiram por acaso. Eles são fruto de anos de investimento em pesquisa, desenvolvimento tecnológico e testes que ajudaram a adaptar o modelo às condições do da região. "O campo é dinâmico, muda muito rápido. Para se manter nessa atividade, é importante ter segurança. Tudo o que você faz para garantir essa segurança na lavoura também te mantém no campo. No fim, isso se reverte em mais área e em uma produção com mais qualidade", diz Melo.
A constatação de Melo se alinha à visão de pesquisadores de que o campo brasileiro, para atender às crescentes demandas globais por alimentos e energia, precisa ser cada vez mais tecnificado. A modernização não é apenas uma questão de produtividade e redução de custos, mas uma resposta direta aos desafios climáticos que pressionam a agricultura e exigem novas estratégias de adaptação.
Na unidade da Embrapa Agrossilvopastoril, em Sinop (MT), o pesquisador Cornélio Zolin explica que a busca por soluções aos produtores deve acompanhar esse cenário de mudanças. "Desenvolvemos sistemas integrados de produção. A questão é como combinamos esses sistemas para oferecer ao agricultor alternativas mais diversas e rentáveis, que o ajudem a enfrentar situações cada vez mais frequentes, como a falta de chuva no período esperado. O desafio é aliar rentabilidade, diversificação e sustentabilidade", afirma.
Caminhos
Nesse cenário de incertezas climáticas, o físico Silvio Crestana, pesquisador da Embrapa Instrumentação em São Carlos (SP) e ex-presidente da instituição (2005 a 2009), alerta que a produção agrícola brasileira enfrentará três tipos de estresse que tendem a se intensificar nos próximos anos: o hídrico, o térmico e o biótico.
"O hídrico, podemos resolver com irrigação. Para o biótico, que são pragas e doenças, temos insumos cada vez mais específicos. E, por isso, o térmico é o mais grave, porque a ciência ainda não encontrou soluções tecnológicas eficazes para mitigar seus efeitos", diz ele.
Crestana acredita que, em dez anos, tecnologias avançadas, como inteligência artificial, robótica, agricultura de precisão, biotecnologia, nanotecnologia e fotônica serão parte do cotidiano do campo. "Até lá, a inteligência artificial, por exemplo, já será o arroz com feijão da tecnologia. Já estaremos falando em computação quântica", prevê.
Para o pesquisador, porém, não basta ter tecnologia disponível. É preciso oferecer capacitação para aprimorar a gestão das propriedades, possibilitar acesso ao crédito e ampliar a conectividade. "Além de investir no desenvolvimento de soluções locais, já que o Brasil tem condições muito diversas de uma região para outra e ainda é bastante dependente de modelos estrangeiros de tecnologia".
Dois Brasis rurais
Crestana destaca que outro gargalo a ser superado é a disparidade tecnológica no campo. Dos 5 milhões de agricultores brasileiros, número apontado pelo último Censo Agropecuário, em 2017, cerca de 2 milhões — o equivalente a 40% — ainda não tinham acesso a boas sementes, insumos e práticas agrícolas, realidade que pouco mudou de lá para cá. "Isso cria dois Brasis rurais: um moderno e produtivo e outro com baixa tecnificação e acesso limitado à assistência técnica".
Sem políticas públicas eficazes, segundo Crestana, esse distanciamento tende a crescer. Nesses casos, a organização dos produtores em cooperativas e o fortalecimento da extensão rural são vistos como caminhos essenciais para promover a inclusão produtiva e garantir que a inovação chegue também aos pequenos agricultores.
O pesquisador também cobra mais investimento público em pesquisa. Enquanto o Brasil destina cerca de 1% do seu Produto Interno Bruto (PIB) para ciência, tecnologia e inovação, o índice supera 2% na Alemanha, 2,5% na China e 4% na Coreia do Sul, por exemplo. "O valor bruto da produção aumenta, mas os recursos para pesquisa se mantêm estagnados, o que compromete a capacidade do País de responder aos desafios climáticos e de manter a competitividade global. A emergência climática exige dos agricultores adaptabilidade e resiliência. E a ciência será fundamental para garantir o futuro do agro brasileiro".
A natureza como inspiração
Alguns exemplos mostram que a ciência têm buscado, na próprio comportamento da natureza, inspiração para o enfrentamento das mudanças no planeta. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Ilha Solteira (SP), o professor Douglas Domingues Bueno lidera, em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), um projeto que desenvolve drones que batam asas, capazes de reproduzir movimentos de aves brasileiras, como beija-flores, araras-canindés e mergulhões.
Diferentes dos drones convencionais, estes modelos combinam a autonomia das aeronaves de asas fixas com a capacidade de manobra de drones rotativos As aplicações que vão do plantio e pulverização ao monitoramento ambiental e inspeções submersas. O projeto prevê integração de painéis solares e otimização energética, potencializando a viabilidade comercial e a sustentabilidade operacional.
Pesquisas em outras frentes também exploram novas tecnologias biológicas. No Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Nanotecnologia para Agricultura Sustentável (INCT NanoAgro), sediado na Unesp de Sorocaba, cientistas testam o uso do RNA de interferência (RNAi) como biopesticida.
Segundo Antônio Figueira, da USP, essa tecnologia utiliza moléculas de RNA de dupla fita (dsRNA) para "desligar" genes específicos de pragas como insetos e fungos, bloqueando proteínas essenciais à sua sobrevivência. Com baixa toxicidade e rápida degradação ambiental, o método tem registro regulatório mais ágil e mostra resultados promissores.
Experimentos realizados com milho transgênico demonstraram a eficácia da técnica na redução de pragas como a lagarta-da-raiz. Já estudos conduzidos com maracujazeiro, liderados pelo pós-doutorando Felipe Franco de Oliveira sob supervisão de Leonardo Fraceto, indicam potencial para combater vírus devastadores por meio de pulverizações direcionadas. "Quando aplicamos um pesticida convencional, há sempre a preocupação de atingir organismos que não são o alvo. Já com essa tecnologia, conseguimos fazer uma aplicação muito mais cirúrgica", explica Oliveira.
Essas iniciativas mostram como a pesquisa científica tem redefinido o agro brasileiro. Da biotecnologia às soluções inspiradas na natureza, o conhecimento gerado em universidades, centros de pesquisa e propriedades rurais começa a transformar o dia a dia do campo.
O vídeo A ciência por trás da supersafra (ver acima) mostra essa perspectiva ao reunir as experiências apresentadas nesta reportagem — da Fundação Mato Grosso e da Embrapa aos resultados obtidos na Fazenda Renascer — e evidencia como a tecnologia está moldando o futuro da produção agrícola no País.