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Calcinhas Truccs: profissional de saúde encontra outra forma de cuidar de mulheres trans

Silvana Bento criou peças íntimas que ajudam a ‘aquendar’ sem causar danos à saúde e agora luta por distribuição gratuita pelo SUS

21 jul 2023 - 05h00
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Silvana é uma mulher cisgênero, heterossexual e católica, da área de saúde, que passou a empreender em prol da saúde de mulheres trans
Silvana é uma mulher cisgênero, heterossexual e católica, da área de saúde, que passou a empreender em prol da saúde de mulheres trans
Foto: Arquivo pessoal

O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais. Além de mortes violentas, a transfobia também mata aos poucos, como no caso de mulheres trans e travestis que "escondem" a genitália com fitas adesivas para se sentirem mais seguras. Com o tempo, elas enfrentam problemas de saúde por não conseguirem ir ao banheiro fora de casa.

Silvana Bento, de 47 anos, viu de perto centenas de casos do tipo enquanto trabalhava em hospitais de São Paulo. Isso a fez mudar os rumos de sua vida, criando uma marca de peças íntimas que ajudam a "aquendar" sem comprometer o bem-estar de quem as usa.

Silvana é técnica em hemoterapia e foi ao longo de plantões médicos que começou a ter contato com mulheres trans. Conforme atendia as pacientes, descobriu sobre a técnica da fita adesiva e percebeu um padrão: essas mulheres davam entrada no hospital para fazer hemodiálise ou cirurgia nos rins.

"Se você começa sua transição aos 17 anos e aos 30 continua fazendo essa mesma técnica todos os dias, o trato urinário é todo afetado", explica Silvana, em entrevista ao Terra

Foi neste contexto que morreu Luiza, uma paciente que se tornou amiga de Silvana. Ela estava na fila do transplante de rim e, um dia, durante uma hemodiálise, não resistiu. "Foi aí que eu sabia que tinha que fazer alguma coisa. Não dava pra esperar outras Luizas morrerem", determinou.

Isso aconteceu em 2015. No ano seguinte, Silvana patenteava a Trucss, marca de calcinhas que permitem que mulheres trans "aquendem" com segurança. Já em 2017 ela passou a se dedicar exclusivamente à marca. 

  • O Brasil é o país que mais assassina pessoas trans pelo 14ª ano consecutivo. Segundo levantamento mais recente da Associação Nacional de Travesti e Transexuais (Antra), em 2022 foram pelo menos 151 pessoas trans mortas, sendo 131 casos de assassinato e 20 de suicídio. 
  • A pesquisa também identificou 142 violações de direitos humanos ao longo do ano - sendo, a maior parte dos casos, de impedimento de uso do banheiro. Além disso, cerca de 90% das vítimas foram pessoas transfemininas. A expectativa de vida média da população trans é de 35 anos.
Atualmente, a peça mais barata custa em torno de R$ 70. No início da marca, o valor estava em torno deR$ 20.  As peças íntimas contam com 16 variações de tamanhos - também relacionados às genitálias.
Atualmente, a peça mais barata custa em torno de R$ 70. No início da marca, o valor estava em torno deR$ 20. As peças íntimas contam com 16 variações de tamanhos - também relacionados às genitálias.
Foto: Reproduçao/Trucss

Preconceito até na produção

Começar a fabricar essas calcinhas não foi uma tarefa fácil. Silvana não sabia costurar e boa parte das costureiras que procurou se recusaram a fazer o produto. "Cada semana eu trabalhava com uma diferente. Eu cheguei a mentir, dizendo que eram peças para cachorrinhos… e algumas costureiras, sem entendimento, acabavam fazendo", contou.

Mas a marca ganhou visibilidade e não tinha mais como esconder que se tratavam de produtos para o público LGBTQIA+. Um detalhe: parte das costureiras que negavam o trabalho eram evangélicas.

Silvana lembra que também tem um laço forte com a religião, a católica, mas nunca ligou para o que poderiam pensar a seu respeito.

"Minha mãe, que também é católica, catequista e tudo mais, foi a primeira a me apoiar. Ela falou 'Minha filha, se você viu essa forma de ajudar essas meninas, por que não ajudar?'", conta.

A empresária esbarrou também em outra camada de preconceito, desta vez no meio empresarial. Neste caso, por ser uma mulher preta, periférica e que trabalha com produtos LGBTQIA+ voltados para mulheres trans. 

"As pessoas não têm muita confiança. Eu nem peço mais investimento [para grandes empresas], vou tentando levar do jeito que dá. Tenho ciência que se eu tivesse tido o investimento que eu necessitava, não estaria esse tempo todo na correria. Eu não levo mais para o coração. Eu simplesmente faço minha parte", desabafa.

Existe demanda para esse produto

Apesar das dificuldades, a primeira coleção da Trucss vendeu 100 mil unidades apenas em marketing boca a boca. A procura, para Silvana, reflete a importância das peças na vida das mulheres trans.

Depois, em 2020, veio a pandemia de covid-19 e os planos mudaram. Inicialmente, Silvana encontrou a oportunidade de abrir uma loja física, com os aluguéis mais baratos devido à baixa procura. Mas a Trucss da Rua Augusta, no bairro Jardins, em São Paulo, fechou em seis meses.

Desde então, a Trucss sobrevive. Silvana explica que a marca não consegue mais lucrar e que o principal motivo para a queda de vendas é a questão financeira.

"Na pandemia, até as meninas que trabalhavam com prostituição ficaram no prejuízo. Eu faço doações para meninas de casas de acolhida e todo feedback que eu recebo são positivos. Então é impossível essas meninas não quererem adquirir uma Truccs", reflete.

Nesse contexto, Silvana decidiu deixar o marketing de vendas de lado e focar no futuro que sempre sonhou para a Trucss: que as calcinhas sejam distribuídas gratuitamente pelo SUS. 

"Quando você faz uma peça só, é um valor. Quando você faz mil peças, é outro. Então, a unidade acaba ficando inacessível para algumas meninas. Decidi colocar minhas peças no SUS para que quem não tem condições de comprar também cuide de sua saúde".

Quase lá

Nessa luta pela distribuição no SUS, Silvana criou uma ideia legislativa que já conta com mais de 18 mil apoios. Se chegar a 20 mil até o dia 8 de setembro, a ideia se tornará uma sugestão legislativa e será debatida por senadores. Para apoiar, basta acessar a seção 'Distribuição gratuita de calcinhas para proteção da saúde das mulheres trans pelo SUS'.

A expectativa é que, com esse projeto em andamento, mulheres trans sejam capacitadas para fabricar as calcinhas. Assim, haverá geração de empregos e a distribuição será ampliada.

Com a Trucss, Silvana pretende criar mais oportunidades de capacitação na área da moda para mulheres trans
Com a Trucss, Silvana pretende criar mais oportunidades de capacitação na área da moda para mulheres trans
Foto: Arquivo pessoal

Iniciativa reconhecida pela ONU

Enquanto algumas portas se fecharam, outras foram abertas para a Trucss. Em 2022, em parceria com a ONU Mulheres e o Instituto Renner, a marca promoveu um curso de moda para mulheres trans na região da Sé, em São Paulo. Das 40 mulheres inscritas, só 15 terminaram o curso, por dificuldades de renda para pagar o transporte até o local. O intuito é que em 2023 aconteça outra aceleração do tipo, com vagas 100% afirmativas para mulheres trans. 

Além disso, em parceria com a agência África Creative, a marca lançou uma campanha de conscientização sobre a distribuição gratuita do produto. O curta-metragem principal foi premiado no Festival de Criatividade de Cannes, em junho. Veja:

Neste ano, em abril, a Trucss também veiculou um comercial sobre a marca na Rede Record.

"No início da marca, as costureiras recusavam [fazer as calcinhas] justamente por serem evangélicas. Então, por esse motivo que eu decidi colocar o filme da Trucss, de mulheres trans, na Rede Record, que é a rede mais conservadora do país", destaca.

Fonte: Redação Terra
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