Viúva aos 33, Renata Piza revolve o luto pela morte precoce de Daniel Piza sem medo de expor a dor
Em 'Ninguém Morre Sozinho', a jornalista narra a perda do marido, quando ele tinha 41 anos, e a busca por compreensão e aceitação da dor. Ao 'Estadão', ela fala sobre a escrita do livro, engavetado por dez anos, lembra histórias de Daniel e conta como é a vida agora
Escrever sobre um grande amor que se foi é reviver cada pedacinho de sofrimento em um corpo dolorido e a alma devastada. Renata Piza não teve medo de expor a dor, logo na primeira frase: "No dia em que eu morri, em 30 de dezembro de 2011, o Daniel ficou gelado ao meu lado. E depois partiu. Eu também fui enterrada. No dia em que o Daniel morreu, a Renata do Daniel morreu soterrada."
Ninguém Morre Sozinho, da Editora Gema, é uma espécie de autoficção em que Renata conta detalhes do relacionamento e da morte do marido, o jornalista e escritor Daniel Piza, vítima de um AVC aos 41 anos, na pequena cidade de Gonçalves, Minas Gerais.
Como aceitar o final de um amor que não desiste? O amor de um homem que mostrou que o mundo era tão maior do que o que ela conhecia e abriu tantas janelas nos poucos anos em que viveram juntos? Escrever um livro na época foi uma das formas de colocar os sentimentos para fora, aceitar o corpo em luto e o estado de pesadelo daqueles tempos, além de procurar entender que as promessas não cumpridas ficaram para trás. Como a morte ainda não é natural para tantos, ela espera que seu livro colabore para que as pessoas conversem sobre o tema.
Renata Piza começou a escrever quando as jornalistas Cintia Almeida e a Sandra Soares, colegas da Abril, montaram a plataforma Vamos Falar Sobre O Luto. Pediram um depoimento para o site e ela pensou que, depois de quatro anos, poderia escrever. Já estava razoavelmente bem, mas o sofrimento ainda estava presente: "Eu desmoronei, o processo todo foi difícil. Além do luto, eu entrei em depressão e, quando você entra em depressão, vai ao médico. Sou grata aos remédios porque eles me ajudaram a ser funcional quando eu precisava, mas a química mexe com o humor, com a imaginação. Comecei a escrever no celular sentada no sofá e comecei a chorar. Meu filho Bernardo se aproximou, deu uma choradinha também, foi até bonito."
Foram dez anos para Renata, jornalista e redatora-chefe da Elle, resolver publicar. Em 2015, chegou a mostrar os originais para dois editores, mas o retorno foi mais em relação ao jornalista do que ao livro. Sugeriram mudanças, mas não aceitou: "Era um livro sobre o Daniel, basicamente, muito sobre mim, sobre essa Renata do Daniel, não dá para tirá-lo da equação, ou mudar de nome, ou mudar o livro inteiro. Como eu não tinha essa pira da publicação, resolvi esperar. Meus filhos eram muito pequenos e eu me exponho muito no livro, não queria que eles lessem e ainda não conseguissem entender certas coisas".
Livro na gaveta e o tempo foi passando. Em 2024, foi com amigos para a Flip (a Festa Literária Internacional de Paraty) e viu tanta gente lançando que ficou com vontade de publicar - o dela já estava pronto. Quando conheceu a carioca Anna Andrade, de uma pequena editora, encontrou abrigo.
A descoberta do amor
Apesar de ter passado por vários trancos na vida e muitas mortes de família e amigos, bem mais do que casamentos, como diz, Renata sempre foi alegre e moleca no jeito de se vestir e existir. Talvez esse lado tenha fascinado o então editor-executivo sério do Estadão, que tinha uma sala só para ele, o que ela achava um absurdo.
No final dos anos 2000, antes de escrever a reportagem sobre os meninos de Paraisópolis que se apresentariam num festival internacional para o Jornal da Tarde, Renata viu um quadrado vermelho e invasivo piscar na tela do computador pela intranet do jornal com a frase: "Voce^ e´ uma das mulheres mais lindas que eu ja´ vi." Ainda nem sabia quem mandara, mas ficou constrangida e pensou que o cara desse gesto abusado nem se deu ao trabalho de elaborar algo poético e mandou um clichê.
Tempos depois, Daniel puxou conversa em um elevador sobre um filme em que ele a viu de longe no cinema, que costumava frequentar sozinha. Ela, que sempre se sentiu um patinho feio, que era magrela e usava aparelhos na adolescência, encontrou uma nova Renata.
O amor que deveria durar a vida inteira trouxe um despencar inesperado, duro quando ela já tinha aceitado ser feliz. E foi um tempo de encontrar o outro lado do espelho, quando o único desejo era dormir lagarta e acordar borboleta. Um espelho velho e quebrado.
Renascer é preciso
Abrir o coração para contar sua história de amor não traz insegurança: "Eu acho que já fui tão julgada, sabe? Você nasceu mulher e está sendo julgada o tempo todo, principalmente depois que você sai um pouco do que a sociedade espera de você - como ser viúva jovem. Esperam de mim posturas e eu nunca tive isso. Se o exercício da escrita não for muito verdadeiro, a mim não interessa muito, sabe? Sempre fui de derramar todos os traumas."
Os filhos Maria Clara, 23 anos, e Bernardo, 19, não quiseram ler o livro e Renata respeitou. "Pelo menos hoje são adultos para querer ou não querer. Sei que o livro é forte, tem gatilhos, a Larissa Maciel na Flip começou a chorar na leitura. Eu estava vindo para essa entrevista e pensando que eu ia reviver tudo. É inacreditável, vai fazer 14 anos, mas eu ainda sinto muita falta dele, mas é a falta da troca, da conversa. Sempre houve muita troca entre nós, involuntariamente aprendi muito com ele, e ele comigo, até hoje uso coisas que ele ensinou. Outro dia usei em uma aula coisas do livro dele sobre jornalismo cultural."
Nos últimos anos apareceram outros relacionamentos, experiências bem ruins como ela define: "É difícil você achar alguém que você admire além de que você goste; tive alguém que foi pai dos seus filhos, já não vai ser nunca mais, alguém que te ama como ele me amava, como ele me via, eu era uma Renata melhorada, sabe? Por isso falo que perder essa Renata é complicado, porque ele me olhava com um olhar muito romântico, muito carinhoso, era um cara que sempre me apoiou, que sempre falava que eu ia conseguir as coisas; do contrário da minha família, que era uma criação de quem não acreditava em mim. Mas aprendi a dar uma passada de pano, para poder também poder me abrir de novo, porque senão a vida fica insuportável".
Mesmo tendo que colocar máscaras muitas vezes para não escancarar a tristeza perto dos filhos, comenta que eles são muito amigos. "Antes de o Daniel falecer eu já fazia terapia. Depois da morte, meu terapeuta disse que se eu continuasse tentando ser pai e mãe não conseguiria ser nenhum dos dois. E foi difícil aprender a falar ex-marido, entender o corte, a separação definitiva."
Literatura do luto
Durante o luto procurou ler muito sobre a morte, de Rosa Montero a Aline Bei, de Han Kang à cegueira de Saramago. O nome do seu livro foi escolhido por conta de um ditado de família sobre todo mundo nasce e morre sozinho. "Comecei a pensar nisso e não é verdade. Ninguém nasce sozinho porque pelo menos a mãe está junto. E ninguém morre sozinho - no meu caso, morri também com ele. Aquela Renata do Daniel nunca mais vai existir, do jeito que aquela pessoa via, as trocas que aconteciam. Aquela Renata morreu, era uma Renata que se sentia mais segura no mundo, acolhida, muito amada e protegida."
Renata diz que a obra é de antiajuda, não oferece receitas para não sofrer: "Eu quis fazer um livro muito humano, para as pessoas não se sentirem tão esquisitas quando acontece algo com elas. Porque, sempre que acontece alguma, seja uma demissão, seja qualquer outra perda, há uma espécie de protocolo das pessoas comentando que a vida segue. Só que você fica. Os piores momentos que eu vivi aconteceram quando eu não consegui sentir, quando eu só queria morrer. Quando você está sentindo, seja raiva, muita tristeza ou um estado de desespero pelo menos aquilo ainda te move de alguma maneira. Às vezes, é só você ficar quieto, porque é difícil pra caramba ouvir essas frases feitas para consolar. Se eu estou muito mal, deixa eu ocupar esse espaço um pouco. Vou sair eventualmente, mas não é nesse momento. Aprendi a falar quando perguntam se está tudo bem: Tá tudo indo, vai ficar melhor."
A saudade e o amor estão guardados, assim como a jaqueta de couro dele, que Renata ainda usa quando se sente muito insegura. Está feliz com o trabalho na Elle, gosta de fazer perfis, tem algumas poesias começadas mais como prosa poética e ideias para continuar a ficção. Sabe que lançar esse livro foi contar a própria história sem rede de proteção. Em casa ainda estão os livros, os quadros, as fotos, rastros de Daniel que certamente podem incomodar quem chega.
"Depois que a pessoa morre não há o desgaste o tempo, você idealiza. Eu me casei muito nova, fiquei viúva com 33 anos. Tivemos uma pequena fase de estranhamento, mas superamos. Estávamos animados para morar em Nova York, mas depois que ele morreu nem consegui pensar nisso. Não tinha grana, não tinha condições emocionais. Eu tive o maior amor do mundo durante dez anos da vida, e ele sera´ imortal enquanto eu estiver viva. O luto, entendi, agora tambe´m faz parte de mim. Outros amores vieram; com sorte, outros vira~o. Novas histo´rias, novos capi´tulos, novas decepc¸o~es, novos recomeços e reencontros", finaliza.
Leia trechos de 'Ninguém Morre Sozinho'
"Enfim, dispensado de encontrar um sentido para a vida, Daniel encontrou Renata. Encontrou em Renata a festa racional dos sentidos facilmente justificáveis. O sentimento do mundo. O mundo do sentimento. Uma nova forma de pensar. E deu a ela um amor que jamais desiste" (De Daniel Piza, trecho de um dos muitos textos que fez para Renata e estão no livro)
"A sua pessoa preferida no mundo emudeceu, e os pa´ssaros continuam a cantar, as crianc¸as continuam a nascer, os pais continuam a comemorar, fogos de artifi´cio estouram, brindes sa~o feitos, as pessoas continuam a se apaixonar, sem pensar que um dia podem ficar sozinhas no cemite´rio..."
"Percebi que na~o sabia mais do que gostava. De que mu´sica, de que restaurante, de qual livro. Percebi que era uma mulher sem gostos, que pegava emprestado os do meu marido. Percebi que todos os nossos amigos na~o eram nossos, eram dele. Na~o sabia mais com quem podia contar"
"Quando o Daniel morreu, depois de ter feito eu me sentir ta~o especial, bonita, importante, inteligente e, principalmente, amada, parecia a confirmação de que eu na~o fazia parte do seleto grupo de quem tem o direito de ser feliz, de perseguir a felicidade. Que estava fadada a uma vida triste. Que em outras vidas devia ter sido Cavaleira da Inquisic¸a~o, incendia´ria de gente bondosa. Na~o merecia nem morrer, mas, sim, viver fritando em uma eterna fogueira. Se tive outras vidas, fui uma pe´ssima pessoa."
"Eu tive o maior amor do mundo durante dez anos da vida, e ele sera´ imortal enquanto eu estiver viva. O luto, entendi, agora tambe´m faz parte de mim. Outros amores vieram; com sorte, outros vira~o. Novas histo´rias, novos capi´tulos, novas decepc¸o~es, novos recomec¸os e reencontros"
Daniel Piza, por Renata
"Ele virou editor aos 22 anos, aos 30, ja´ era editor-executivo, o segundo cargo mais alto na hierarquia. Trabalhou nos maiores vei´culos do pai´s - O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil. Colaborou com a Bravo! Foi comentarista da CBN. Assinou roteiro de se´rie de TV. Sugou a vida velozmente. Escreveu uma pec¸a que nunca chegou a ser encenada. Morreu com 41 anos e publicou 17 livros. Nunca parou. Queria mais. Queria infinito, igual ao pingente de ouro que me deu assim que comec¸amos a namorar. Queria goiabada com queijo e ac¸u´car com cafe´. Na~o queria regime, igual Minas Gerais."
Ninguém Morre Sozinho
- Autora: Renata Piza
- Editora: Gema (160 págs.; R$ 69,90)
- Lançamento: 28/8, às 19h, no Amarello Café (R. Melo Alves, 780)